Para aqueles que estão fugindo #15: Creta

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
4 min readJun 12, 2020

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O Dimitris do Couchsurfing aparece quando o sol já está forte — com quase dois metros de altura, tem que se encolher para caber no pequeno carro, numa cena meio cômica. Explica, se desculpando e resmungando ao mesmo tempo, que a minha mensagem não o acordou e que eu deveria ter ligado.

No caminho até sua casa, conta que à noite vamos a uma apresentação de rebetiko, um estilo de música tradicional da Grécia, de origem turca, que lembra o reggae, com letras sobre o amor, sofrimento, crimes, maconha e haxixe. Percebo que ele mede a minha reação com o olhar ao mencionar essas substâncias, e interpreto o gesto como uma indireta. Sorrio e demonstro interesse.

A família do Dimitris possui uma casa a duzentos metros da praia, num bairro turístico porém vazio nesta época do ano. Fora de temporada três quartos são reservados à galera do Couchsurfing, que pode ficar alguns dias de graça — na temporada alugam a casa para turistas. Após a noite de frio e chão duro no barco, meu quarto parece inacreditavelmente maravilhoso: novo, limpo, com duas camas de solteiro, roupa de cama e banheiro.

Com pressa para ir ao trabalho, o Dimitris estende em uma das camas um mapinha turístico da cidade de Hania, capital da província de mesmo nome. Com uma caneta, marca lugares que devo visitar enquanto oferece uma enxurrada de dicas — pelo seu jeito de falar meio decorado, mecânico, percebo que é um ritual que desempenha com frequência. Depois faz uma pausa e me encara com o olhar.

“Tenho que te fazer uma pergunta. Você fuma?”

“Não fumo tabaco,” digo sorrindo.

“Eu também não” — um largo sorriso cúmplice se forma no seu rosto.

Mesmo assim, mistura tabaco e maconha para bolar um baseado, como é o costume em toda a Europa — antes de acender diz com gosto yamas! saúde! Enquanto fumamos conta, orgulhoso, que a maconha cretense está entre as melhores da Europa. “Todo ano a polícia sobrevoa as montanhas com helicópteros e corta uns quatro mil pés. A erva daqui é de alta qualidade, muito procurada em Amsterdã.” Passa os últimos minutos se lamentando do conservadorismo dos gregos, especialmente em relação à maconha. Então percebe estar atrasado para o trabalho e parte correndo.

Eu tiro apressadamente as roupas da mochila, jogando-as no chão, até encontrar a sunga. No caminho à praia tenho os primeiros e deliciosos vislumbres do bairro. Lembro da Creta de Zorba, o Grego, ao ver as casas com belos jardins, pomares e parreiras, flores selvagens explodindo em cores e perfumes pelas calçadas e canteiros. Na frente de uma edícula um velhinho de longos bigodes brancos acena, “yassas!” olá!

O mergulho no mar transparente e gélido faz todo o cansaço da viagem ser lavado do corpo. Um grupo de homens e mulheres idosos, toucas na cabeça, pratica natação nas águas sem ondas e azuladas como as de uma piscina. Nadando perto deles, viro o corpo e me surpreendo com a magnífica visão de montanhas cobertas de neve, ao longe, no coração da ilha.

De volta a casa percebo que tenho muita fome e vou ao mercado comprar comida para os próximos dias: azeitonas e azeite de Creta, suco de laranja local, tahine, um belo pão integral caseiro, arroz, lentilha, alho, cebola e o maravilhoso queijo feta — branco, forte, feito de leite de cabra. As azeitonas pretas, murchas, são curtidas no sal grosso e é necessário passar uma água nelas antes de comer. Uma delícia.

Após o maravilhoso almoço ando quilômetros por ruas comerciais na direção do centro de Hania. Essas ruas me lembram cidades de praia mais badaladas do Brasil, nada atraentes: letreiros enormes anunciam lojas de autopeças, materiais de construção, artigos de praia — biquínis e boias coloridas dependuradas em prateleiras invadem as calçadas.

Já o Centro Velho, ponto final da caminhada, é lindo de doer. Fico apaixonado pelo antigo porto, o farol se estendendo mar adentro, ao final de uma longa passarela curva. As ruelas, casas e construções de séculos atrás, resquícios de colonizadores como os venezianos e turcos, por instantes são tingidas de alaranjado pelo entardecer.

A caminhada de volta, à noite, é marcada por um forte sentimento de cansaço e solidão. Em casa encontro as vizinhas de quarto, um casal de lésbicas canadenses, que chegou pelo Couchsurfing e acabou alugando um quarto por um mês inteiro. Esse é o sétimo e último mês da viagem que fazem pela Europa e aproveitam para relaxar na idílica ilha. Uma loira e uma morena, belíssimas — imediatamente começo a sonhar em me tornar amante delas.

Tenho tempo apenas de tomar banho e o Dimitris aparece de carro para nos levar à apresentação de música. O show acontece num bar rústico no Centro Velho, perto de uma loja que vende típicas facas cretenses, com versos de poetas locais inscritos nas lâminas. A banda é formada por uma mulher e dois caras, com violão, percussão, flauta e outros instrumentos que desconheço. O som é lindo e vem da alma. O Dimitris, no entanto, vai cochichar algo com os músicos e volta reclamando. Eles não tocam as músicas mais polêmicas — as que falam de haxixe, por exemplo.

Sou aconselhado pelo Dimitris a procurar emprego na vila de Sougia, cinquenta quilômetros ao sul de Hania, e ele ainda promete falar com uma amiga que tem parentes lá. É um lugar tranquilo, paradisíaco, onde centenas de jovens acampam de graça na natureza durante a temporada, num clima de comunidade hippie. Parece o lugar o ideal para passar o verão, quem sabe uns tempos com a Laura — se ela aceitar meu convite para vir a Creta.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com