Para aqueles que estão fugindo #10: Like a Rolling Stone

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
7 min readMay 11, 2020

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Observo o subúrbio londrino através da janela do trem que vai do aeroporto ao centro de Londres com um forte aperto no peito, me sentindo completamente desolado, sozinho, perdido — o que me faz lembrar da música Like a Rolling Stone. Estou, afinal, chegando em uma metrópole de outro continente, sem conhecer ninguém, sem um objetivo muito claro de vida e tendo que arrumar emprego o mais rápido possível.

É cedo e as pessoas vão ao trabalho, semblantes endurecidos. Um casal alto e magrelo de ciclistas — parecidos, de alguma forma, com alienígenas — conversam ao meu lado no trem e não entendo nada do seu sotaque britânico. O vendedor de passagens no metrô é um sósia emburrado do Elvis. A cidade parece maluca e agressiva.

O bairro de imigrantes onde irei morar é ao menos interessante. Mulheres em trajes africanos coloridíssimos acompanhadas por suas crianças com dreadlocks por instantes me fazem imaginar que aterrissei no país errado. As vitrines dos inúmeros fast-foods e cybercafés empoeirados exibem anúncios em diferentes línguas e alfabetos. Muitos oferecem serviços de envio de dinheiro ao exterior.

Depois de uma longa e angustiante busca finalmente encontro a casa onde ficarei hospedado. Um casal de homens prestes a se mudar para a Alemanha me recepciona — vou ocupar o quarto onde dormiam. Um deles alerta: “Toma cuidado, viu, em Londres todo mundo tenta passar a perna em todo mundo.”

O pequeno apartamento, num prédio de bloco de tijolos, tem seis moradores, três quartos, uma pequena cozinha, um banheiro e nenhuma sala. O pessoal da casa, que vai chegando após o expediente, é em média dez anos mais velho que eu e todos LGBT+. A irmã de uma conhecida subloca quartos no apartamento. Quando chega do trabalho, à noite, é direta: “O que você tá buscando em Londres,” pergunta. “Ganhar dinheiro,” respondo sem pestanejar, tentando me adaptar à lógica da cidade.

Promete, então, tentar me arrumar emprego no hospital onde trabalha, carregando doentes em macas pelos corredores. Assim como milhares de outros brasileiros, veio a Londres anos atrás atraída pelo alto valor da libra esterlina, em busca de uma nova oportunidade de vida.

Não consigo trabalho nas primeiras semanas. A situação começa a ficar preocupante quando finalmente surge um bico num pub, três noites por semana. Pouco depois consigo o trabalho no hospital e tenho que deixar o pub, por incompatibilidade de horário.

O trabalho é carregar, sozinho, as fichas dos pacientes por todo o velho hospital, com um carrinho de supermercado. É uma tarefa impossível. Leva semanas para decorar os trajetos e aprender a lidar com as secretárias, estressadas com as pilhas de papel desabando nos seus escritórios.

A famosa Londres das festas não existe para mim. Passo de três a quatro horas por dia em trens, ônibus e metrô — quando chego em casa cozinho, janto e caio na cama. De certa forma é a continuação de uma fase de introspecção que começou depois da viagem pela Transbrasiliana. Fico em casa para economizar dinheiro e passo as horas livres lendo ou pensando na vida, protegido do frio por um pesado edredom.

Inspirado nas histórias contadas por Vidroh na agora distante Alto Paraíso, decido visitar um centro zen budista de Londres, localizado numa ruela vizinha a um mercado de rua perto do rio Tâmisa. No endereço indicado, encontro uma portinha velha pintada de preto com uma folha A4 plastificada anunciando os horários de zazen, a meditação zen budista.

Subindo uma escada velha de madeira que range alto a cada passo, encontro uma antessala austera com piso também de madeira, onde algumas pessoas vestidas todas de preto aguardam sentadas em silêncio o início da meditação. O monge careca, de manto também negro, tem a fala afobada e um jeito meio desengonçado. Na sala de meditação, explica para mim e outros dois iniciantes como praticar zazen — basicamente, devemos sentar numa almofada preta e redonda com os joelhos encostados no chão, a coluna ereta e os olhos entreabertos voltados a uma parede, deixando os pensamentos irem.

Apesar do monge ter falado que aquela era uma postura muito confortável, sinto bastante dor nas pernas durante minha primeira meditação. Não sei exatamente se por causa do minimalismo, da simplicidade, do estilo “pé no chão” ou da ausência de baboseiras esotéricas, mas algo no zen me seduz e decido voltar outras vezes. Vou às meditações ao menos três vezes por semana e aos poucos a descoberta do zen vai se tornando o ponto alto da minha vida em Londres.

Ficou combinado desde o início que a minha estadia na casa dos brasileiros seria temporária. Depois de dois meses tenho que achar outro lugar, para dar espaço a uns amigos da moça que aluga os quartos. Encontro uma vaga na casa de uma coreana, bem mais perto do trabalho. Os outros moradores são uma polonesa que trabalha numa academia, um eslovaco encanador, um casal de estudantes do Sri Lanka, uma secretária inglesa de meia idade e meio gótica, atriz nas horas vagas, e a dona coreana e seus dois filhos, que dividem o mesmo quarto.

Compro uma bicicleta e, mesmo com o frio do outono, é maravilhoso respirar o ar da manhã ou do fim de tarde e sentir o vento na cara no percurso entre a casa e o trabalho — o hospital fica afastado do centro e o trânsito é tranquilo.

Trabalho, na verdade, para uma das maiores multinacionais de logística do mundo, que tem um contrato com o hospital público. Meus colegas são portugueses, africanos, sul-americanos, asiáticos. Eles me contam um pouco das suas histórias, os nomes dos filhos, os causos das suas terras natais. São homens calejados pela vida de trabalho braçal, muitas vezes separados por milhares de quilômetros dos entes queridos. Para piorar a situação, a legislação inglesa parece ser frouxa com os direitos trabalhistas, e a empresa vai além dessas brechas para explorar os funcionários ao máximo.

Entre os empregados do próprio hospital estão alguns jovens ingleses da minha idade, entediados, recém-saídos da universidade e sem perspectiva de encontrar trabalho nas suas áreas de formação. Almoçamos juntos todos os dias e às vezes frequentamos os pubs da vizinhança após o trabalho. A amizade vai se fortalecendo com o acúmulo de noites embriagadas no subúrbio pacato.

Essa é a beleza de Londres, finalmente começo a perceber. O cheiro aconchegante de um velho pub, mistura de couro velho e cerveja forte. O pôr do sol melancólico e prateado à espera do trem, que acontece bem cedo no inverno. Imaginar as histórias das pessoas no metrô, de todas as cores, sotaques, vestimentas, vindas de todos os cantos do mundo em busca de uma vida melhor. O inesquecível ranger da escada de madeira na subida para a sala de zazen. A visão de relance, pela vitrine, de um casal jantando num pequeno restaurante coreano mal iluminado. O delicioso abrigo do frio, embaixo do edredom.

Tenho um bom relacionamento com os moradores da casa, mas a coreana é estressada e implica com todo mundo. Por isso volto ao apartamento dos brasileiros quando surge uma vaga. Na mesma semana chega um cara de Curitiba, o Marlon, e passamos a dividir um quarto, onde só cabe um beliche e um criado-mudo. Anos atrás ele foi trabalhar numa estação de esqui por três meses nos Estados Unidos, mas acabou ficando no país por três anos seguidos, trabalhando ilegalmente como garçom em diferentes estados.

Tem um belo repertório de histórias ambientadas em lugares como as montanhas do Colorado e as planícies do Sul — todo o seu ser exala a estrada. Fala afobadamente, olhos arregalados, risadas desmedidas. Pouco escuta, tamanha é a sua ânsia de falar. Planeja, agora, estudar na Inglaterra, dar um tempo na vida estradeira. Mas é só surgir uma ideia de viagem que ele se empolga todo, fazendo planos acalorados. Logo em seguida repreende a si mesmo, lembrando que tem que ficar um tempo tranquilo, trabalhar, estudar.

Com ele escuto canções folk sobre as belezas das montanhas, da estrada, e volto a me encher de planos e empolgação. É um mensageiro chegando ao meu deserto de introspecção, anunciando novas terras e ares. Não gosta de Londres e depois de um mês parte para a Escócia.

Eu já estou em Londres há oito meses e percebo que a grande teia da cidade também começa a me envolver: com meu salário já comprei eletrônicos, roupas e outros objetos que não preciso. Não estou trabalhando, percebo, para seguir viagem, nem para aproveitar a cidade, mas para consumir coisas desnecessárias, que são como uma tentativa inconsciente de dar sentido à rotina repetitiva e mecânica.

Ao mesmo tempo adentramos o forte inverno. Muito frio, céus constantemente nublados e dias incrivelmente curtos. Um plano surge. Já tinha ouvido falar que Barcelona é a “melhor cidade da Europa”. Uma amiga de uma amiga mora lá e o espanhol provavelmente é uma língua acessível.

Entro em contato com ela e, depois de relutar um pouco, compro a passagem só de ida. No último dia de hospital recebo um cartão de despedida assinado por secretárias, recepcionistas, carregadores e colegas de setor: um gesto de carinho de pessoas que, durante os meses de convívio diário, aprendi a gostar e respeitar.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com