Para aqueles que estão fugindo #20: Templos sagrados

Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais

Murilo Papantonio
Revista Passaporte
6 min readJul 17, 2020

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Na viagem para Preveli, a Jade passa longos minutos sem dizer nada, o olhar distante, aparentemente mergulhada na visão de montanhas e rios que se sucedem além da janela do ônibus. Eu vou mergulhando aos poucos num sentimento ao mesmo tempo amargo e doce, que parece percorrer as veias, prestes a transbordar pelo peito.

Vez ou outra, tento quebrar o silêncio fazendo alguma pergunta. Ela conta que sua jornada pelo mundo começou em Retimno, dois verões atrás, trabalhando de garçonete no mesmo bar onde pretende trabalhar agora. Nesse meio tempo morou numa kibutz, espécie de comunidade socialista rural em Israel. Foi balconista por alguns meses numa pousada na Palestina e outros num hotel no Cairo, quando fumava ópio misturado com haxixe todas as noites, degustando as dores do fim de um relacionamento. Trabalhou de babá em Londres, se apaixonou na África do Sul e por meses viveu em rincões empoeirados da Austrália, onde pressentiu a presença dos espíritos dos aborígenes há muito tempo assassinados.

Descemos do ônibus na beira da estrada. Nenhum sinal de pessoas ou casas, apenas a uma placa caseira indicando uma trilha, íngreme e poeirenta, que deve levar a Preveli. As mochilas estão cheias, o sol forte, e ainda carrego nas mãos sacolas de supermercado com mantimentos. Caminhamos até umas pedras no alto de um morro, um mirante natural, e sentamos para descansar um pouco antes da descida mais íngreme.

Observo ela de perfil, o cabelo ao vento, a grandiosidade do mar ao fundo, uma visão épica. Ambos sentimos a profunda beleza do momento e o contemplamos sem dizer nada — com uma reverência quase religiosa. Ela então vira o rosto na minha direção, me fitando com um olhar penetrante, e rompe o silêncio: “Às vezes eu me questiono sobre esse caminho andarilho que eu mesma decidi trilhar — mas, em momentos como esse, tenho certeza de que vale a pena.”

Dizem que Preveli é o único lugar na Europa com uma floresta de palmeiras nativas, ou talvez foram trazidas séculos atrás por algum viajante, mas jamais poderíamos imaginar a paisagem estonteante que agora se descortina à nossa frente: um rio de águas verdes transparentes corta a mata e deságua no mar, antes formando uma pequena laguna na praia de areia branca. A única construção humana é um bar de palha, fechado — não há ninguém à vista.

Seguimos por uma trilha margeando o rio e algumas clareiras, pontos de acampamento, ficam visíveis entre as palmeiras e arbustos. Quando escolhemos um lugar para acampar o entardecer já está próximo. Sugiro, com segundas intenções, armarmos só a minha barraca, dizendo que dormindo juntos estaremos mais protegidos do frio — ao mesmo tempo digo que pode ficar à vontade se quiser armar sua barraca também.

Entramos na minha barraca, arrumando as coisas, e acabamos deitados lado a lado, imersos numa conversa franca, o papo eventualmente tocando as feridas da vida. É aí que as máscaras afrouxam, o gelo quebra, e pela primeira vez sinto que seria correspondido se a beijasse. Prefiro esperar.

Voltamos à praia, cinco ou dez minutos de caminhada, e terminamos o dia com um mergulho — essa, além do rio, é a única forma de tomar banho. As estrelas mais fortes já cintilam no céu, pincelado de tons arroxeados. Nadamos por um bom tempo, deliciosamente. Quando voltamos, acendo a fogueira para preparar a primeira refeição. Ela está sentada numa pedra alta, ao lado do fogo, e eu me aproximo com um beijo.

Os dias fluem com o rio, poucas nuvens brancas deslizam no céu azul. Através dessas pontes celestiais, desses templos sagrados que são nossos próprios corpos, vivemos as delícias da natureza, as maravilhas de um mundo de águas doces e salgadas, cascatas e calmas, de pássaros, insetos, ventos e águas que cantam, flores, plantas e peles de cheiros inebriantes. A luz do sol e das estrelas e da lua revelam uma infinitude deslumbrante de cores, tons, sombras, brilhos, penumbras, contrastes. Abraços quentes acalmam, cobras, ratos e pensamentos assustam, beijos queimam, ardem, silêncios dizem, toques derretem.

Em uma semana nesse fluxo, na companhia de serpentes, tartarugas, ratos, pássaros, cabras, insetos, as percepções de espaço e tempo se confundem, fundem — duas pessoas se miram e veem universos, mistérios, belezas, medos, fraquezas, miragens. A energia da terra, do fogo, do alimento, do céu, da água, nutre. O ser ganha força e confiança.

Voltamos revigorados ao hostel, depois de uma semana sozinhos no meio do mato. Vaidosa, passou dias sem banheiro, produtos de beleza, e agora admiro a sua aparência de mulher mediterrânea — seu pai é italiano — ao sair do banho com o cabelo molhado e rímel nos cílios. Caminhamos por ruas e bosques românticos sentindo um aperto no peito — o que será de nós, perguntamos secretamente a nós mesmos.

No farol, em meio a brisa do fim de tarde, ela insinua que poderia se juntar a mim em Sougia. Não tenho certeza se quero um relacionamento e falo para ela ir, sem muita convicção. Acabamos a noite sentados num pátio quadrangular e bucólico entre casas antigas, no coração do Centro Velho. Num momento da conversa, a tensão chega ao ápice e ela explode. É a primeira vez que a vejo ruborizar, demonstrar raiva, ardor, paixão — era o que estava faltando, agora não restam mais dúvidas, quero ela com todo meu ser.

Na manhã seguinte pego um ônibus a Hania. Um rapaz da Letônia, que conheci pelo Dimitris, me hospeda. É uma figura curiosa, prestativa, com sua leva de histórias na bagagem, como quando passou um mês preso por viver na Alemanha sem documentos. Conseguiu emprego no velho porto, vendendo passeios de barco a turistas, e vive numa quitinete alugada.

Enquanto vai trabalhar aproveito para caminhar no Centro Velho. Uma dupla de músicos quarentões, talvez ingleses, cabelos compridos, barbas grisalhas por fazer, roupas maltrapilhas, instrumentos remendados e rostos marcados pela vida, detonam um Sweet Home Alabama com toda a alma, como se tocassem para uma multidão alucinada. Um pouco à frente um velho camponês solitário, a pele morena endurecida pelo sol, dedilha um instrumento de cordas com som asiático — recebe moedas num chapéu de couro no chão.

A coloração do céu atinge tons de verde, laranja, lilás, rosa. Ah! A beleza melancólica do entardecer, a música de rua, o fluxo de gregos, turistas, viajantes, imigrantes se comunicando numa profusão de línguas. As construções centenárias, milenares, a atmosfera mediterrânea e ancestral da Grécia, que é uma mistura, um encontro entre Europa, Oriente Médio, África, Ásia…

Um velho bigodudo acelera uma vespa caindo aos pedaços. Da igreja ortodoxa ecoa, por séculos, a cantoria quase xamânica do padre ortodoxo, lembrando a prece do muezim muçulmano. A cidade floresce com a chegada do verão, a vida percorre minhas veias e não cabe em mim, transborda em êxtases poéticos pelo ar denso e colorido do entardecer.

Após três dias de separação começa a bater uma saudade dolorosa. Conversamos pela internet e convido a Jade claramente para ir a Sougia comigo, mesmo sabendo que já tem emprego garantido em Retimno. Estou aberto para viver um grande amor e não quero me arrepender, como quando houve a possibilidade da Laura vir à Grécia e eu me mostrei indeciso.

De manhã acordo com o celular tocando. O número é desconhecido e levo um susto ao reconhecer a voz da Jade — ela não tem celular e me liga de um telefone emprestado. Diz que teve uma revelação, de que não deve ficar mais em Retimno, pretende antecipar sua ida a Israel, e antes disso quer se despedir de mim. Eufórico, sinto que nos próximos dias, semanas ou meses a terei a meu lado.

Outra boa notícia vem da internet: o Bonito largou o emprego na área de TI na Espanha, está rodando a Europa de carona e sugere abrirmos um “bar tântrico” no norte da Índia, nos Himalaias, daqui a alguns meses. O investimento seria quase zero, alugaríamos uma salinha para vender bebidas, algo simples de comer e poderíamos dormir lá mesmo, no chão. O segredo seria o atendimento, o espírito estradeiro, a meditação, a celebração. A ideia é fascinante. Agora tudo depende do emprego em Sougia dar certo.

Acesse o próximo capítulo aqui ou o capítulo #1 aqui.

*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.

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Murilo Papantonio
Revista Passaporte

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com