Peru, Copa de 70: Como craque brasileiro, parceiro de Cruyff e “Pelé Peruano” superaram um terremoto e fizeram história

Lucas Rubio Ayres
6 min readJun 14, 2020

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Getty/FIFA.com

Não faltam adjetivos para descrever nem histórias para contar sobre a Seleção Brasileira de 1970. Sobre a Copa toda, na verdade.

A Copa do Tri foi também a Copa da TV, e também a Copa das substituições, a Copa dos cartões…foi igualmente a Copa do braço quebrado do Beckenbauer, da chuteira preta do Pelé, da última chuteira preta do Pelé em Copas, do gol do Capita — com passe do Pelé -, enfim, teve muita Copa, muita história e muito Pelé para muita gente em 1970.

Eu não sei como chamam a Copa de 70 no Peru, mas certeza de que alguma coisa eles chamam. De “melhor campanha da Seleção Peruana na história das Copas” que não deve ser. Pragmático demais.

Foi uma Copa e tanto, a Copa de 70 do Peru. Os “Incas” faturaram duas vitórias, meteram nove gols, lançaram a grande revelação, que por acaso também foi o chuteira de bronze, e ainda foram laureados com o prêmio Fair Play, dado ao time mais leal, ao menos violento, e que neste caso poderia ser também para o mais simpático.

Até porque não tinha como não simpatizar com nossos camaradas andinos. Acompanhe: O azarão da América do Sul eliminou os hermanos argentinos em plena Bombonera, voltando ao Mundial depois de quarenta anos, e dias antes da primeira partida desse retorno, teve de superar o maior desastre natural de seu território, um terremoto que tirou a vida de mais de 70 mil pessoas.

Contam as esquinas boleiras que horas antes da estreia, o presidente da federação motivou os arrasados jogadores com um punhado de terra nas mãos, afirmando que aquilo que empunhava era senão todo o Peru, e pedindo beijos ao humilde pedaço de chão peruano.

A estratégia deu certo, com os Incas vencendo a Bulgária de virada, por 3 a 2, ainda que o solo sagrado fosse de um um vaso qualquer dos arredores do estádio, como o próprio cartola motivador admitiria anos depois.

Passamos até aqui sem mencionar um dos melhores pedaços dessa história. O tal azarão era treinado por ninguém menos que Waldir Pereira, o Mr. Football himself, o Príncipe Etíope da Ordem da Folha Seca, o nosso e eterno Didi.

“Professor” do peruano Sporting Cristal em 1962, e novamente em 1967, Didi assumiu a seleça em 69, baseando a convocação na defesa do seu Sporting e no conhecimento dos ataques adversários.

Entre esses inimigos íntimos, as duas maiores referências técnicas da “geração de ouro peruana”. O primeiro, Hugo Sotil, um meia-atacante típico da sulamerica — baixinho, cabeludo, e liso tal qual uma corvina banhada em limão de um legítimo ceviche peruano.

El Cholo começou a Copa como reserva, condição que durou apenas 45 minutos. Com o revés no placar contra a Bulgária, Didi lançou mão do baixola para deixar o time mais solto. Sotil viria a comandar a reação, com meros seis minutos em campo.

Depois da Copa — três anos depois, para ser mais exato -, Cholo foi pinçado por Rinus Michels para ser o companheiro de Cruyff no ataque do Barcelona.

No Meu Barça, o peruano não só meteu la diez como meteu caixa numa histórica goleada sobre o Real Madrid, o jogo mais lembrado da campanha que encerrou o jejum catalão de quatorze anos longe do título espanhol.

O segundo craque que infernizou a defesa do Sporting de Didi foi Teófilo Cubillas. De El Nene eu não preciso falar muito. Se você bater um clique no site da FIFA, o seu nome estará acompanhado por “The Pelé of Peru” e “Peruvian Legend”.

Ídolo do Alianza Lima, do Basel, da Suíça, e do Porto, de Portugal, o camisa 10 de 70 é até hoje o maior artilheiro do Campeonato Peruano, com 268 bolas na rede.

Minha carteirada favorita é o prêmio de Melhor Jogador da América do Sul de 1972. A lista de desbancados deveria valer como diploma latu sensu da vida. Se você deixou para trás Pelé, Tostão, Jairzinho e o Divino Ademir da Guia, você certamente entende sobre qualquer coisa.

Cubillas era mesmo chegado numa Copa. Foi o 10 da Copa América de 1975, a segunda e última conquista da Seleção Peruana, e foi o vice-artilheiro da Copa do Mundo de 1978.

Na Copa de 70, além dos supracitados prêmios de Melhor Jovem e a digníssima Chuteira de Bronze, Cubillas estava a caminho de conseguir o que só Jairzinho, naquele mesmo ano, conseguiu, que foi marcar gols em todos os jogos do torneio.

Contra a Bulgária, Nene fechou o placar de 3 a 2. Um golaço, aliás, em um jogaço. Contra o Marrocos, abriu e fechou o 3 a 0, em duas jogadas de Sotil, na partida que serviu como atestado do futebol solto aplicado pelos Feras de Didi.

A mesma história não aconteceu no último confronto do seu grupo, que não teve futebol solto, mas teve sim gol de Cubillas. Foi no finzinho do primeiro tempo, com o placar já em 3 a 0 para a Alemanha Ocidental, e numa marota falta desviada, ainda por cima.

O feito de Cubillas e todo o sonho peruano parou justamente no Brasil, o que, em retrospectiva, só serviu para consagrar a campanha. Até porque o 4 a 2 brasileiro não foi exatamente um atropelo, muito pelo contrário.

A Seleção (a única que deveria ser referida assim, com “s” maiúsculo) abriu o placar com Rivellino, e desculpe pela pornografia, numa bomba de esquerda que completou uma tabela entre Pelé e Tostão.

O mesmo Tostão fez dois a zero. Em menos de 15 minutos Gallardo diminuiu.

O ponta esquerda, membro da Primeira Academia do Palmeiras, foi outro que jogou o fino neste Mundial. Atuava sempre com explosão, habilidade e uma incrível visão para encontrar ângulos de chute no cantinho do campo, como foi o caso do gol contra o Brasil.

Tostão fez outro no começo do segundo tempo, mas, com uma patada da entrada da área, Cubillas não deixou virar bagunça. Quer dizer, pelo menos até Jairzinho marcar o quarto gol brasileiro, que também foi o seu quarto gol na Copa e que aliás foi no quarto jogo da Seleção.

Do jogo em diante, é história. Para o Brasil, foi Tri, Sarriá, o pênalti do Zico, o pênalti do Baggio, o cascão do Ronaldo, a chapeleta do Zidane, o pisão do Felipe Melo, a tabelinha do Khedira e por aí vai.

Para o Peru, a Copa de 70 marcou o início de uma era de ouro, com o ponto mais alto no título da Copa América de 75, e menção honrosa para as participações nas Copas de 78 e 82.

O romantismo, no entanto, ficou mesmo em 70. A Seleção Peruana fez dois pontos e marcou só um gol em 82, e teve o fatídico 6 a 0 para a Argentina em 78. Não há deméritos no título de 1975, mas o porém de que o Brasil disputou o torneio com um combinado mineiro.

Talvez o romântico futebol peruano tenha acabado no momento em que Didi, em plena recepção dos sétimo colocados da Copa do Mundo de 1970, recusou o eufórico convite do presidente Juan Velasco Alvarado para assumir a nacionalidade peruana.

Didi foi dali para o banco do River Plate, não sem antes terminar a temporada de 1970 com mais um título do Sporting Cristal.

Conquistou mais um par de títulos com o Fenerbahçe, da Turquia, e foi a mente por trás do fantástico Fluminense de 1975, de Rivellino, Félix e cia, que acabou vice do Brasileirão, derrotado pelo fantástico Internacional de Falcão, Carpegiani e cia.

Além do título nacional, ficou faltando para Didi o tão sonhado cargo na seleção brasileira, essa, que não aproveitou o serviços do homem que ajudou a construir toda a sua mitologia, vai com “s” minúsculo mesmo.

No Peru, o legado do primeiro mister do Rio segue até hoje. A Copa de 70 é uma inspiração clara para o atual Peru de Ricardo Gareca.

O treinador argentino é líder do projeto peruano de retomada, que se chamava Catar-22, mas que já começou a dar certo em 2018, com o retorno à Copa da Rússia, e novamente em 2019, quando os Incas chegaram a mais uma final de Copa América.

Nos 50 anos do Mundial de 1970, narrativas como a do Peru retificam o porquê do evento ser eternizado na bibliografia planetária da bola.

É na expectativa de mais histórias como essa que os amantes da bola contam os dedos para a próxima edição, acompanhados dos que não resistem a uma boa emoção ufanista e dos entusiastas dos trinta dias de bagunça generalizada.

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