O vírus que somos I: Perdido em el siglo

Marcos Beccari
5 min readApr 11, 2020

Este texto é a parte I da série O vírus que somos, composta de 5 partes.

Próximas partes: II. Enquadramento | III. Estranhamento | IV. Confinamento | V. Desaparecendo | Poslúdio I

Apresentação/resumo

O vírus que somos é um conjunto de ensaios que não se furta a pensar o fenômeno de maior proeminência nos dias que passam. Partindo literalmente da premissa foucaultiana segundo a qual a filosofia deve ter como alvo o tempo presente, defendo a hipótese de que o vírus carrega em si tudo o que ainda não conseguimos deixar de ser.

Após introduzir, em I. Perdido en el siglo (abaixo), o que está em jogo neste contingente virótico e global, prossigo em outros quatro ensaios: II. Enquadramento de uma atmosfera previamente carregada de certos hábitos de exceção e anticorpos fronteiriços; III. Estranhamento como princípio da imunização e da redistribuição da vulnerabilidade; IV. Confinamento como disciplina assimétrica de sobrevivência e autossacrifício; V. Desaparecimento como horizonte ontológico de uma existência inerte que nos espelha.

O que me interessa aqui é, mais do que delinear mais uma interpretação filosófica da pandemia, indiciar a lógica insuspeita e virulenta que há décadas nos cerceia enquanto corpos e anticorpos descartáveis.

I. Perdido em el siglo

A ameaça do que não conseguimos deixar de ser

Yo llevo en el cuerpo un dolor / Que no me deja respirar / Llevo en el cuerpo una condena / Que siempre me echa a caminar. — Manu Chao, Desaparecido

Este ensaio foi escrito no espaço estranho da quarentena que enclaustra os fluxos de coexistência no primeiro semestre de 2020. Se o “estranho” reside entre o familiar e o insólito, a pandemia do Covid-19 coloca-nos diante do fantasma das pragas que há muito tempo deixaram de assolar populações, ao mesmo tempo em que põe à luz nossas sombras mais atuais e familiares.

Quem não é suspeito, afinal? O perigo pode residir em qualquer um. A guerra contra o vírus tem como território o ar que respiramos e se estende virtualmente em cada corpo, cada organismo, cada epiderme. O vírus é invisível, incorpóreo; nós lhe damos corpos, nós somos seus hospedeiros. O vírus não se acumula como moedas, mas como créditos bancários. Não se faz ouvir de imediato, mas como uma notificação ou uma mensagem de voz. Não cresce como um bicho, mas como código, algoritmo.

Sem dúvida, é necessário se perguntar pelos rastros dessa estranha ameaça que apenas reproduz e intensifica nossos artifícios naturalizantes. Imunização? Talvez fosse melhor falar de “infiltração”, “simbiose” ou simplesmente de “somatização”. Pois, como bem pontuou Paul B. Preciado, “o vírus atua à nossa imagem e semelhança” [1]. Nada inédito nem conspiratório: a AIDS foi para a sociedade heteronormativa neoliberal do século XX o que a sífilis havia sido para a sociedade colonial, isto é, um modo eficaz de marginalizar, respectivamente, a homossexualidade e a prostituição.

Hoje, o Covid-19 serve como pretexto ideal para assinalar os desocupados, os vadios, os parasitas sociais. À diferença dos confinamentos de outrora — como o da peste bubônica, varíola, febre amarela e cólera [2] — , a quarentena contemporânea implica o ápice de consumo de internet e de serviços online, deixando-nos menos reclusos do que conectados; por conseguinte, não basta continuar trabalhando remotamente, é preciso mostrar, disponibilizar ao vivo, interagir e dar depoimentos diários para “provar” que se está produzindo, sem se deixar contagiar pela ociosidade. Não basta lutar contra o vírus, é preciso se imunizar contra a indisciplina. Consolida-se assim a vinculação “necessária” que, numa época distante, Jeremy Bentham estabelecera entre a suposta regulação natural e espontânea do mercado, de um lado, e os mecanismos de correção e educação dos corpos inadequados às trocas mercantis, de outro [3].

Isso sem falar, é claro, da grande massa de corpos que sempre estiveram de outro modo “reclusos”, seja porque não podem se dar ao luxo de trabalhar em casa ou por não terem sequer um teto sobre a cabeça. Sem falar também das comunidades periféricas, dos imigrantes, dos povos ancestrais e de tantos outros abandonados à própria sorte. Para todos estes, o temor do vírus não é maior que a ameaça diária de ser morto pela polícia ou de não ter o que comer no dia seguinte. É nesse abismo entre a “prevenção” de uns e o absoluto desamparo de tantos outros que reside, precisamente, a força do vírus. Um vírus que atua à imagem e semelhança de uma sociedade que, fazendo da exceção a regra, segue adotando a guerra como instrumento da paz, o totalitarismo como caução da democracia, a seletividade do direito à vida como cerne da economia. E como Antonio Negri já nos ensinava em meados deste século, “o inimigo não pode ser vencido ou, se for vencido, é preciso logo que haja outro, o inimigo é um perigo público, é o sintoma de uma desordem a ser ordenada” [4].

Entre um sem número de constrangimentos e os inspirados clamores de resistência que pedem passagem a partir de tal mirada, instaura-se nesta quarentena um intervalo entre o tempo do novamente e o do não ainda, uma fissura que merece ser cautelosamente analisada enquanto fecunda problematização da atualidade. Longe de uma postura apocalíptica ou resignada, tampouco utopicamente otimista, importa aqui dimensionar o que ainda não conseguimos deixar de ser. Nessa busca pelos rastros de um ser incorpóreo, cada vítima do Covid-19 encarna o rosto petrificado de Michel Foucault, o primeiro filósofo a morrer por efeito do vírus da imunodeficiência adquirida. Pensar no vírus que nos habita é insistir em peregrinar guiando-se por uma cartografia invisível e, na ausência de nortes, estranhar e reinventar o que somos — eis o que nos apelava Foucault:

Talvez o mais evidente dos problemas filosóficos seja a questão do tempo presente e daquilo que somos nesse exato momento. Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que podemos ser. […] Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposta há vários séculos. — Michel Foucault [5]

Leia as próximas partes de O vírus que somos:

II. Enquadramento: A sombra do sol e a normalidade da anomalia.

III. Estranhamento: A imunidade de uns pela vulnerabilidade dos outros.

IV. Confinamento: Quando a prevenção se confunde com prostituição.

V. Desaparecendo: Uma eugenia à nossa imagem e semelhança.

Poslúdio I: Um golpe brando e a ficha que não cai.

Notas

[1] Este e os demais trechos em língua estrangeira foram aqui traduzidos livremente por mim.

[2] Ver esta recente análise de Claudio Pereira e Victor Galdino sobre a reforma Pereira Passos que, sob o pretexto de erradicar a febre amarela no Rio de Janeiro oitocentista, operou uma violenta segregação urbana por meio da destruição de cortiços e terraplanagem de morros.

[3] Ver, a este respeito: Bentham, Jeremy. “Defense of Usury”. In: Stark, Werner (Ed.). Jeremy Bentham’s Economic Writings — Vol. 1. London: Blackfriars, 1952, p. 121–207.

[4] Negri, Antonio. Cinco lições sobre o império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 188.

[5] Foucault, Michel. “O sujeito e o poder”. In: Dreyfus, Hubert; Rabinow, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 239.

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