Explicação definitiva de LIGHT NOVEL (até segunda ordem); Ou: por que tem tantos animês genéricos ruins?

Thiago Nojiri
12 min readOct 16, 2018

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Qual é a definição de light novel para os japoneses?

I. Introdução

Olá a todos e sejam bem-vindos à esta tentativa de esclarecer tudo sobre as chamadas light novels, desde a sua origem, definição, peculiaridades e até impactos delas em outras mídias (no caso, animês).
Mas antes, queria deixar muito claro que não pretendo, com este texto, desmerecer tantos outros de mesmo teor, como este excelente artigo do Vini Leonardi.

Esta seria uma leitura complementar, e tive dois principais motivos para escrevê-la: 1) ao menos entre os textos e vídeos que encontrei sobre o tema, em nenhum deles tinha uma explicação palpável quanto à definição do que é uma light novel e, por extensão, as suas diferenças para com livros “comuns”; 2) atualmente (outubro de 2018), o que mais tenho traduzido são light novels, em especial o Re:Zero, Shakugan no Shana e No Game No Life, o que gerou uma espécie de senso de obrigação em mim de “custa nada deixar tudo explicadinho”.

Aliás, fiz uma breve thread no Twitter sobre o assunto (onde prometi também que faria este texto haha):

Não deve ser só impressão minha que parece que as light novels meio que caíram de paraquedas no meio otaku brasileiro e todo mundo sabe mais ou menos o que é, só que ainda tá meio confuso e cada um tem uma interpretação própria do que seria.

Por isso, vou buscar esclarecer melhor sobre o tema me pautando na percepção/definição do que é a light novel para os japoneses, bem como o comportamento dela dentro do mercado japonês.

II. Origem

Segundo um artigo publicado no Jornal Yomiuri, a palavra “light novel” teve a seguinte origem:

“O neologismo estrangeiro ‘light novel’ nasceu no início da década de 1990, em uma rede privada de computadores que reunia fãs de livros de ficção científica e fantasia. Foi o host da rede, Keita Kamitaka, quem primeiro inventou o nome.
Segundo ele, ‘precisávamos de uma categoria de livros em que pudéssemos especificar, dentro do infanto-juvenil, as publicações voltadas para adolescentes (os shounens e shoujos).’
‘Cheguei a pensar em comic novel (no sentido de ser parecido com mangás) ou até neat novel, mas no fim, o light (leve) foi o que melhor encaixou’, disse.”

Artigo “Teoria da evolução da light novel”, publicada em 2006.

A partir disso, os tais romances voltados às demografias de shounen e shoujo (leia-se: livros com narrativas e temas semelhantes aos que são encontrados em mangás shounen e shoujo) foram ganhando cada vez mais destaque graças às ações transmídia, isto é, adaptação para animês, mangás e jogos; até ter a sua explosão definitiva no começo dos anos 2000.

Foi também nessa época que os otakus japoneses — fãs tão somente de animês e mangás — passaram a consumir aquele tipo específico de livro em prosa, dando início ao processo de incorporação da light novel como algo da cultura otaku.

III. Definição

Muito bem, então, já temos a primeira definição:

  • Livros em prosa (romances) cujo público-alvo é a exata mesma demografia shounen e/ou shoujo dos mangás.

Contudo, antes de continuarmos, devo fazer uma ressalva: assim como no Brasil e no resto do mundo, nem no Japão existe uma definição clara do que é light novel. A diferença, para os japoneses, é que há consensos, como vou discorrer a seguir, e passado, como foi supracitado (afinal, o bagulho nasceu lá).

OK. Voltando às definições, vamos pelo mais fácil, técnico e talvez o único que seja objetivo:

  • Livros que são publicados por selos de light novel.

Sei que você quer dizer “durr”, mas calma. É fato que não existiam “selos de light novel” antigamente, eles foram sendo criados pelas editoras depois que esse tipo de leitura já estava relativamente difundido. Isso significa que, no fim das contas, tem alguém ali dentro de cada editora que fala “ei, isso daqui tem cara de light novel, vamos lançar pelo nosso selo de light novel”, e ponto. (Claro, o responsável e sua equipe com certeza possui convicções próprias para julgar se uma obra é ou não dessa categoria.)
Apesar disso, o fato da editora ter um selo dedicado é muito conveniente, porque é uma confirmação oficial por parte de quem a publica. Em outras palavras, você nunca vai errar em dizer que é uma light novel o livro que sai pelo selo de light novels de uma editora.

Alguns exemplos:

  1. Dengeki Bunko, da ASCII Media Works (Sword Art Online)
  2. Kadokawa Sneaker Bunko, da KADOKAWA (Konosuba!)
  3. JUMP j-BOOKS, da Shueisha (All You Need is Kill)
  4. Gagaga Bunko, da Shogakukan (Oregairu)
  5. GA Bunko, da Softbank Creative (Danmachi)
  6. KA Esuma Bunko, da Kyoto Animation (Chuunibyou demo Koi ga Shitai!)

A propósito, isso vale para os dois lados: se uma editora que possui um selo dedicado a light novels lança um livro pelo seu selo “tradicional”, por mais que a obra seja infanto-juvenil de fantasia, ela não é light novel. Um exemplo é o your name. (que vai ser publicado no Brasil pela Editora Verus), sendo publicado no Japão pela Kadokawa Bunko, e não a Sneaker Bunko.

Em suma, no stricto sensu, somente os livros que a própria editora disser que são “light novels” podem ser categorizados assim.

“Mas e se eu quiser escrever uma light novel, como eu sei que estou fazendo certo? Só vou saber depois de levar a uma editora?”

Bem, no sentido estrito, sim.
Mas como comentei antes, existem alguns consensos para o sentido amplo, sendo a origem um deles. Outro consenso, apresentado pelo editor e crítico Eiji Otsuka, é o seguinte:

  • Light novels são romances cuja temática recai majoritariamente nos personagens, e não na trama.

Só isso ainda fica meio vago, né?
Por isso, trago citações do escritor de ficção científica Kazuma Shinjo que explicam um pouco melhor sobre esse conceito.

“Na produção de uma light novel, não é o enredo que define um personagem, e sim, a natureza dos personagens é que tem prioridade, onde o enredo deve se adequar a eles.”

Ou seja, o autor primeiro pensa em que tipo de personagem quer criar, seja ele um “colegial normal”, uma heroína de cabelos loiros e tsundere, mascote fofinho e falante ou tantos outros arquétipos e estereótipos que lhe agrade, para então criar um universo e trama em que a existência deles faça sentido, adaptando o enredo de forma que dê destaque às características/elementos que os compõem.
O que Otsuka e Shinjo estão falando é que o foco principal de uma light novel é mostrar o personagem, e não contar uma história.
A partir disso, Shinjo acrescenta:

“As ilustrações e outras formas visuais servem justamente para transmitirem mais rapidamente como é o personagem. A light novel vem se especializando tendo isso como foco.”

E isso tem um resultado imediato: a autonomia dos personagens e o consumo deles, no lugar que, em leituras tradicionais, seria a trama e o roteiro. Fenômeno este chamado por Hiroki Azuma de “consumo de banco de dados”, pois os personagens nada mais são que um conjunto de dados (cor dos olhos/cabelos/pele, biotipo, arquétipo de personalidade, gênero, família e etc.).

A partir desse prisma do “consumo de banco de dados”, Azuma dá a seguinte definição às light novels:

  • Romances escritos de tal forma que, sendo o personagem o seu primeiro plano e a trama o segundo, são os “dados” contidos nos personagens que definem a ambientação toda.

Só para explicar um pouco melhor, light novels trabalham muito com simbologias, estereótipos e clichês, do ponto de vista visual. Não é coincidência que as personagens de cabelos pretos, longos e lisos são geralmente “rígidas, imponentes e inteligentes” ou as que usam óculos e têm cabelos curtos são “frágeis, carinhosas e instropectivas”; é tudo um “acordo cultural 2D” para transmitir rapidamente o que se esperar daquele personagem, só pelo seu character design.

No mínimo, essa é uma característica bastante gritante em light novel, que, se pudesse ganhar outra nomenclatura, certamente seria: character novel (ou, como diz Azuma, “novelização de personagens”).

Saenai Heroine no Sodatekata” faz um excelente trabalho nesse sentido. Só com essa imagem eu consigo dizer com certa precisão como é a personalidade de cada uma e qual o seu papel dentro da narrativa.

E agora… Acho que podemos ir para a última definição.

  • Livros que não têm compromisso em serem escritos com o uso correto da língua japonesa e/ou apresentam uma grande liberdade e flexibilidade de formatação.

Bem, é isso.
Quando eu falo “uso correto da língua”, me refiro exclusivamente à linguagem formal, e não erros de ortografia e gramática. Afinal, light novels também passam por trabalhos de edição e revisão.
Lembram que a nossa primeira definição é que essas obras são a versão em prosa dos mangás shounens e shoujos? Isso se revela também nas escolhas de palavras, onde se admite muito coloquialismo, principalmente a língua falada. Gírias, regionalismos, abreviaturas, apelidos, memes… Tudo pode ser usado, inclusive pelo narrador.
(Não vou entrar em detalhes sobre as diferenças entre a linguagem formal e coloquial no idioma japonês, até porque, tirando alguns detalhes, são basicamente as mesmas que no português.)
Aliás, esse aspecto se dá muito por conta dos autores serem, geralmente, completos amadores no sentido real da palavra, tipo pessoas que nunca escreveram nada na vida, sequer estudaram ou se especializaram. Quando eu tiver oportunidade, quero destrinchar mais essa questão.

Quanto à formatação, me refiro à bold, italic, tachado, sublinhado e tudo que se tem direito, além de aumentar ou diminuir o tamanho da fonte livremente, diagramar do jeito que for conveniente… Nunca vi cores, mas acho que é só por uma questão de custos, porque se pudessem, com certeza teriam textos em vermelho.
Em livros “normais”, essa liberdade toda na formação simplesmente não existe (e nem é aceito), tendo que ser tudo padronizado (alô ABNT! Ou AJNT?). Imagina você encontrar páginas como essas no meio do seu Dom Casmurro:

Tá escrito 殺し, ou “matar”.
Isso é uma página inteira de grito: “AAAAAAAARGH!!”

Deu pra sacar mais ou menos, né? A liberdade é REAL.

Então, resumindo, foram quatro definições:

  1. Livros em prosa cujo público-alvo é a exata mesma demografia shounen e/ou shoujo dos mangás.
  2. A temática recai majoritariamente nos personagens, e não na trama.
  3. Uma vez que os personagens assumem o primeiro plano e a trama o segundo, os “dados” dos personagens é que definem a ambientação.
  4. Não há compromisso com o uso correto da língua japonesa e/ou há uma grande liberdade e flexibilidade de formatação.

Aliás, antes de terminarmos esta seção e irmos para a próxima, lembrei de uma coisa: é muito comum a gente explicar, aqui no Brasil, que “light novels são livros japoneses de leitura leve, com bastante ilustrações e diálogos”.
Bom, embora essa “definição” não esteja errada, até porque é exatamente tudo que expliquei até aqui, eu sempre busco fazer a ressalva de que essa é uma explicação super simplificada, pelas definições que citei acima e principalmente porque ela ignora as duas coisas que faz a light novel destoar de romances tradicionais: o foco absoluto em personagens e a linguagem coloquial.

Talvez, as pessoas que torceram o nariz depois de consumirem a “história” de uma light novel (e suas adaptações), teriam tido uma impressão diferente se conhecessem esse background e as encarassem desde o começo como algo que foge um pouco da curva. Não tenho como saber.

IV. Sobre os “animês genéricos ruins”

Finalmente, vamos falar um pouco do estigma que existe no mercado de animês (não só brasileiro, mas no Japão e no mundo também) que, se você está um pouco que seja por dentro, já deve ter ouvido: existem muitos animês genéricos ruins por temporada e geralmente eles são baseados em light novels.

Não é segredo pra ninguém que vivemos uma verdadeira época de saturação de animês, tendo 30+ estreias por temporada, sendo literalmente metade delas baseadas em light novels. Existem alguns culpados pra esse fenômeno, então vamos lá.

Começando pelo começo, tenho que falar do sucesso estrondoso que tiveram obras mais antigas como Suzumiya Haruhi no Yuutsu (2006), Zero no Tsukaima (2006), Shakugan no Shana (2005), entre outros. Esses animês contribuíram diretamente para que mais otakus fossem procurar e consumir light novels, dando um primeiro “boom” no mercado. Com isso, mais obras de sucesso foram surgindo e sendo adaptadas, como Toradora! (2008), Toaru Majutsu no Index (2008), DURARARA!! (2010), e etc.

A essa altura, a light novel já tinha conquistado o seu espaço entre o fandom otaku, e cada vez mais estúdios de animação foram as adaptando, sabendo que teriam uma boa audiência. O começo dos anos 2010 foi marcado pela enxurrada de animês escolares (porque era isso que tinha feito sucesso na década anterior, vide TODOS os exemplos que citei): Oreimo (2010), Haganai (2011), Oregairu (2013) e outros.

Só que na mesma época, especificamente em 2012, ELE aconteceu.
Sim. O Sword Art Online.
Era o início de uma nova era nas light novels e, principalmente, nos animês.

“ELE”

O SAO foi um sucesso tão absoluto que, sozinho, foi o responsável pelos 15 animês de light novel e 10 de isekai por temporada.

Foi graças ao SAO que os estúdios tiveram a certeza de que o otaku japonês adorava aquele tipo de história: um garoto “comum” que é transportado para uma realidade alternativa onde pode se tornar o maior herói de todos.

Escolinhas não estavam mais com nada, legal mesmo era fazer a jornada do herói (shounen), usar poderes especiais (shounen) e ser o mais foda de todos (shounen). Lembram que a primeira definição de light novel é que ela é um mangá shounen em prosa? Pois é.
Pra melhorar ainda mais, o conceito de “mundo alternativo” facilitava o emprego do outro elemento crucial para uma light novel: a valorização dos personagens acima da trama. Ou seja, em um mundo paralelo, nunca vai ter um personagem que “não faz sentido estar naquele universo”, porque vale tudo. O autor é livre pra criar o personagem que ele quiser e colocar dois deles que não têm nada a ver do ponto de vista estético no mesmo balaio.

(Aliás, essa questão toda envolvendo a priorização dos personagens é exatamente a indignação do Leo Kitsune no vídeo dele sobre Goblin Slayer, lá pelos minutos 32:00.)

Foi a partir daí que as coisas começaram a desandar. Os estúdios descobriram o seu novo caça-níquel, e com o mercado de light novels aquecido desde 2010, o que não faltava era gente amadora fazendo suas histórias e publicando a torto e a direito, seja por editoras ou pela internet.

O problema foi que, no meio desses 15 isekais que tentavam ser como SAO, todo ano surgia algum que fazia bastante sucesso. Não como o SAO, mas um sucesso notável: Log Horizon (2013), No Game No Life (2014), Overlord (2015) e Re:Zero (2016).

Versão brasileira de Re:Zero, lançada pela NewPOP Editora. EU SOU O TRADUTOR, LEIAM!

Então, a cada ano que passava, os estúdios iam perdendo cada vez mais a mão, esperando que aquele isekai que escolheu seria o próximo medalhão. Por conta disso, é óbvio que muita coisa vai parecer “genérico”, porque todos são literalmente SAO frustrados.

Uma coisa que eu gostaria de pincelar, que já falei lá em cima, é que muitas das light novels recentes são praticamente fanfics, criadas e escritas por pessoas que nunca pararam pra estudar estruturas narrativas ou se aprofundar o mínimo que seja no aspecto técnico da escrita.

Na esmagadora maioria das vezes são otakus que, com o crescimento explosivo do mercado, viram uma oportunidade de também dar vida ao seu mundinho que sempre sonhou viver, depois de ser influenciado diretamente pela onda recente de isekai (fantasia no geral) e indiretamente pelos shounens que leu quando criança.

Eu aposto com você: não existe otaku que nunca tenha lido shounen quando criança ou adolescente. A questão é que, assim como qualquer ser humano, os otakus também envelhecem. A imersão no mundo dos shounens não é mais tão divertida quanto era antes (leia o meu outro texto que explica sobre essa imersão e os shounens). Por isso, eles fazem adaptações que represente melhor a sua imersão (ou até escapismo), na forma de um mundo alternativo onde possa ser o mais forte de todos sem se esforçar tanto, cercado por mulheres bonitas.

Em uma próxima oportunidade, quero falar especificamente desse pessoal “recente” que tá escrevendo light novels, principalmente no site de compartilhamento de histórias chamado Syosetsu-ka ni Narou (“Vamos ser escritores”, em tradução literal), e as minhas considerações sobre o perfil do otaku moderno.

Talvez eu faça outra thread no Twitter, que você pode conferir aqui: twitter.com/nojiri_s

Mas por hoje acho que é isso. Espero ter dado uma perspectiva nova com relação às light novels, e qualquer coisa, podem me procurar pelo Twitter ou pelo e-mail: nojiri.silva@gmail.com.

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