Para aqueles que estão fugindo #22: Hippies
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
No começo de julho o movimento no bar aumenta, principalmente nos finais de semana. Os clientes estrangeiros são fáceis de lidar, quase sempre tímidos e gentis. Para atender os gregos, que são maioria, decoro o cardápio e algumas frases básicas em grego — enquanto tento aprender a língua.
Muitos se mostram irritados quando perguntam algo e eu não sei responder. Fruto da experiência como vendedor numa loja turística de Florianópolis, simplesmente deixo a energia negativa vir e ir embora, ao invés de guardar ela comigo. Alguns clientes gregos me olham com desconfiança, pensando que sou albanês — os imigrantes albaneses são bastante discriminados na Grécia. Mas quando descobrem a minha origem brasileira demonstram surpresa e curiosidade pelo ser dos trópicos tão longe de casa.
A Jade consegue trabalho no balcão de um café, com vista pro mar. Atualizamos nossos perfis no Couchsurfing e oferecemos hospedagem na rede ou numa barraca barata deixada por uma turista americana. A primeira hóspede é uma estudante do sul da Espanha, vestida sempre de preto, com alguns piercings no rosto, gordinha, sorridente e de poucas palavras.
Um dia depois da sua chegada levo um susto no trabalho: a Estela, a belga que conheci no camping de Paleohora, entra no bar e sorri ao me reconhecer. Aproveito a tranquilidade do momento — poucos clientes e o chefe ausente — para conversar.
No minuto seguinte surge a figura do seu marido brasileiro, caminhando pelo chão de pedregulhos, o mar azul ao fundo. Tem o porte e a ginga de um gladiador dos filmes de Hollywood: é negro, musculoso, o rosto com traços bem delineados, tem uma barba espessa e longos dreadlocks. Veste apenas um fino pano bege com motivos indianos enrolado na cintura, como uma saia.
Parar em Sougia não estava nos seus planos. Estão morando numa cabana na beira do rio de Preveli, num vale um pouco acima de onde a Jade e eu acampamos, e estavam voltando de Paleohora, de barco, quando perceberam que a Estela esqueceu uma bolsa com artesanatos, fruto de meses de trabalho, na construção abandonada onde dormiram. Por isso pararam em Sougia, no meio do caminho: ela voltará a Paleohora no próximo e último barco, para tentar recuperar os artesanatos, e ele deve esperá-la aqui até o primeiro barco da manhã.
Ao entardecer, depois do trabalho, levo o Pereira para fumar um baseado em casa e ouço sua história. Tem trinta e quatro anos, nasceu e cresceu na periferia de São Paulo e trabalhava como motoboy, aos vinte e quatro, quando foi passar um feriado em São Tomé das Letras, em Minas Gerais. A cidadezinha, um dos picos esotéricos e hippies do Brasil, também é conhecida como a capital nacional do chá de cogumelo.
Nunca mais voltou à rotina maluca da megalópole. Fez umas cinco pulseirinhas toscas e saiu de São Tomé perambulando pelas estradas do Brasil, caminhando a pé, de chinelo, levando apenas a roupa do corpo, dinheiro nenhum e uma garrafinha plástica com pinga.
Um ano depois, no litoral, conheceu a jovem mochileira Estela e sua vida tomou ainda outro rumo. Os trampos melhoraram de qualidade e passaram os anos seguintes rodando o Brasil e a América do Sul, dormindo em praias, ruas, praças, montanhas.
Suas histórias têm cores tropicais, cheiram a selva, metrópoles latinas, transmitem a paz de uma praia de areia branca, águas esverdeadas e um pé de caju ao lado de um casebre de madeira. Envolvem bandidos, guerrilheiros, momentos de sério risco de vida, encontros com seres notáveis, comunidades alternativas, vento, muito vento e noites enluaradas.
Depois de cinco anos rodando a América do Sul voltou a São Paulo pela primeira vez, para visitar. Num boteco com velhos amigos, na Zona Leste, um deles perguntou:
“Diz aí Pereira, você viajou o mundo, mas ainda gosta do Corinthians, né não mano?”
“Porra mermão, Corinthians? Tem tanta coisa importante pra se preocupar na vida, a mulherada, a esposa, a molecada, a comunidade… Pra que se preocupar com time de futebol?”
O choque foi geral: “Caralho! Fizeram lavagem cerebral no Pereira!” — exibe os dentes numa forte gargalhada enquanto narra a história.
Desde essa última visita a São Paulo dividem o tempo entre Europa e Ásia. Vendem artesanato em ilhas badaladas durante o verão europeu — Creta não é uma delas — e conseguem uma boa grana com isso. Outro trabalho são as apresentações de capoeira. No inverno passam meses nas montanhas do norte da Tailândia ou na Índia, onde o custo de vida é baixíssimo e a vida é boa. Às vezes viajam separados por algumas semanas ou meses, quando diz viver romances com mulheres do mundo todo.
De noite, encontramos a espanhola e a Jade num bar. As duas conversam entre si, eu e o Pereira trocamos ideias em português, o papo flui. Bonachão, interrompe a conversa seguidas vezes para passar as cantadas mais melosas e engraçadas na espanhola. Estende a mão em carinhos, cafunés, tudo sem sucesso. Despedimos embriagados sob a noite estrelada e ele vai dormir ao relento na praia, deve madrugar para a esperar o primeiro barco vindo de Paleohora.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.