O que é preconceito linguístico?

niva
11 min readOct 9, 2018

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Em 2016, um médico foi afastado do hospital em que trabalhava depois de publicar uma foto com os dizeres “Não existe peleumonia e nem raôxis”. Os erros foram cometidos naquele dia pelo paciente José Mauro, um mecânico de 42 anos. Ao ouvir o termo “peleumonia”, o médico caiu no riso.

Numa matéria sobre o caso, Cássia Silva disse:

A língua portuguesa não pode servir de objeto de vergonha e humilhação.

Mas ela é. A língua portuguesa é alvo do preconceito linguístico, e seus falantes sofrem vergonha e humilhação. Só que não é toda a língua portuguesa que é objeto de preconceito, nem todo falante.

Preconceito é não gostar do outro, não aceitar o que é diferente do que se considera padrão e correto. O homofóbico, por exemplo, odeia o homossexual porque acredita que essa diferença é um erro. Então o que é preconceito linguístico? É achar feio e errado o português que é diferente da norma culta. Pra quem tem esse preconceito, a língua portuguesa certa é a ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogada nos dicionários. Saiu do triângulo escola-gramática-dicionário? É feio, é burro, é errado — não é nem português. Quem tem preconceito linguístico quer que a língua seja igual à gramática.

Mas segundo Marcos Bagno, em seu livro “Preconceito Linguístico”,

Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo… Também a gramática não é a língua.

A receita de bolo de cenoura não inventou o bolo de cenoura. Ele já existia antes; alguém só anotou como se faz. Da mesma forma, as gramáticas foram escritas pra fixar como “regras” certos jeitos de escrever que já eram usados. Isto é, a gramática vem depois da língua! Ela depende da língua pra existir. Como diz Dona Benta:

— A gramática, minha filha, é uma criada da língua e não uma dona. O dono da língua somos nós, o povo; e a gramática, o que tem a fazer é, humildemente, ir registrando o nosso modo de falar. Quem manda é o uso geral e não a gramática. Se todos nós começarmos a usar o “tu” e o “você” misturados, a gramática só tem uma coisa a fazer…

— Eu sei o que é que ela tem a fazer, vovó! — gritou Pedrinho. — É pôr o rabo entre as pernas!

Ou seja, a língua não deve fazer a vontade da gramática, mas sim a gramática a vontade da língua. A língua tá sempre em evolução e não é trabalho da gramática dizer que essa evolução é errada, mas sim se adaptar a ela. Dizer que a língua deve ser igual à gramática, como querem os preconceituosos, seria como dizer que a cidade tem que ficar igualzinha ao mapa, sem construir novas ruas ou prédios, porque a cidade do mapa é a cidade correta.

Isso significa que muito do que a gente hoje em dia considera certo na língua portuguesa já foi considerado errado. Quer ver só? Dá uma olhada neste trecho de um artigo de 1929:

— ‘Percentagem? Ou porcentagem?’

Porcentagem é a forma brasileira, moderna e inútil. A palavra percentagem formou-se na vigência da preposição ‘per’, e como tal se tem mantido e se manterá.

Pra Cândido Figueiredo, o português que escreveu a bobeira acima, porcentagem, com O, era “inútil” e inaceitável, e só percentagem se manteria no dicionário. Você fala PERcentagem ou PORcentagem? Porcentagem, e tá certo; porque a língua mudou e o dicionário se adaptou.

Então o preconceito linguístico não nasceu em 2016, com o post do médico; ele já existia há um século, em 1929. Já existia muito antes, aliás. Você sabe daonde vem a palavra bárbaro?

Coitado do bichinho

Bárbaro, um insulto pra quem é desumano, cruel, brutal, feroz, agressivo, etc etc, vem de βάρβαρος, um xingamento da Grécia Antiga pra estrangeiros; pessoas de outras civilizações, que falassem outras línguas. O termo deriva da onomatopeia βαρ-βαρ (bar-bar), o blablablá deles, usada pra descrever os sons incompreensíveis de quem não fala grego. Quem não fala grego é bárbaro — taí o preconceito linguístico, nascido bem antes de Cristo.

Mas se achar o português do outro errado é preconceito linguístico, então não existe um português certo e um errado? Não! O que é existe a variação linguística.

E O QUE É A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA?

O português não é uma língua uniforme, toda igualzinha; ele varia de acordo com a época, a região e a classe de quem fala. Se antigamente se usava Vossa Mercê como pronome de tratamento, e depois Vosmecê, hoje se usa Você — é a variação ao longo do tempo. Essa variação continua acontecendo, já que a língua está sempre mudando; você não chama nada de prafrentex, igual seus pais (ou avós) chamavam, e eles também não sabem o que é crush.

Já a variação regional é a diferença de uma mesma língua dependendo em qual região do país (ou em qual país) se está. O português europeu não é o português africano, que não é o português do Brasil; da mesma forma, dá pra notar pelo sotaque e pelas expressões se uma pessoa vem do Rio de Janeiro ou de Minas. Quando vem um jovem CHATO encher o saco falando que em São Paulo é bolacha e não biscoito, o que ele tá apontando, da maneira CHATA dele, é a variação linguística regional.

Se a língua varia no tempo e no espaço, ela também varia entre as classes. A parte mais escolarizada da população, que também é a parte mais rica, fala um português muito diferente de quem é analfabeto. Já viu o Haddad dando entrevista? Esses dias ele falou dos “correligionários” do Bolsonaro. O que é correligionário? Quantas dezenas de milhões de pessoas no Brasil não entenderam o que ele disse? É português, mas é o outro português, como diz Drummond:

Ou seja, a variedade linguística que um indivíduo usa depende de quem ele é, de onde ele vem; do seu meio. Ela é influenciada pela sua época, região, classe e vários outros fatores — gênero, raça, rede social preferida... Por isso, a variação da língua é considerada uma expressão da identidade cultural do falante. Nas palavras do linguista inglês Robert Le Page:

Todo ato de fala é um ato de identidade.

Da mesma forma que o acarajé, o berimbau e a roupa da baiana são características culturais que identificam a Bahia, o sotaque e as expressões baianas também são. Um grupo cultural (que é um grupo de pessoas com os mesmas hábitos, crenças e atitudes) pode ser identificado por suas músicas, trajes e comidas típicas, sim, mas também — e principalmente — por sua variação linguística. Bolacha é coisa de paulista, biscoito é coisa de carioca; é por meio da variação da língua que nós nos inserimos em um grupo e sentimos que pertencemos a ele.

O poder que o peido tem. O valor que o peido tem.

Por isso nenhuma variedade é melhor, mais pura, mais bonita, mais correta do que a outra. Toda variedade linguística faz parte da língua como um todo, e é igualmente válida!

Mas isso é na teoria; na prática, só a variedade padrão é respeitada. Quem fala a língua não-padrão é ridicularizado, tido como burro — sofre preconceito linguístico. E isso não se aplica só ao Brasil! Dá uma olhada nesse pôster:

peraí que eu vou jogar no tradutor.

Essa gravura horrorosa foi exibida na Itália, em 1939. A legenda diz: “a quem ainda te chama de ‘Lei’, não o chame pelo ‘Voi’ nem pelo ‘Tu’: chame-o de idiota.

Quem tá afiado em história sabe que a Itália de 1939 era a Itália fascista, prestes a ajudar os alemães na Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro-ministro, Mussolini, vinha proibindo dialetos e expressões regionais — a língua do povo — , pra que o italiano se tornasse puro. Daí a mensagem do pôster acima: os pronomes Voi (tipo o vós) e Tu eram os recomendados, enquanto o Lei (um ele/ela), que vem do espanhol e era muito popular entre os italianos, foi tachado de idiota.

E por quê? Por que quem foge da variedade padrão sofre preconceito linguístico? Porque a língua não é só um instrumento de comunicação. Ela também é um instrumento de poder.

A LÍNGUA COMO INSTRUMENTO DE PODER

arruma essa casa aí ow

Em 1758, o Marquês de Pombal, que era uma espécie de primeiro-ministro de Portugal (não escreva na sua redação que ele era primeiro-ministro de Portugal), publicou o Diretório dos Índios. Segundo essa lei, os índios deveriam adotar sobrenomes portugueses, dividir suas casas em cômodos (à moda europeia), trabalhar a partir dos 13 anos até os 60 e usar apenas a língua portuguesa. Dá uma olhada no artigo 6 do Diretório:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes…

Em outras palavras, a lei diz que impor aos conquistados a língua do conquistador é um dos meios mais eficazes pra dominá-los — e isso é verdade. As línguas indígenas eram um risco pra dominação portuguesa, já que eram parte das culturas indígenas e ajudavam os índios a se reconhecerem e se imporem como índios, não como colonizados; então elas foram proibidas e substituídas pelo português.

Ou seja, a língua padrão é a língua de quem domina. E pra falar de dominação, ninguém melhor do que Pierre Bourdieu.

Um homem de olhares

Pierre Bourdieu (cuidado pra não escrever Bordieu!) foi um sociólogo francês que viveu entre 1930 e 2002 e estudou, entre outros assuntos, a educação. Disse Bourdieu:

A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas também um instrumento de poder. Não procuramos somente ser compreendidos, mas também obedecidos e respeitados.

Ou seja, você não usa a língua só pra se comunicar. Se a língua é um reflexo da sua cultura e de quem você é, ela também é um reflexo do quanto você vale dentro da sociedade — do seu poder. O valor da variedade linguística é o valor do seu falante.

Por isso o preconceito linguístico também é, no fundo, um preconceito social. Contra quem o preconceito linguístico se volta? É contra o médico? Não, é contra o mecânico que fala “peleumonia”. A fala correta, formal que se exige em entrevistas de emprego é a fala do caipira, é a gíria, é o sotaque do nordestino? Não, e isso não é coincidência. Não é coincidência que o português errado seja o português do povo. Se a língua é uma ferramenta de dominação, a língua correta é a língua da classe dominante. E essa é a língua ensinada na escola.

desgraçada!!!! deixa o chico em paz!!!!!!

A escola, portanto, tem um papel na construção do preconceito linguístico — e deve ter um papel em desconstruí-lo. Mas quem é fissurado em corrigir erro de português fica doido quando se fala em desconstruir preconceito linguístico na escola. Então quer dizer que não vão mais ensinar gramática???? É o FIM!

É claro que a escola tem que ensinar gramática, estúpido, não é essa a questão. A questão é como a gramática deve ser ensinada — sob a luz da adequação linguística.

ÚLTIMA COISA, EU JURO. O QUE É ADEQUAÇÃO LINGUÍSTICA?

Não existe um português correto e único que valha pra todas as ocasiões. O português dos contratos de aluguel não é o mesmo dos manuais que vêm na caixa do celular, que não é o mesmo dos cordelistas, que não é o mesmo das crônicas de jornal. Existe um português adequado pra cada situação.

Se é uma situação formal, como uma entrevista de emprego, usamos uma linguagem formal, mais séria; se é uma situação descontraída, tipo um barzinho com os amigos, usamos uma linguagem mais tranquila. Nós adequamos a linguagem ao momento. Como diz Bagno:

É totalmente inadequado, por exemplo, fazer uma palestra num congresso científico usando gíria, expressões regionais, palavrões, etc. Também não é adequado que um agrônomo se dirija a um lavrador analfabeto usando uma linguagem altamente técnica, a menos que queira não ser entendido. Como sempre, tudo vai depender de quem diz o quê, a quem, como, quando, onde e por quê…

Isso porque a língua funciona como um guarda-roupa, do qual você tira um vestido longo quando vai a um casamento e um maiô quando vai à praia. Não é adequado aparecer no casamento de maiô (dependendo do casamento). Da mesma forma, existem situações adequadas pro uso da variedade padrão e da variedade popular. No contexto adequado, toda variedade linguística funciona muito bem. E as variações são muitas.

Por isso, o ensino da língua portuguesa deve reconhecer a diversidade linguística do país, abandonando noções de certo e errado, ou de melhor e pior. Devem-se identificar as diferenças entre a norma culta e as variedades linguísticas, não pra que a norma substitua o falar do indivíduo, mas pra que se acrescente a ele, podendo ser usada quando for adequado.

O professor que trata o desvio da gramática como um erro a ser eliminado reforça o preconceito. A língua faz parte da nossa cultura, da nossa identidade. Rejeitar a variedade linguística do aluno é rejeitar o aluno em si! Identificando-se as diferenças, elas poderão ser respeitadas e valorizadas por todos.

Além disso, considerando que a língua é um instrumento de poder, o ensino deve dar a todos o domínio sobre a língua padrão, como diz a professora Magda Soares:

…não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.

Já quer treinar a redação? Montei uma proposta com o tema Desafios para a valorização das variedades linguísticas regionais. Entendeu o tema mas não sabe por onde começar a escrever? Dá uma olhada na minha apostila de redação do ENEM!

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