Mulheres, Síndrome do Impostor e Profissionais de Tecnologia

Nayara Camargo Massi
6 min readDec 19, 2018

Durante alguns anos de prática clínica e teórica em psicanálise, pude ouvir a constância da devastação no discurso feminino. A sensação de prejuízo das mulheres é consequência marcada em seus corpos pela história da civilização, falta também inscrita pela linguagem no campo psíquico. A falta, sendo alimento para o motor do desejo, abre espaço para a criatividade. Uma vez insatisfeito, a tendência é buscar pela mudança.

Como vimos, os caminhos possíveis para a feminilidade eram as funções domésticas, o gênero determinava o destino do sujeito (veja o artigo Trabalhar e/para Ser Mulher). Contudo, apesar desse lugar estabelecido pela cultura e às custas do adoecimento, as mulheres puderam perceber que tinham a necessidade de outras fontes de satisfação, que não somente a maternidade, e que queriam coisas além do que os homens podiam oferecer. Nesse percurso, outro destino possível para a libido foi através do trabalho. A relação da mulher com o mercado de trabalho vem vencendo muitas barreiras desde então. A luta por espaço em ambientes e profissões antes tidos como masculinos, a preocupação em provar constantemente suas competências e a busca por reconhecimento, são atemporais, não sem sofrimento psíquico.

Há 40 anos, duas pesquisadoras da Universidade do Estado da Geórgia utilizaram pela primeira vez o termo “impostor” para descrever um conjunto de sinais e sintomas, que foram identificados em um grupo de mais de 150 mulheres bem-sucedidas entre 20 e 45 anos. As pesquisadas ocupavam posições de destaque tanto na academia, quanto no mundo corporativo, mas apresentaram sentimentos em comum de inadequação, insegurança, não acreditavam serem capazes por estar onde chegaram, e atribuíam seu sucesso a fatores externos ou temporários.

Clance & Imes (1978) dizem: “Given the lower expectancies women have for their own (and other women’s) performances, they have apparently internalized into a self-stereotype the societal sex-role stereotype that they are not considered competent”. As mulheres então, internalizam o estereótipo social de que não são capazes e duvidam de suas performances e de outras mulheres. Além disso, as pesquisadas falam sobre a ansiedade de viver na eminência de serem descobertas e o medo de que as pessoas de seu círculo social percebessem que elas não eram tão boas assim quanto pensavam. Assim, na distorção da percepção das mulheres em relação a si mesmas no trabalho, nasce a síndrome do impostor.

Atualmente, o fenômeno é popular e bem conhecido por profissionais de tecnologia, pois a síndrome do impostor se tornou cada vez mais comum e acomete a todos os gêneros. Uma recente pesquisa informal, de agosto de 2018, realizada por uma rede social profissional norte-americana, chamada Team Blind, com uma amostra de 10 mil trabalhadores de tecnologia, constatou que 58% dos entrevistados sofrem com a síndrome do impostor. Alguns profissionais relatam seus sinais mesmo após uma década de trabalho em suas funções, outros relatam ter desenvolvido a síndrome após a entrada em um grupo considerado como elite das empresas de tecnologia (FANG — Facebook, Amazon, Netflix e Google). Os gráficos a seguir, mostram os resultados da pesquisa. Gráfico 1 com a média geral de resultados e o Gráfico 2 com a descrição das 17 empresas com maior número de respostas.

São alguns dos sentimentos característicos aos que se identificam com a Síndrome do Impostor:

  • Não acreditam em sua capacidade, mesmo havendo evidências concretas que são capazes;
  • Subestimam sua inteligência, se acham medíocres, inferiores aos semelhantes;
  • Atribuem seu sucesso profissional a fatores externos, como: sorte, engano do contratante, falha do recrutador, episódio pontual por ter se esforçado muito na ocasião;
  • Acreditam que sua “farça intelectual” será descoberta a qualquer tempo.

Embora este fenômeno não seja enquadrado em nenhuma categoria diagnóstica, possíveis consequências correlatas são:

  • Quadros de ansiedade generalizada e pânico;
  • Depressão e frustração por não conseguir alcançar o padrão autoimposto;
  • Há ainda os que trabalham e/ou estudam em constante regime de exaustão, afim de alcançar o inalcançável;
  • Comportamento excessivo de humildade ou bajulação de seus pares, não exercendo feedbacks críticos em nenhum nível;
  • Falta de autoconfiança e baixa expectativa.

Por que surge esse problema? É multifatorial, somos complexos, confeccionados pelas linhas do biopsicossocial, que nos conferem fatores genéticos, comportamentais e culturais e que compõe um inconsciente a cada sujeito, ou seja, uma subjetividade única, pois somos todos diferentes uns dos outros.

No que diz respeito à cultura, toda grande mudança carrega consigo seus efeitos. Observamos sintomas sociais típicos a cada momento histórico, inclusive nesse momento, o da famigerada “quarta revolução industrial”. Seria a ascensão da síndrome do impostor uma reação coletiva e de defesa, à velocidade das mudanças de trabalho na era tecnológica? Inúmeras são as especulações a respeito do tema, com contribuições de diferentes áreas do conhecimento.

Do ponto de vista psicológico, diariamente lemos notícias sobre dicas de como lidar com a situação, sobre a cura da síndrome do impostor e etc. Todavia, e de encontro com a psicanálise, a atenção não está em acabar com o sintoma, pois ele tem uma importante função, precisamos escutar o recado que ele está dando. Então, trago para a reflexão que não há uma receita de bolo, não há como aplicar uma técnica comum a todos. Meditar é ótimo, mas não é algo que vai funcionar pra todo mundo.

O estudo de Clance & Imes mostra ainda, que a hipótese geral é que haja uma relação dinâmica com a história familiar pregressa, como por exemplo, aquele seu irmão gênio ovacionado pela família, e que está sempre à frente de você, ou ainda, a expectativa de seus pais de que você seja sempre o melhor em tudo, são modelos que podem desencadear conflitos de autoimagem na vida adulta.

O sofrimento psíquico, por sua vez, está presente em todos os âmbitos da vida, porém, o que o sujeito faz com esse sofrimento que se apresenta é o que da o tom de suas experiências, que podem ser negativas, patológicas, ou podem ser positivas, quando dada vazão pela criatividade. Podemos agora pensar em alguns caminhos.

O autoconhecimento (spoiler: tema do próximo artigo) é a mais preciosa das soft skills, e me parece a principal estratégia para investigar a sua síndrome do impostor, que certamente é em vários aspectos diferente da síndrome sentida por Maria ou João. Procurar um psicanalista ou um psicólogo pode ser um início para a autodescoberta.

Em análise ou psicoterapia, é possível nomear o que se sente, ouvir a si mesmo, seu inconsciente, e perceber em quais pontos o sujeito se enrosca na identificação com a síndrome do impostor, pois os padrões de autossabotagem sempre se repetem na nossa história. É um processo que possibilita novas recosturas e a criação inovadora de “soluções particulares” para a sua vida.

Referências

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BREUER, J. e FREUD, S. (1893–1895). Estudos sobre a histeria. Obras Completas, (volume 2). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

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DUNKER, Christian. O desejo é a falta do objeto? [YOUTUBE]. Falando nIsso 39. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NOYnvTYq4X4> Acesso em Dez. 2018.

KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino: A mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

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LACAN, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda (2a edição). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LUÍSA, Ingrid. A Síndrome do Impostor faz 40 anos: saiba se você é vítima do autoboicote. Revista Super Interessante: Saúde, 2018. Disponível em: <https://super.abril.com.br/saude/a-sindrome-do-impostor-faz-40-anos-saiba-se-voce-e-vitima-do-autoboicote/> Acesso em: Dez. 2018.

NUNES, Dilmalice; OLIVEIRA, Tony. ’Síndrome do impostor’, um problema trazido à tona pelas mulheres. Coluna Sociedade. Revista Carta Capital [online]. 2018. Disponível: <https://bit.ly/2SBNYfO> Acesso em: Dez. 2018.

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Nayara Camargo Massi

Psicóloga clínica, especialista em psicanálise e em sexualidade humana, e educadora em saúde.