O papel do ridehailing na integração modal: análise de dois casos na América Latina

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6 min readOct 8, 2019

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Desde que aplicativos de ridehailing surgiram, já inseridos em sistemas de transporte complexos, a vocação do serviço tem sido debatida. Tais aplicativos, como a DiDi (que opera sob a própria marca no Chile, Colômbia, Peru e México, e sob o nome 99 no Brasil), realizam a intermediação entre motoristas e passageiros, ofertantes e demandantes de viagens urbanas privadas.

Uma vez que as viagens começam e terminam livremente no espaço e no tempo, há uma diversidade muito grande nas formas como podem ser feitas, bem como há liberdade de combinação entre diferentes modos de transporte. Especialmente, nota-se um grande padrão: o uso de viagens para acessar o transporte público coletivo.

Este artigo apresenta hipóteses e dados relacionados a uma das formas de uso já consolidadas do ridehailing: o uso para se acessar o transporte público coletivo tradicional, especialmente o estrutural — composto por trilhos ou linhas de BRT.

Impactos positivos

Tais viagens, multimodais, conhecidas como first- ou last-mile, são desejáveis não apenas por alimentar o transporte coletivo, mas também por serem mais eficientes a seus usuários e à sociedade.

Do ponto de vista individual, uma pessoa, ao decidir qual modo de transporte irá utilizar, provavelmente escolhe o modo que tem a melhor combinação entre duração (velocidade), custo, versatilidade e conforto (1). Se essa pessoa pode combinar diferentes meios, a possibilidade de maximização de seu bem-estar é ampliada. Ela pode economizar tempo, dinheiro, ter mais conforto ou uma combinação de fatores.

Socialmente, há substituição de viagens feitas unicamente de carro ou moto e um ganho de acessibilidade urbana. Na América Latina, boa parte das cidades médias têm oferta de transporte público insuficiente, dados os desafios logísticos e financeiros da operação em locais com baixa densidade. Ônibus, especialmente, têm baixa confiabilidade e frequência. Naquelas cidades em que há boa infraestrutura de trilhos e capilaridade de ônibus, há uma luta com problemas resultantes da demanda crescente, combinada ao baixo investimento em infraestrutura. Ainda pior é a situação daqueles cuja distância entre residência e emprego é alta, geralmente pessoas mais pobres que vivem na periferia das cidades. Nesses locais, a primeira e a última milha feitas com ridehailing se tornam interessantes na medida em que viagens de carro e moto podem ser substituídas por deslocamentos de carro e transporte público, bem como aumentar a acessibilidade daquelse que residem longe do metrô (2).

São Paulo e Rio de Janeiro (Brasil): padrões consolidados

Em São Paulo, por exemplo, aproximadamente 10% das viagens da DiDi/99 começam ou terminam em estações de metrô ou trem ou terminais de ônibus.

Torna-se evidente que essas viagens são de primeira/última-milha quando olhamos para seu padrão horário e de distribuição geográfica.

Na Imagem 1, abaixo, as linhas azuis são viagens que começam em qualquer lugar e se destinam à estação Tucuruvi, uma das estações finais da Linha Azul do Metrô de São Paulo, que liga a Zona Norte (residencial) à Zona Sul (residencial), passando pelo Centro da cidade. É possível notar que as viagens se destinam de Nordeste da cidade, onde o metrô não chega.

Imagem 1 — Viagens (linhas mais finas) que começam em qualquer ponto da cidade de São Paulo (Brasil) e se destinam à Estação Tucuruvi do Metrô (linha mais grossa). Nota-se que as viagens conectam o Metrô a uma região da cidade não servida por ele.

Enquanto as corridas destinadas a estações têm seu pico durante a manhã, aquelas que partem delas se concentram no fim da tarde. Isso é outro indício de que essas viagens são de primeira e última milha, na medida em que desviam do padrão de distribuição de três picos (manhã, almoço e tarde) de demanda durante um dia típico. Essas curvas podem ser vistas nas imagens 2 e 3, abaixo.

Imagens 2 e 3 — Distribuição horária das viagens 99Táxi e 99Pop que terminam (gráfico da direita) ou começam (gráfico da esquerda) em estações de metrô, trem, BRT e terminais de ônibus de São Paulo (linha laranja) e do Rio de Janeiro (linha amarela). Nota-se que existe um padrão de alimentação do transporte estrutural pela manhã, enquanto, no fim da tarde, as pessoas utilizam o ridehailing para deixar as estações.

Santiago (Chile): o mesmo padrão

Após adquirir a 99 em 2018, a DiDi iniciou suas atividades em outros países da América Latina além do Brasil. Neles, já percebemos o mesmo padrão de complementariedade com o transporte coletivo descrito acima.

Em Santiago, cujas atividades da DiDi começaram em 2019, é possível notar o mesmo padrão. Já hoje, aproximadamente 7.5% das viagens da DiDi na cidade começam ou terminam em estações do Metro de Santiago. A Imagem 4, abaixo, mostra onde começam as viagens destinadas à estação Pudahuel. Nota-se que elas começam a norte e a leste da estação; a oeste, há outras estações, que devem atrair as viagens mais próximas delas e, a sul, a linha continua e há estações mais próximas para quem mora nesta região.

Imagem 4 — Viagens (linhas mais finas) que começam em qualquer ponto da cidade de Santiago (Chile) e se destinam à Estação Pudahuel do Metrô de Santiago (linha mais grossa), situada no ponto em que a Linha Azul do Metrô muda de direção (de oeste-leste para norte-sul). Nota-se que as viagens conectam o Metrô a uma região da cidade não servida por ele.

Como será o amanhã?

Vale mencionar que o first- e last-mile usando ridehailing potencializa seus efeitos positivos, como aumento de acessibilidade, diminuição da demanda de vagas de garagem, e, até, o PIB, através de aumentos de acessibilidade (3).

O ridehailing, hoje, abre portas para um futuro no qual o transporte urbano será consumido como um serviço (Mobility as a Service, ou MaaS). A existência da MaaS abre uma janela de mudança na escolha individual de médio prazo: as pessoas não precisam mais se preocupar em comprar um automóvel, motocicleta ou bicicleta. Essa alteração na escolha de médio prazo se desdobra em escolhas modais de curto prazo; isto é, feitas no preciso momento em que alguém decide qual modo utilizará em um deslocamento (4). A partir do momento em que não possui mais um carro, uma pessoa não tem a opção de escolher dirigir o próprio veículo na hora de se deslocar e comparará o preço, duração e conforto dos modos à sua disposição. Por exemplo: se uma pessoa resolve ir ao mercado que fica a 500m de sua casa, ela não escolherá ir de carro. Aumenta, então, a chance de que ela escolha um modo ativo, coletivo, ou use mais de um modo na mesma viagem.

Isto já é visto em São Paulo, onde usuários de ridehailing utilizam 7,5 vezes mais os modos coletivos e 2 vezes mais os ativos do que motoristas de carros e motos (5). Além disso, pessoas que não possuem veículos automotores tendem a dirigir menos, diminuindo, inclusive, sua pegada de carbono (6).

Para que caminhemos nessa direção, precisamos trabalhar hoje para criar soluções que facilitem a integração modal. Por exemplo, pontos de embarque e desembarque designados em estações ajudam não só a organizar o tráfego do entorno, mas criam facilidade e estimulam os usuários a adotarem esse comportamento. Outra forma de diminuir a fricção na transferência modal é ter modos de pagamento integrados, permitindo que o passageiro utilize o mesmo meio de pagamento para pagar ambas viagens, ou que ele pague apenas uma vez pelos dois modos, ou, ainda, que ganhe descontos em um modo após utilizar o outro.

First- e last-mile usando ridehailing potencializa seus efeitos positivos, como aumento de acessibilidade, diminuição da demanda de vagas de garagem, e, até, o PIB, através de aumentos de acessibilidade.

Para avançarmos ainda mais nesta direção, precisamos trabalhar hoje para criar soluções que facilitem a integração modal, como pontos designados de embarque e desembarque, bem como modos de pagamento integrados, além de regulações modernas e não restritivas.

Referências

1Domencich, T. A., & McFadden, D. (1975). Urban travel demand: a behavioral analysis. (D. W. Jorgenson & J. Waelbroeck, Eds.) (1st ed.). Amsterdam; Oxford: North-Holland Publishing Company.

2https://blogs.worldbank.org/transport/how-can-shared-and-demand-mobility-complement-public-transit

3Haddad, E. A., Vieira, R. S., Jacob, M. S., Guerrini, A. W., Germani, E., Barreto, F., … & Sayon, P. L. (2019). A socioeconomic analysis of ride-hailing emergence and expansion in São Paulo, Brazil. Transportation Research Interdisciplinary Perspectives, 100016.

4McFadden, D. (1999). Rationality for Economists? Journal of Risk and Uncertainty, 19(1–3), 73–105.

5https://medium.com/para-onde-vamos/analisando-dados-da-od-2017-i-usu%C3%A1rios-de-aplicativo-s%C3%A3o-multimodais-f5bdbf509e4e

6Martin, E. W., & Shaheen, S. A. (2011). Greenhouse gas emission impacts of carsharing in North America. IEEE transactions on intelligent transportation systems, 12(4), 1074–1086.

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