Para aqueles que estão fugindo #25: Lyssos
Livro de aventura e busca por autoconhecimento inspirado em acontecimentos reais
Recebo no Couchsurfing a mensagem de um francês, aparentemente viajando o mundo num barco à vela. Depois do trabalho vou ao seu encontro e o reconheço pela cabeleira loira desgrenhada, uma enorme mochila ao lado. Sentamos num bar e, entre goles de cerveja, ele explica que seu plano, na verdade, é rodar o mundo pegando carona em barcos à vela. A estratégia é simplesmente ir às marinas e conversar com os donos dos veleiros, pedindo carona — foi assim que veio da França a Creta. Agora procura um emprego de verão, para juntar dinheiro antes de seguir à África.
Instala sua rede, que tem um mosquiteiro acoplado, a uns cinquenta metros da nossa barraca. Um monte de pedras, restos de alguma ruína, separa o campo de visão. Em alguns dias prepara um lar com objetos que encontra jogados no mato: um estrado de cama pendurado em galhos, com barbante, vira mesa. Duas grandes pedras e uma tábua, banco. Ajudo com os contatos e ele consegue emprego numa loja frequentada por turistas franceses.
Trabalha o dia todo, mas não consegue economizar muito. Quase sempre o encontro bebendo cerveja e enrolando cigarros de tabaco, suas principais fontes de gastos — me pergunto se esses hábitos são uma forma de aliviar certa ansiedade ou inquietação, que transparece pelo olhar.
Vou com frequência ao seu cantinho, saímos para caminhar e nadar. Às vezes discutimos por motivos fúteis mas, como em todas as grandes amizades, isso acaba por reforçar nossa conexão. Falamos sobre a vida, viagens, mulheres, trocamos histórias sobre noites de boêmia — apesar de tímido, não é raro alguma menina deixar sua rede pela manhã, depois de uma noitada.
Outra mensagem chega pelo Couchsurfing, escrita em português, na forma de versos, com ares de profecia. Dias depois seu autor chega pela rua a passos largos, sandália de couro no pé, calça bege, camisa social listrada desabotoada no peito, barba por fazer, um violão na mão. Abraçamos forte, como se nos conhecêssemos de longa data.
É alto, magro, moreno, sorri como um malandro e fala suave como um amante. Demora alguns segundos para eu perceber que vem acompanhado: seu amigo é baixo, um pouco gordinho, olhar distante, cabelo negro bagunçado. Vem da Venezuela e se chama Juan. O Eduardo é do Rio de Janeiro.
Eles se instalam nas redondezas. O brasileiro numa moderna barraca de uma pessoa e o venezuelano na nossa barraca extra. Vendo a movimentação, o francês Pierre se aproxima para conhecer os novos vizinhos. O Eduardo conversa em francês com ele e precisa da minha ajuda para se comunicar com a Jade, pois não fala inglês. O Juan é sorridente, mas não conversa muito com ninguém. Saímos todos juntos para uma volta na vila.
O Eduardo vem a Sougia buscando Gavdos — ele também ouviu a lenda. Mas antes precisa fazer algum dinheiro, diz ter apenas dez euros no bolso. Conta que tudo começou no Rio de Janeiro. Lá, se apaixonou perdidamente por uma portuguesa. Ela voltou pra Europa, eles terminaram. Através da faculdade de filosofia conseguiu um intercâmbio para Paris. O dinheiro veio da participação na produção de um filme obscuro, feito com recursos do governo.
Chegou em Portugal de surpresa, mas a portuguesa já tinha outro. Torrou, então, toda a grana na boa vida de Paris. Agora perambula solto no mundo, o coração ainda dolorido, o violão nas costas. Antes de Sougia fez algum dinheiro tocando violão e passando o chapéu nas ruas de Retimno, onde morou por uns dias num apartamento que encontrou destrancado, o dono provavelmente viajando. O Juan é irmão de um amigo e mora em Barcelona — o Eduardo trouxe o rapaz a pedido da família dele, preocupada com uma suposta apatia ou depressão.
Após alguns dias de convivência com os novos amigos negocio chegar um dia um pouco mais tarde no trabalho, para dormir em Lyssos com eles. O Pierre não consegue folga e o Juan prefere não fazer a trilha. Partimos então eu, o Eduardo, a Jade e um amigo da Bulgária. Após a trilha e um mergulho o búlgaro decide voltar, antes que escureça. Eu e o Eduardo dividimos um doce.
A noite cai, as estrelas fervilham no céu, o LSD começa a fazer efeito: a beleza da natureza ultrapassa os domínios da poesia e da própria beleza. A fogueira arde ao lado de uma elevação da terra, que protege parcialmente o fogo do vento. Uma espécie de gramado se estende por uns cem metros até a praia. Ao redor, a floresta.
O inevitável então acontece: eu e o Eduardo nos empolgamos nas conversas em português e a Jade vai deitar na esteira embaixo de uma árvore, meio chateada. O vento se intensifica e o som agudo causado pela sua passagem pelos galhos e folhas é altíssimo, sinistro. Fico a maior parte do tempo com o Eduardo, ao redor da fogueira. Às vezes corro até a Jade e faço companhia a ela por um tempo, sussurrando no seu ouvido coisas do coração. Ela parece se acalmar com minhas palavras, eu me tranquilizo com o calor do seu corpo.
A natureza é implacável na violência do vento, no ardor do fogo, na intensidade dos sentimentos que apertam e saltam do peito. O Eduardo, completamente nu, toca um violão explosivo, chora em soluços viscerais. Tudo se mistura, gritos vêm das entranhas e ecoam pelo vale, a garganta arde. Abrimos o peito, dividimos dores e amores, o medo se confunde com o êxtase — são a mesma coisa. É a vida em rajadas de vento, no seu fluxo selvagem, sem piedade.
A culpa chega com força. Seria uma invenção dos cristãos que se alojou nas profundezas do meu ser, ou um fenômeno naturalmente humano explorado por eles? Não sei, mas me atinge em cheio, aperta violentamente o peito. Questiono severamente minhas próprias ações e atitudes: algumas causam dor, outras medo. Depois vem a confissão: abrimos nossos corações, entre irmãos, estrelas, o fogo, o vento, o mar.
Aquela barraca moderna foi furtada de uma grande loja. Não, não participou da produção de filme algum. Tinha um trabalho sem vida qualquer, um balcão entediado, um atendimento ao público. Uma vida sem vida. Não, não era pra ele. Ah, a portuguesa! Ainda lembro como ela me chamava na porta de casa, “Eduardo, Eduardo…”
Ah! Aquele sotaque… alguns documentos adulterados, uns contatos, milhares emprestados do banco com documentos falsos. Poderia ter ido atrás da portuguesa quando ela ainda estava no Brasil. Ela foi embora, embora… O suor frio no aeroporto, nove mil euros escondidos pelo corpo e na bolsa. A faculdade em Paris. O voo para Portugal. O voo de volta chorando baixinho, baixinho. A bebedeiras, as festas, a cocaína, as loucuras. As músicas. Como gravar as músicas, sem um tostão? A estrada, o circo, rodopios, Heráclito, o fogo, o fogo, a vida, a vida, porra!
Deitado no chão, contemplo o céu riscado por estrelas cadentes e acompanho, cantando junto a todo pulmão, enquanto o Eduardo toca violão, uma música que vem da minha terra, da infância, do coração: Trem do Pantanal. Sobre os fugitivos da guerra, que também somos nós. E sobre o medo, que viaja por todos os trilhos da Terra. Um ritual poderoso de aprofundamento no espírito seguido pela purificação a fogo. Então a essência eleva-se das chamas e se revela!
O livro sagrado se escreve em toda a natureza, na linguagem mais clara e universal: o segredo é viver com simplicidade, humildade, em harmonia com nossa essência e com todos os seres, apenas isso. É tão simples, e ainda assim esquecemos, nos perdemos… Mas talvez também exista alguma beleza nisso — o regresso do filho perdido permite a graça final, a redenção.
A alvorada se aproxima, o efeito do doce diminui, sentimos o cansaço pesando no corpo. Deito ao lado da Jade, abraçamos com força. Nossa cama é uma esteira, a coberta um saco de dormir aberto, o teto os galhos das árvores balançando com o vento. Foi uma viagem do coração, de cura, de abertura ao fluxo universal de energia.
Acordamos num mundo brilhante, não mais assustador. O café da manhã é devorado com alegria à beira da praia e a Jade conta de um sonho que teve, bem forte e real: era dia e Lyssos, novamente a cidade vibrante de milhares de anos atrás, estava cheia de gente, com trajes estranhos, pra lá e pra cá. Um homem num manto então se aproximou dela e apertou uma faca contra sua garganta — nesse instante ela acordou com o barulho do vento.
*Acompanhe outros textos do autor na revista indō.