Para aqueles que estão fugindo #12: Bonito

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
7 min readMay 22, 2020

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mais de três semanas em Barcelona, vou me tornando apreensivo. Os jornais falam de uma grande recessão mundial e o país com o maior índice de desemprego na Europa é a Espanha. Ouço, em conversas, que até recentemente era fácil para um imigrante conseguir trabalho e ganhar bem em Barcelona, mas isso simplesmente acabou — quase todos os brasileiros que encontro estão desempregados e muitos cogitam voltar ao Brasil.

Sou forçado a superar a timidez e saio todos os dias pelas ruas pedindo emprego de porta em porta, bar em bar, agência em agência, mesmo com meu espanhol quebrado. Sem nenhum retorno. Nos classificados de jornal a grande maioria dos anúncios é de pessoas se oferecendo para trabalhar, não de ofertas de trabalho. Uma vaga de ajudante de cozinha num site chega a ter mil visualizações num dia. As agências públicas de emprego têm filas enormes.

O dinheiro que juntei em Londres dá para passar mais uns dois ou três meses buscando emprego em Barcelona, mas a situação me faz pensar em outras possibilidades. A ideia, desde que deixei a Inglaterra, era ficar até a metade do ano na Espanha e aproveitar o verão para procurar trabalho em alguma ilha grega — um amigo do Marlon ganhava oitocentos euros por mês trabalhando num hotel de Santorini, com alimentação e hospedagem grátis.

Contatos feitos pelo Couchsurfing revelam que abril é um bom mês para chegar à Grécia — ou seja, em um mês e pouco. Acabo encontrando uma passagem de ônibus a Milão, dezessete horas de viagem por incríveis seis euros, na promoção, e uma passagem de avião também barata de Milão a Atenas. Depois de muito titubear, finalmente decido ir à Grécia. Agora restam poucos dias para desfrutar da cidade mais fascinante que já conheci.

Certo dia, uma francesa me escreve no Couchsurfing convidando para uma caminhada nas montanhas. Quando ela chega ao ponto de encontro, de manhã cedo, fico um pouco decepcionado: está acompanhada por um rapaz. Ele é magro, de pele morena, o cabelo meio comprido preso atrás por um elástico. Os óculos de lentes espessas, a camiseta larga e o olhar brincalhão lhe dão um aspecto meio nerd.

“Olá, sou o Bonito, da Sicília!” Graças ao seu sotaque exagerado, teatral, percebo que não é da Itália coisa nenhuma. A francesa, meio envergonhada, conta que é da Índia. Entramos no trem e o papo flui tanto que que chegamos ao destino final do trem e voltamos ao ponto de partida sem perceber.

O indiano é um ser maluco, original, obviamente comprometido em constranger as pessoas e a quebrar os padrões de normalidade — uma espécie de palhaço filosófico. Tem um estilo meio socrático de questionar opiniões formadas, expor contradições, e aproveita o puritanismo da menina para provocar ela de diferentes maneiras, mas faz isso com um mínimo de delicadeza e não chega a ofender.

Entre as suas reclamações sobre o excesso de subidas, no meio da trilha, eu o bombardeio de perguntas sobre a Índia. Suas respostas empolgadas, fantásticas e provavelmente exageradas ou mentirosas fazem meu sonhado destino parecer ainda mais atraente. A francesa acaba ficando um pouco de lado — nossos papos transitam facilmente de assuntos filosóficos e espirituais para molecagens e palhaçadas. Ele se revela bastante sensível, com grande bagagem de leituras e talento para articular ideias. Em seguida ri disso tudo e parece não se levar muito a sério.

Sentimos o surgimento de uma grande amizade, por isso ele pede para ficar na minha casa durante seus três últimos dias em Barcelona. Combinamos de ir, no sábado, a um famoso carnaval numa cidade próxima chamada Sitges.

O “Bonito”, como passo a chamá-lo, chega em casa na sexta de noite. O pessoal de casa bebe cerveja e fuma uns baseados com os amigos, na sala, e ele diz, empolgado, que vai comprar tequila e limões para dividir com todos. Mas eles parecem desconfiados e são frios com ele.

Apaixonado por cachorros — sempre que encontra um na rua surpreende os donos se atirando ao chão em brincadeiras e longos carinhos — , segue o labrador até a porta do quarto do casal e o cachorro começa a latir. O Raul então se levanta e pergunta, exaltado, quase gritando, o que ele quer no quarto — o que quase equivale a chamá-lo de ladrão. O clima fica pesado e nós decidimos ir pra rua.

Foi provavelmente a sua pele marrom e aparência asiática que assustou a todos — alguém se referiu a ele como “paqui”, como são chamados os discriminados imigrantes paquistaneses da cidade. Isso me conduz aos tristes pensamentos de que, por mais que uma pessoa fume não sei quantos baseados ou viva tomando ayahuasca ou LSD, isso não é suficiente para “abrir sua cabeça”. Meus companheiros de apartamento, com seus dreadlocks, tatuagens, piercings e sua suposta rebeldia contra os costumes sociais vigentes, ficaram com medo de um singelo indiano piadista!

No dia seguinte, no trem para Sitges, dividimos um doce — será a sua primeira experiência com LSD. A francesa e uma amiga mexicana viajam ao nosso lado, depois de termos surpreendentemente encontrado elas por acaso na estação lotada. O trem está cheio de passageiros beberrões fantasiados.

Ao chegarmos na cidadezinha, a cena é ainda mais impressionante: milhares de pessoas espremidas por ruelas e fantasiadas de tudo quanto é tipo de coisa enchem os inúmeros bares e caminham em direção à praia. Com o doce começando a bater, as buzinas, apitos e empurra-empurra causam sensações quase claustrofóbicas. Chegamos na praia de areia branquinha e fofa com um grande alívio.

De uma estrutura de som gigantesca sai música eletrônica de qualidade, principalmente belos remixes de canções brasileiras. Palmeiras dançam com o vento em toda a orla e uma igreja branca, iluminada na noite escura, eleva-se no alto de uma colina na extremidade da pequena baía.

Despistamos a francesa e a mexicana e, em minutos, perco o Bonito de vista. De repente ele aparece beijando enlouquecidamente uma mulher, perto do mar. Viro ao lado e vejo uma menina mascarada dançando bem próxima, com um lindo sorrisinho. Trocamos um olhar cúmplice e em seguida beijos ardentes.

Perco o Bonito de vista novamente. Quando nos reencontramos, tempos depois, está obcecado por comprar camisinhas. A sua voz, já engraçada, ganha um toque ainda mais cômico com o seu forte sotaque indiano. “Cara, eu tava tão preocupado com você. Você sumiu e não tem camisinha! Precisamos comprar camisinha, é uma questão de vida ou morte! Você é o meu irmão e não quero que você pegue AIDS!”

Ele não aceita “não” como resposta e sou obrigado a acompanhá-lo por ruas lotadíssimas. Após uma longa busca sem frutos ouvimos falar que um bar tem uma máquina de camisinha no banheiro. Eu me espremo até lá com enorme dificuldade, mas quando chego descubro que a máquina só aceita moedas de um euro. Como só tenho uma moeda, levo apenas uma camisinha. Dou ela ao Bonito, para me livrar da sua insistência, e minto que tenho outra no bolso.

Na praia ele some novamente. Depois de um tempo noto um grupo de curiosos observando algo na praia, em semicírculo. Esse algo, venho a descobrir, é o Bonito meditando. Está sentado, os olhos fechados, as ondinhas chegando a centímetros das suas pernas — às suas costas milhares pulam enlouquecidamente com a música eletrônica.

As pessoas se revezam e chamam os amigos para observar a cena. Entre eles uns moleques espanhóis, que se mostram curiosíssimos e depois inconformados: a água molha a sua calça e ele parece não se importar. Passam então a jogar um pouco de areia e até bebida nele, que continua imóvel, aparentemente em êxtase.

Meu primeiro impulso é partir para a briga, defendendo o Bonito, mas acabo desistindo, em parte por simples covardia, em parte sensibilizado pela lição de paz e amor que o Bonito parece oferecer.

Um longo tempo depois ele finalmente se levanta e corro na sua direção — nos encontramos com um abraço enérgico, fortes tapas nas costas. Está todo sujo de areia, inclusive os óculos, e simplesmente diz, com os olhos radiantes: “Irmão, eu me sinto tão bem!” Segura as minhas mãos e pede, emocionado, para eu sentir a energia. Ao descobrir que as meninas foram embora, comemora com seu sotaque engraçadíssimo: “Ótimo, agora nós podemos ser selvagens!”

Apesar disso já é tarde e não estamos tão inspirados para correr atrás de mulheres — conversamos sentados na areia. Não sentiu a água nas suas pernas, nem a areia que jogavam, apenas uma energia negativa vindo na sua direção. Mas estava imerso numa paz tão profunda que se sentia feliz em aceitar tudo o que lhe mandassem. “É incrível essa energia. Eu nem sinto falta de transar!”

A música acaba por volta das cinco e caminhamos na direção dos bares, esperando o horário do nascer do sol. Na porta de um bar ele reconhece o olhar de uma menina que sentou na sua frente enquanto meditava. Aquele olhar, jamais esquecerá aquele olhar! É brasileira, não fala nada de inglês, e ele muito pouco de português ou espanhol — traduzo umas palavras da breve conversa entre os dois.

Voltamos à praia por volta das sete — está vazia e coberta de lixo. Sentamos numa espécie de pier de pedra enquanto uma finíssima lua nova desponta no horizonte avermelhado pelos raios do sol prestes a nascer. Gaivotas voam em todas as direções e piam alto, o grande mar metálico traz as suas infinitas ondas. Sou então invadido por uma paz suave e profunda, como alguém que tem procurado seu lar perdido a vida toda e finalmente o reencontra. Sinto que poderia morrer, não preciso de mais nada — pura consciência em ondas.

Passamos o dia de domingo dormindo no meu pequeno quarto. Quando acordamos o Bonito já está atrasado para o seu voo, amanhã tem que voltar para seu trabalho na área de TI em Santiago de Compostela. Corremos juntos, quase sem fôlego, até a estação de metrô, nos abraçamos forte e ele segue correndo na direção do trem.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com