O vírus que somos II: Enquadramento

Marcos Beccari
5 min readApr 12, 2020

Este texto é a parte II da série O vírus que somos, composta de 5 partes.

Outras partes: I. Perdido en el siglo | III. Estranhamento | IV. Confinamento | V. Desaparecendo | Poslúdio I

II. Enquadramento

A sombra do sol e a normalidade da anomalia

E m Staying with the Trouble (p. 72), a bióloga e filósofa Donna Haraway — autora do célebre Manifesto ciborgue, de 1985 — lembra que um dos principais fatores para a disseminação do conceito de Antropoceno [1] no início deste século residiu no desaparecimento de ecossistemas inteiros em muitos recifes de coral, em decorrência do aquecimento e da acidificação dos mares. A autora destaca três outros fatores nisso implicados: os recifes de coral comportam a maior biodiversidade de ecossistemas marinhos, sobretudo em espécies de bactérias e vírus; os corais foram um dos primeiros casos de simbiose reconhecidos pelos biólogos; há uma interdependência direta entre os humanos e os ecossistemas existentes nos corais.

Com isso, Haraway sugere-nos que, embora o ser humano tenha se tornado o grande responsável pelo iminente colapso climático em curso, estamos longes de ser os agentes de um trajeto evolutivo que permanece à guisa do que a autora chama de “critters”: pequenas criaturas, como o vírus, que operam mutações cruciais para a subsistência da vida em geral. É algo muito similar ao que William Burroughs já dizia, em 1971, sobre os vírus como agentes de mutação biológica, cultural e linguística. Mas, de todo modo, é uma forma sofisticada de dizer algo que não é nenhuma novidade: a espécie humana, como todas as outras, destina-se à extinção, sucedida por uma longa era em que protozoários e afins seguirão existindo até que o planeta exploda.

Bem, ainda estamos aqui e, como adverte o livro de Haraway, temos que lidar com certos problemas: do aquecimento global ao contágio pandêmico de um vírus. Porém, mais do que qualquer narrativa apocalíptica, o que prevalece no horizonte cosmopolita é o mito neoliberal segundo o qual tais eventos são meras anomalias passageiras, supondo a autorregulação de um sistema financeiro imune a imprevistos. Ocorre que, tal como a imagem do entregador do Ifood tentando remar contra a correnteza da enchente, os mercados evidenciam-se como barcos de papel no meio da tempestade, e isso ao menos desde a crise de 2008 (que aliás não foi nenhuma anomalia). Claro que um modo de vida historicamente erigido não será facilmente abalado por uma pandemia — supondo-se que não ocorram outras. Mas um evento como este, sem falar do aquecimento global, recoloca muitas cartas sobre a mesa, tornando mais legíveis certos índices de um passado recente.

A começar pelo endurecimento das fronteiras, que desde o início deste século revigoram a velha prática colonial com vistas a uma “imunidade” europeia e norte-americana contra migrantes, então confinados nos maiores campos de refugiados a céu aberto da história. Ao mesmo tempo, países da Ásia, África e América Latina permanecem atuando como um grande armazém de suprimentos, fornecendo boa parte dos recursos energéticos e bens de consumo daqueles regimes neocoloniais. Mediante esse pano de fundo, as medidas de controle da disseminação do Covid-19 refletem, nos termos de Paul B. Preciado, “as políticas de fronteiras e as medidas rigorosas de confinamento e imobilização que nós […] temos aplicado nos últimos anos a migrantes e refugiados — a ponto de deixá-los fora de qualquer comunidade” [2].

No caso particular do Brasil, conforme sublinhou Jonnefer Barbosa, segue-se uma política não só de extermínio populacional, como também de apagamento de todo rastro. Se o presidente tanto insistiu em conclamar o retorno à “normalidade”, do mesmo modo que o empresariado que lhe dá suporte convocou carreatas genocidas para que os pobres voltem ao trabalho, é porque aqui o estado de exceção é a normalidade: eles tinham plena ciência de que a pandemia levaria milhares brasileiros e brasileiras à morte. Tal sorte de normalização integra uma antiga tática de fazer desaparecer:

As técnicas de desaparecimento produzem uma “vida que não deixa rastros”. O desaparecido não é somente um corpo sujeito à punição de um soberano ou às disciplinas que o sujeitarão. O conceito de vida sem rastros expõe uma paradoxal contra-história da política no ocidente, possibilitando nela incluir desde a história silenciada dos mortos nos navios negreiros […] no longo genocídio que atravessou o século XV até o XIX, aos desaparecidos políticos na ditaduras latino-americanas a partir dos anos 1960, passando pelos assassinados pelo narcotráfico ou por grupos policiais, militares ou paramilitares de extermínio. O conceito de desaparecimento é um critério de inteligibilidade da política governamental latino-americana. Jonnefer Barbosa

De fato, um vírus nunca emerge ex nihilo, mas sob a atmosfera de certos hábitos e lógicas há muito já disseminados. Donde Judith Butler constata “a rapidez com que a desigualdade radical, o nacionalismo e a exploração capitalista encontram maneiras de se reproduzir e se fortalecer dentro das zonas de pandemia”. Isso é um apontamento necessário mediante perspectivas nebulosas como a de Jean-Luc Nancy, para quem o Covid-19 “nos coloca em uma base de igualdade, unindo-nos na necessidade de tomar uma posição comum”. Ora, essa base de igualdade é, antes de tudo, aquela pela qual o vírus opera, confinando-nos em estado de vigília e catapultando nossa rendição ao individualismo preventivo: devemos nos prevenir a todo custo. Antes de nos solidarizar com os outros, é preciso vigiá-los.

À distância, pois, uns dos outros, seguimos unidos não em torno de uma causa comum, mas em prol de uma máquina que não pode ser interrompida, a do capital, já incorporado como realidade última e lei geral da vida. É como se, enfim, o vírus viesse a pôr à prova antigos anticorpos, testando coisas como “desempenho”, “resiliência” e “responsabilidade individual”.

Leia as outras partes de O vírus que somos:

I. Perdido en el siglo: A ameaça do que não conseguimos deixar de ser.

III. Estranhamento: A imunidade de uns pela vulnerabilidade dos outros.

IV. Confinamento: Quando a prevenção se confunde com prostituição.

V. Desaparecendo: Uma eugenia à nossa imagem e semelhança.

Poslúdio I: Um golpe brando e a ficha que não cai.

Notas

[1] Conceito que designa uma nova era em que a ação humana figura como o principal motor das transformações geológicas. Ver, a este respeito: Bonneuil, Christopher; Fressoz, Jean-Baptiste. The Shock of the Anthropocene: The Earth, History and Us. London/New York: Verso, 2016.

[2] Este e os demais trechos em língua estrangeira foram aqui traduzidos livremente por mim.

--

--