Arquipélago Gulag (3/6)

Hemanuela P
7 min readApr 19, 2019

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Artigo 58 e torturas

“É impossível governar homens honestos. O único poder que qualquer governo tem é o de reprimir os criminosos. Bem, então, se não temos criminosos o bastante, o jeito é cria-los. E fazer leis que proíbem tanta coisa que se torna impossível viver sem violar alguma. […] basta criar leis que não podem ser cumpridas nem ser objetivamente interpretadas, leis que é impossível fazer com que sejam cumpridas a rigor, e pronto! Temos um país repleto de pessoas que violam a lei, e então é só faturar em cima dos culpados”. A revolta de Atlas, Ayn Rand (posição 9702 e 9704, Kindle)

As atividades contrarrevolucionárias foram duramente combatidas na Rússia com base no artigo 58 do capítulo especial (crimes contra o Estado) do Código Penal de 1926.

O artigo cobria as seguintes ofensas¹.

58-1. "Contra-revolucionário" é entendido como qualquer ação dirigida para a derrubada, subversão ou enfraquecimento do poder dos conselhos operário-camponeses ou de seu governo trabalhador-camponês da URSS (de acordo com a Constituição da URSS e as constituições das repúblicas sindicais) , as repúblicas sindicais e autônomas, ou a subversão ou enfraquecimento da segurança externa da URSS e os ganhos fundamentais econômicos, políticos e nacionais da revolução proletária.Em consideração à solidariedade internacional de interesses de todos os trabalhadores, os atos também são considerados "contra-revolucionários" quando dirigidos a qualquer outro governo de trabalhadores, mesmo que não façam parte da URSS.

Os tipos de traição eram classificados em:

58–1a. Traição: sentença de morte ou 10 anos de prisão, ambos os casos com confisco de propriedade.58–1b. Traição cometida por militar: sentença de morte com confisco de propriedade.58–1c. No caso de fuga do traidor sujeita ao 58–1b (somente pessoal militar), seus parentes ficarão sujeitos à 5–10 anos de prisão com confisco ou 5 anos de exílio na Sibéria, dependendo das circunstâncias (ou ajudaram ou sabia e não relatava ou simplesmente vivia com o ofensor).58–1d. Não relato de uma traição por um militar: 10 anos de prisão. Não relato de terceiros: ofensa ao artigo 58–12.

Soljenitsin menciona o caso de um conhecido, de origem ucraniana, que havia mudado de país para trabalhar. Sem ter como provar sua motivação, foi preso e condenado pois na Ucrânia havia um artigo que considerava como delito a simples intenção. Você, como Soljenitsin e como eu, deve estar pensando: como alguém pode julgar a intenção? Pois bem, numa coletânea do Instituto de Política Penal temos o seguinte comentário “Nós não fazemos diferença entre a intenção e o próprio delito e nisto reside a superioridade da legislação soviética sobre a burguesa”. ²

58–2. Revolta armada ou intervenção com o objetivo de separar o poder: passível de pena de morte. Poderia ir desde a expulsão das fronteiras da URSS, perda da liberdade, reconhecimento formal como “inimigo dos trabalhadores” e confisco de bens.58–3. Contatos com estrangeiros “com propósitos contra-revolucionários” (como definido por 58–1) estão sujeitos ao Artigo 58–2.

Qualquer contato, por mais simples que fosse, poderia gerar prisão. Ex.: consertar a bota de um militar estrangeiro. Pasme.

58–4. Qualquer tipo de ajuda à “burguesia internacional” que, não reconhecendo a igualdade do sistema político comunista, se empenha em derrubá-la: punição semelhante à 58–2.58–5. Apelo a qualquer entidade estrangeira para declaração de guerra, intervenção militar, bloqueio, captura de propriedade do Estado, quebra de relações diplomáticas, quebra de tratados internacionais e outras ações agressivas contra a URSS: semelhante ao 58–2.

Aqui há uma ironia bem interessante. Alexander faz uma crítica ao fato de que Stalin e seus diplomatas e militares poderiam ser enquadrados nesse artigo já que “quem senão eles arrastou a Rússia para vergonhosas e nunca vistas derrotas?”.

58–6. Espionagem. Punição: semelhante ao 58–2.

A espionagem era, de acordo com Soljenitsin, tão ampla que parecia que a subsistência do povo russo “não se apoiava na agricultura, nem na indústria, nem em qualquer outra coisa, senão na espionagem estrangeira”. E o julgamento não era pela descoberta da espionagem em si, com provas e fatos. Um cidadão russo poderia ser peso pela PE (presunção de espionagem) e END (espionagem não declarada). Os espiões poderiam ser qualquer um, em qualquer lugar, até mesmo dentro das prisões. Não era possível confiar em ninguém.

58-7. O enfraquecimento da indústria estatal, do transporte, da circulação monetária ou do sistema de crédito, bem como das sociedades e organizações cooperativas, com finalidade contra-revolucionária (como definido por 58-1) por meio do uso correspondente das instituições estatais, bem como opondo seu funcionamento normal: mesmo que 58-2.

Toda luta revolucionária era pela posse dos meios de produção mas, “quando pela primeira vez os bens passaram a ser propriedade do povo, centenas de milhares dos seus melhores filhos se lançaram inexplicavelmente a atividades nocivas”. Aqui é onde entram as sabotagens mencionadas na Parte 2. O governo entendia que todos os problemas no plantio, colheita ou distribuição eram propositais.

58-8. Atos terroristas contra representantes do poder soviético ou de organizações operárias e camponesas: o mesmo que 58-2.

Atos terroristas não eram bombas ou grandes crimes. Na verdade, qualquer dano contra alguém do partido podia ser enquadrado nesse artigo. Exemplo: “o assassinato de um ativista nunca se podia comparar com o assassinato de um homem comum”. Se o crime fosse contra um cidadão qualquer, aplicava-se o artigo 126 (direito comum), se fosse do partido, aplicava-se o 58-2.

58-9. Danos de transporte, comunicação, abastecimento de água, armazéns e outros edifícios ou propriedade estatal e comunal com finalidade contra-revolucionária: o mesmo que 58-2.58-10. Propaganda e agitação anti-soviética e contra-revolucionária: pelo menos 6 meses de prisão. Nas condições de agitação ou guerra: o mesmo que 58.2.

Propaganda e agitação podiam ser só conversas entre amigos ou uma simples carta.

58-11. Qualquer tipo de ação organizacional ou de apoio relacionada com a preparação ou execução dos crimes acima mencionados é equiparado às ofensas correspondentes e processado pelos artigos correspondentes.

Para haver uma organização eram necessárias apenas duas pessoas. Como no caso de Soljenitsin, seu amigo e ele, trocando cartas. Esse artigo servia como agravante aos demais.

58-12. Não relatar uma "atividade contra-revolucionária": pelo menos 6 meses de prisão.58-13. Luta ativa contra o movimento revolucionário do pessoal czarista e membros dos "governos contra-revolucionários" durante a guerra civil, como 58-2.

Muitos antigos espiões da polícia secreta czarista foram presos por esse artigo. Mais tarde, muitos outros membros de outros partidos ou dissidentes.

58-14 (acrescentado em 6 de junho de 1937) "Sabotagem contra-revolucionária", isto é, a não execução consciente ou a execução deliberadamente descuidada de "deveres definidos", visando o enfraquecimento do poder do governo e do funcionamento do Estado. o aparato estatal está sujeito a pelo menos um ano de privação de liberdade, e sob circunstâncias especialmente agravantes, até a mais alta medida de proteção social: execução por meio de tiro com confisco de propriedade.

Essa subjetividade na análise era intencional pois “delimitar o premeditado e impremeditado, só o comissário instrutor podia fazê-lo, com base no seu sentido revolucionário do direito”.

Camponeses que não entregavam mantimentos, reclusos que não trabalhavam o suficiente, delinquentes que fugiam, todos esses tipos eram enquadrados aqui.

Eram tão variados os motivos de prisão que “aquele que desejasse definir cientificamente a sua conformidade com alguma lei estouraria os miolos”. O que realmente regia as detenções, conforme Soljenitsin explica, era a necessidade de cumprir uma cifra de detenções. “O resto dependia da habilidade dos agentes”.

Alguns exemplos de prisões com condenação à 20 anos de detenção:

- um técnico eletricista — pois em seu setor quebrou-se um cabo de alta tensão

- um encanador que desligava o rádio do quarto quando transmitiam cartas a Stalin (o vizinho denunciou-o.

- um padeiro que riscava sua assinatura em jornais e eventualmente riscou sobre as fotos de Lenin (assinaturas sobre o rosto do Pai e Mestre). Os vizinhos viram no lixo e o denunciaram.

“O próprio conceito de culpa foi suprimido pela revolução proletária, e no começo dos anos 30 foi declarado oportunismo de direita. Não podemos continuar, pois, a especular com esses conceitos antiquados de culpa e inocência”, enfatiza Soljenistin para explicar qual era a lógica do pensamento do Partido Comunista.

Quanto as torturas pelas quais eram submetidos os presos, Alexander diz que era uma necessidade do próprio processo que houvesse tortura. Como obrigar confissões se não por meios violentos? Soljenistin comenta o discurso de um especialista em direito que lembrou que

“para a humanidade, nunca é possível estabelecer a verdade absoluta, mas apenas a verdade relativa. […] em consequência, a verdade estabelecida pela instauração do processo e pelo próprio processo não pode ser absoluta, mas simplesmente relativa”.

Dessa forma, qual seria a conclusão mais prática? A de que era tempo perdido buscar provas documentais absolutas e testemunhas irrefutáveis. Um juiz poderia muito bem, apoiando-se na sua inteligência e na intuição de membro do partido, obter provas relativas sem sair de seu gabinete.

As principais formas de tortura eram:

- uso da psicologia: persuasão (seria condenado de qualquer forma, por quê não assumir logo a culpa?), insultos grosseiros, contrastes psicológicos no tratamento (bom e/mal), humilhação prévia, desconcentração (uma investigadora despir-se, por exemplo), intimidação (me agrade e talvez consiga um gulag melhor), mentiras, uso da figura das pessoas próximas (ameaçadas)

- físicas: sons, cócegas, apagar cigarro na pele do preso, não apagar a luz da cela, permanecer de pé (às vezes um dia inteiro), uso de boxes (caixas nas quais só cabia um homem de pé, às vezes com percevejos dentro), ficar de joelhos sem apoiar-se nos calcanhares, calabouços (alguns com água gelada até os joelhos), fome, espancamento, esmagamento das unhas, camisa-de-força, fratura de espinha dorsal, freio nos dentes (prender a boca e com amarras atar as mãos nas costas).

“Irmão! Não censure aqueles que caíram em tais situações e que se mostraram fracos e assinaram o que não deviam… Não lhes atire pedras”.

Concluindo o capítulo, Soljenitsin comenta uma das suas maiores dores nesse período: a das fornalhas de Lubianka, onde seus diários foram incinerados. Ele conta que havia lá muito mais manuscritos, provavelmente de alguém que havia sido preso na noite anterior e meditava: “que vida fora do comum tinha sido trazida para cá esta noite, para ser martirizada, esquartejada e por fim incinerada?”. Nesta sala, Soljenitsin, preso por causa do artigo 58–11, assinou seu termo de acusação e foi enviado ao desterro. “E talvez tenha sido melhor. Sem uma e outra coisa eu não escreveria esse livro…”

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Referências:

¹ https://en.wikipedia.org/wiki/Article_58_(RSFSR_Penal_Code) /

http://www.cyberussr.com/rus/uk58-e.html#58-1

2 Das prisões às instituições educativas — coletânea do Instituto de Política Penal, redigida sob a direção de Vichinski, Editora Legislação Soviética. Moscou, 1934, página 36 (N. do A.)

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