O vírus que somos V: Desaparecendo

Marcos Beccari
5 min readApr 12, 2020

Este texto é a parte V da série O vírus que somos, composta de 5 partes.

Partes anteriores: I. Perdido en el siglo | II. Enquadramento | III. Estranhamento | IV. Confinamento | Poslúdio I

V. Desaparecendo

Uma eugenia à nossa imagem e semelhança

Toda peste se dissemina em três etapas: na primeira, ela parece longe e neutra, matando apenas desconhecidos que soam, em nossos ouvidos, como simples dados estatísticos (nessa etapa, insistimos em não acreditar em sua existência); na segunda, a sentimos perto e ameaçadora, matando pessoas notórias, celebridades, conhecidos, amigos, parentes e entes queridos (é nessa etapa que começamos a acreditar em sua existência); e na terceira, quando ela está dentro de nós, já é tarde para lamentarmos o fato de não termos aprendido nada com as duas etapas anteriores (é nessa etapa que ela sobrevive a nós). — Jorge Lúcio de Campos [1]

H á quem diga que o isolamento coercivo face ao Covid-19 tem, na verdade, nos reaproximado, favorecendo o diálogo e a solidariedade. Pode até ser, mas apenas entre aqueles que têm o privilégio de ficar em casa. Neste momento, em todas as penitenciárias de São Paulo os detentos estão produzindo milhares de máscaras — certamente não para a sua própria proteção. Eles estão isolados há muito tempo, e isso nunca os reaproximou de seus familiares e de uma vida em comunidade. Pois a sociedade não apenas persiste em imunizar-se de seus “maus elementos”, como também os coloca à serviço de uma nova campanha imunizante.

Não são processos diferentes: só estamos isolados em casa porque ainda não foi possível isolar este novo mau elemento.

Mas será que o vírus pode ser realmente isolado? Não me refiro mais ao Covid-19. A questão é que, conforme o mecanismo virótico, qualquer um pode se tornar, de uma hora para a outra, um vírus propriamente: estar dentro ou fora da normalidade, ser ou não um risco, é uma fronteira cada vez mais tênue num estado de vigília permanente.

Lembremos que, logo após o 11 de setembro, não eram raras as comparações entre o terrorista e o vírus: ambos são inimigos “sem rosto”, irrompendo súbita e dispersamente em qualquer lugar, à espera de um momento oportuno para explodir de maneira implacável. O limiar desse fantasma foi gradualmente dilatado ao estigma do imigrante. Paralelamente, vimos crescer vertiginosamente a subcultura dos trolls e dos incels [2], passando pelo extremismo da alt-right até culminar nos atuais tweets presidenciais, que funcionam como verdadeiros aparelhos explosivos.

Ou seja, à medida que o inimigo foi assumindo muitas feições (do terrorista ao imigrante, e deste aos chineses, aos comunistas, aos climatologistas etc.), o Covid-19 veio a providenciar uma imagem mais definida do medo coletivo. Trata-se daquela criatura peculiar que, infestando o nosso feed de notícias, tem a forma de um planeta com pequenos cogumelos (ou seriam nuvens radioativas?) distribuídos em sua superfície. De fato, o inimigo universal foi finalmente “descoberto”: um micro-organismo que espelha o nosso mundo.

O paradoxo não reside tanto nessa imagem, mas no imperativo neoliberal segundo o qual, para sobrevivermos ao “vírus”, devemos sacrificar nossas vidas. Para além de um confinamento assimétrico, afinal, somos instruídos a não nos deixar levar por algo tão minúsculo e passageiro — “não podemos tornar a cura pior que a doença”, nas palavras do presidente Trump [3]. Ou, como afirmou o tenente Dan Patrick (governador do Texas), os mais vulneráveis devem se preparar heroicamente para o autossacrifício em nome da economia [4].

Esses senhores estão flertando abertamente com a eugenia. Após o teste de Guantánamo [5], Auschwitz nunca esteve tão perto.

Logo, quando se fala em solidariedade e ensejo revolucionário, ouço apenas um bonito canto humanitário para morrermos menos aflitos. Bella ciao. Mas isso porque talvez eu já esteja infectado. Se for o caso, posso dizer que o contágio não se dá apenas pela atmosfera do medo, mas também pela frieza da racionalidade: o número de mortes cresce exponencialmente, num extermínio irrefreável. É como poder visualizar-se morto enquanto ainda se está vivo. E, mesmo sob esse prisma, a ontologia do vírus permanece intrigante: um vírus não é exatamente um “ser”. Não se pode facilmente pensar que ele está vivo como um inseto, nem morto como uma pedra. Ele só pode existir dentro de um hospedeiro. Fora do nosso corpo, o vírus é inerte. Mas o que significa ser “inerte”? Certamente é algo que escapa a dicotomias como vivo-morto, natural-artificial, eu-outro.

O vírus é o espelho de corpos desaparecendo.

Una mattina mi son’ svegliato / E ho trovato l’invasor […] / E seppellire lassù in montagna / Sotto l’ombra di un bel fior. [6]

Resistenza partigiana, Bella ciao

Leia as outras partes de O vírus que somos:

I. Perdido en el siglo: A ameaça do que não conseguimos deixar de ser.

II. Enquadramento: A sombra do sol e a normalidade da anomalia.

III. Estranhamento: A imunidade de uns pela vulnerabilidade dos outros.

IV. Confinamento: Quando a prevenção se confunde com prostituição.

Poslúdio I: Um golpe brando e a ficha que não cai.

Notas

[1] Campos, Jorge Lúcio. Impertinências. Rio de Janeiro: Clube de Autores, 2019, p. 12.

[2] Abreviação de involuntary celibates (“celibatários involuntários”), como se auto denominavam, nos anos 2000, os membros de fóruns online que pregavam o feminicídio.

[3] Ver, a este respeito: https://www.nytimes.com/2020/03/23/business/trump-coronavirus-economy.html.

[4] Ver, a este respeito: https://www.nytimes.com/2020/03/24/us/coronavirus-texas-patrick-abbott.html.

[5] A prisão de Guantánamo, construída em solo cubano pelos Estados Unidos no ano seguinte ao dos atentados de 11 de setembro, encarcera e tortura prisioneiros supostamente ligados aos grupos Taliban e Al-Qaeda — supostamente porque a maioria dos prisioneiros não passam por acusação nem julgamento formais, portanto não possuem sequer direito à defesa. Embora Barack Obama tenha decretado o fechamento da prisão em 2009 (o que nunca se efetivou), o presidente Donald Trump vem destinando, desde o início de seu mandato, recursos para a modernização das instalações em Guantánamo. Ver, a este respeito: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-49804838.

[6] Tradução livre: “Uma manhã, eu acordei / E encontrei um invasor […] / E me enterre no alto das montanhas / Sob a sombra de uma bela flor”

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