O vírus que somos: Poslúdio I

Marcos Beccari
4 min readApr 14, 2020

Confira os textos anteriores da série O vírus que somos:

I. Perdido en el siglo | II. Enquadramento | III. Estranhamento | IV. Confinamento | V. Desaparecendo

Poslúdio I

Um golpe brando e a ficha que não cai.

Neste momento, o mundo se divide em dois grupos. O grupo 1 são todas as pessoas que estão diretamente envolvidas no trabalho para controlar a pandemia. O grupo 2 é todo o resto da população mundial. A única função do segundo grupo é deixar o primeiro trabalhar. Não é difícil. Mas, no contexto brasileiro, o grupo 2 insiste em perguntar quando é que a quarentena vai terminar. Ao que o grupo 1 responde com persistência: primeiro a quarentena precisa começar decentemente.

Sim, a ficha. Parece que ainda não caiu. É incrível que a maioria do grupo 2 só consegue pensar em quando voltaremos à normalidade. Ainda são poucos os que já estão percebendo, aos poucos, que a quarentena mal começou. E que, portanto, é preciso pensar na real adaptação de nossas vidas para os próximos meses, talvez um ano, talvez mais de um ano.

Será que um dia cai?

Enquanto isso, o jornal italiano La Repubblica já noticiou, em 03/04/2020, que o general Braga Netto, chefe da Casa Civil, é o “presidente operacional do Brasil”, e que foi dado no país “um golpe branco”, resultado de um acordo entre as Forças Armadas diante dos transtornos provocados pelo presidente Jair Bolsonaro. Após a notícia ter sido estranhamente apagada do site italiano, parte da imprensa independente brasileira já considera Braga Netto um “interventor soft”, já que ele foi o principal responsável pela permanência de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde.

Há quem diga que, na verdade, Bolsonaro deseja e trabalha pelo próprio impeachment. Realmente, governar o Brasil nunca esteve entre as suas ambições — ele mesmo já disse que o Brasil é ingovernável. O problema é que, como vem insistindo Vladimir Safatle, não há nenhuma oposição efetiva desde o início deste governo. Há somente apoio ou omissão.

Para o ator Pedro Cardoso, no entanto, o buraco é mais embaixo. Reproduzo na íntegra um comentário certeiro que ele fez no Instagram:

Sobre a última cena do caso Mandetta. Demitido ou mantido ministro da saúde penso o seguinte:

Para compreender Messias precisamos entender como pensa o torturador, não o político. A morte do torturado é a derrota do torturador. Ao fazê-lo morrer, o torturador perde o seu divertimento. O torturador precisa manter o torturado vivo e com esperança de parar de sofrer.

Quando Messias flerta com o alucinadamente irresponsável Osmar Terra e depois mantém Mandetta ministro ele está exercendo o seu prazer mórbido de nos aterrorizar com o pior para depois nos esperançar com o menos pior. Fosse uma tortura física, Osmar seria o choque elétrico anunciado, mas adiado e Mandetta o tapa na cara que ocupa o lugar do choque. O tapa parece um conforto quando substitui o choque, mas tudo é a sessão interminável de tortura a que estamos submetidos desde que 57 milhões colocaram um torturador no poder.

Tomemos muito cuidado com as artes da tortura. Sentir alívio pelo golpe menos violento é o começo do caminho que nos leva a sermos gratos ao torturador por ele ter poupado a nossa vida. Messias se vale da pandemia para torturar o povo brasileiro com a permanente ameaça assassina de liberar o convívio. Mas sabe que se o fizer corre o risco de matar o torturado: ou de desesperançá-lo: e a tortura, para sua eficiência, depende de manter o torturado cheio de esperança.

Precisamos entender que não estamos lidando com política mas com tortura. Lembrem: ao perceber indignação ao termo “gripezinha” [Trump] Messias foi a TV repeti-lo. Ali o torturador havia descoberto um lugar onde o golpe dói ainda mais. E lá foi ele cheio de prazer repetir a agressão.

Pensar Messias como um político é um erro. Ele tem que ser entendido como que ele é: um torturador. Só assim teremos alguma chance de nos defender. Políticos eram outros. Para nos opormos à Messias é preciso conhecermos como se opera tortura e evitarmos suas armadilhas psicológicas.

Mandetta como ministro da saúde é um tapa na nossa cara. Não chega a ser um choque elétrico porque ele é necessário neste ministério de cegos. Mas Messias é uma agressão covarde e contínua. Pedro Cardoso

Não faço a menor ideia de quais sejam as motivações políticas de Pedro Cardoso. Mas, como um bom poeta, ele tem mostrado domínio na arte de dissecar um monstro. Fato é que uma hora ou outra Mandetta deve cair, e no lugar dele entrará a besta negacionista Osmar Terra (Plana) — [Edit: em 16/04/2020 foi nomeado Nelson Teich, o exterminador de idosos, para ocupar o cargo de Mandetta].

Por enquanto, só a quarentena nos protege. Depois dela, viveremos um novo episódio de Black Mirror. Obviamente não dá para prever muita coisa, apenas que as pessoas mortas não vão ressuscitar. E que ainda estaremos empilhando cadáveres. Assistiremos a uma disputa cada vez mais acirrada entre a direita e a extrema direita. E procuraremos, feito cegos transeuntes, o que sobrou de dignidade nos restos de uma mentalidade bunker.

Eu nunca tive tempo de ter medo. — Nina Simone

Leia as outras partes de O vírus que somos:

I. Perdido en el siglo: A ameaça do que não conseguimos deixar de ser.

II. Enquadramento: A sombra do sol e a normalidade da anomalia.

III. Estranhamento: A imunidade de uns pela vulnerabilidade dos outros.

IV. Confinamento: Quando a prevenção se confunde com prostituição.

V. Desaparecimento: Uma eugenia à nossa imagem e semelhança.

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