O horror das pessoas que não lêem

Para quem gosta de literatura, as pessoas que não gostam de ler são um bicho estranho

Marco Neves
Pilha de Livros
Published in
3 min readDec 9, 2013

--

por Marco Neves

O horror, o horror—grita o leitor quando avista essa espécie terrível que é o não leitor. Para os tipos dos livros, o mundo divide-se entre os que lêem (os bons, os esclarecidos, os cultos, os nossos) e os que não lêem (os ignorantes, os infelizes, os ingénuos, os brutos). Nós, que descobrimos a tempo, por ser óbvio ou por termos sorte na vida, os prazeres e a necessidade imperiosa da leitura para uma vida com qualidade, vivemos num aprazível mundo de esclarecimento, de discussões elevadas, de bons livros, de vida boa. Os outros perdem-se num mundo infernal de ignorância, sordidez, coisas que nem queremos imaginar. Desviamos os olhos, horrorizados.

Por isso, passamos a vida a tentar salvá-los, quais bons samaritanos: na escola, assustamos os alunos com mil horrores que se abaterão sobre quem não lê. Entre amigos, olhamos com desconfiança para quem não mostra estar por dentro e para quem não compreende private jokes daqueles que lêem (e lêem tudo, sempre, a toda a hora). Depois, claro, desconfiamos ainda mais de quem lê Paulo Coelho, Margarida Rebelo Pinto ou quem não mostra conhecer a obra de Eça de Queirós, de António Lobo Antunes e de X de trás para a frente (substitua-se X pelo autor algo obscuro que todo o leitor acha ser imprescindível para quem pretende conhecer a literatura).

Pois, meus amigos: temos de olhar com mais atenção; se a literatura nos abre assim tanto os olhos, olhemos com olhos de ver para os não leitores sem, por favor, nos pormos em bicos de pés. Conheço não leitores inteligentíssimos, com quem passo horas a conversar (e a minha formação é em literatura).

Quero com isto dizer que a literatura não é assim tão importante? Para mim, é muito importante e acho sinceramente que esses não leitores teriam tudo a ganhar em ler muito e melhor. Mas a prática da leitura está envolta em “obrigações”, mitos, suposições, pequenos preconceitos ideológicos e sociais, uma nuvem de coisas que deixa os livros bem longe e inacessíveis a quem não começou a ler cedo (inacessíveis por vezes por um orgulho saloio de se ser “não leitor”). Depois, convenhamos: para gostar realmente de ler é preciso ler muito e esta barreira aparentemente intransponível torna surpreende a quantidade de leitores que, ainda assim, existem.

Assim, antes de cairmos na tentação de nos sentirmos superiores, convém respirar fundo e perceber que ler ou não ler é simplesmente um acto de liberdade. Depois, conversemos entre leitores e não leitores como iguais: a “leitura” pode ou não ganhar com o negócio, mas quem ganha certamente somos todos nós, enquanto pessoas.

(Por outras palavras, temos de ultrapassar os hábitos de conversa, atravessar fronteiras invisíveis, sair do conforto de só falarmos com quem nos entende perfeitamente, de nunca sairmos do nosso mundo, etc.)

Publicado originalmente em 2006.

--

--

Marco Neves
Pilha de Livros

Writer of non-fiction books on language and translation. Assistant Professor at NOVA University of Lisbon. Researcher at CETAPS.