Dia 4: “A folha cheia.”
Tem uma situação clichê que é o pesadelo mais comum de quem escreve: a folha em branco.
Estar diante do “papel” vazio (entre aspas porque, hoje em dia, é só um documento de word aberto), pronto pra começar a registrar as ideias, pra fazer o texto se materializar na forma de uma narrativa, e nada acontecer — blecaute! — nenhuma ideia surgir.
Não tenho memória de já ter passado por isso alguma vez na vida, porque minha cabeça está sempre fervilhando, sempre caraminholando alguma coisa, fora do mundo, fora da realidade, elaborando uma nova ideia, uma nova história, criando situações ficcionais. Teve um tempo em que achei que isso fosse uma doença, algum problema do meu cérebro. Minha psicóloga me assegurou que não (a menos que começasse a me prejudicar de algum jeito, a causar alguma forma de sofrimento, mas eu disse a ela que o mundo real é que me causava sofrimento, não minhas ideias).
A folha cheia, pra mim, é que é um baita de um problema. Uma folha cheia de porcarias: a narrativa que escrevi e da qual não gosto, a história que eu pretendia contar mas que, na hora da materialização, fica tosca, esquisita, sem graça. O texto ruim, amador, com aspecto infantil. Ou a cena sem propósito, a motivação vazia, o diálogo artificial, os personagens sem carisma ou — pior que isso — os personagens antipáticos!
Quando estava escrevendo o segundo capítulo daquele meu folhetim água-com-açúcar, sobre a história de um casal que se conhece desde a adolescência, (por mais que eu tratasse e reescrevesse trechos inteiros do texto, apagasse todo um segmento, alterasse alguns termos, mudasse a ordem das coisas) a protagonista acabava sempre soando como uma bobalhona, invejosa e desesperada. Eu queria que ela fosse uma menina carente e insegura, mas que tivesse alguma força de caráter e talvez uma pitadinha de auto-ironia. Mas as características que eu queria dar ficavam teimando em não aparecer, não importava quanto esforço eu empreendesse. Daí larguei mão, por um tempo. Deixei o capítulo pra lá, até que a cabeça pudesse elaborar uma solução.
Não sei se a personagem é quem ela tem de ser (e esteja se impondo na história) e daí sou eu que preciso parar de forçar a barra pra ela parecer ser mais legal, ou se o problema é uma falta de capacidade minha de conduzir a personagem pro ponto que preciso (por falta de repertório emocional).
Essa coisa de que, às vezes, os personagens de uma história acabam ganhando vida própria de tal maneira que impõem suas próprias necessidades à narrativa, é uma forma bem latina de enxergar a elaboração de narrativas de ficção. Como se a arte precisasse advir da inspiração, e a inspiração fosse um momento catártico que transbordasse o artista de iniciativa, orientando a criação de maneira espontânea. Alheia ao controle do próprio artista.
É um pensamento bonito, mas não acho que esse seja o caso.
Embora — de modo geral — eu tenha sempre um tiquinho de desprezo pela indústria cultural norte-americana, em alguns aspectos estou de acordo com a forma como eles tendem a pensar a arte e a produção artística: como o resultado de um esforço de planejamento, de estudo e de produção de material. Um bruta esforço! (Diga-se de passagem.)
No livro Story do roteirista e professor Robert Mckee, ele prega que, pra produzir um bom roteiro de filme, o ideal seria escrever umas quarenta versões diferentes pra cada cena, e depois selecionar a melhor versão pra entrar no tratamento final. Considerando que num filme regular de 90 minutos existem 120, 130 cenas em média, seria preciso produzir umas 5.200 cenas, pra garantir que o material final seja um apanhado das melhores ideias possíveis.
E daí eu fico assim: semanas e semanas relendo e reescrevendo cada ceninha do meu livro, cada trecho dos capítulos prontos, sem saber se isso é mesmo um avanço em termos de qualidade, ou se é só uma imensa patinada no brejo das minhas indecisões e auto-críticas. Se estou buscando, de repente, um resultado inalcançável, uma maturidade e sofisticação que estejam além das minhas capacidades intelectuais. Se estou só naufragando, perdida, sem perceber que, no fim das contas, nessa busca por qualidade, acabo produzindo só auto-sabotagem.