Arquipélago Gulag (2/6)

Hemanuela P
6 min readApr 11, 2019

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Parte 2

Carta Capital — 08.03.2019 — AFP

“A política geral da imprensa fora determinada cinco anos antes por um famoso editor: ‘Não existem fatos objetivos. Toda reportagem não passa da opinião de alguém. Portanto, é inútil escrever sobre fatos’.” Ayn Rand, A Revolta de Atlas (posição 509 - Kindle)

Dando continuidade ao post anterior, o capítulo 2 continua discorrendo sobre outros tipos de presos e não consegui, logo entenderão o motivo, deixar de mencioná-los com mais detalhes.

Um movimento cultural que chamou atenção foi a revolução eclesiástica. A ideia era “substituir a hierarquia e colocar em seu lugar outra que estendesse uma só orelha para o céu e a outra para Lubianka” (um dos gulags). Para esse propósito uma Comissão Extraordinária para a Luta contra a Contra-Revolução e Especulação (GPU) foi criada. A GPU-NKVD, durante os anos 20 e 30, tinha como objetivo o extermínio radical da religião.

Durante um período da história russa houve a tentativa de criar uma igreja comunista, colaboradora do regime soviético, chamada Igreja Viva (1922). No entanto esse plano não teve muito êxito e a ideia foi abandonada em 1947, tanto pela dificuldade de exterminar algo tão relevante (a própria perseguição fortalecia a crença), quanto por decisões que envolvem o próprio poder soviético. Esses fatores não foram detalhados por Soljenitsin no livro, mas podem ser analisados atualmente e há algumas interpretações: a força da igreja Ortodoxa (doações e convocação de fiéis para defender a pátria); a imagem favorável que a liberdade religiosa proporcionava para formar alianças outros países em período de guerra; e o simbolismo da liturgia (algo que lembrava o poder do período imperial e seria um fator de dominação importante na expansão da Rússia). ¹

Adriano Roccucci, professor de história contemporânea e autor do livro “Stalin e o Patriarca: a Igreja Ortodoxa e o poder soviético”, relatou numa entrevista ¹ que “em 1937, Stalin fez um censo exigindo que houvesse também uma pergunta sobre religião. Na véspera do censo, a NKVD (polícia secreta) informou que, em muitas áreas, tinha se espalhado entre os agricultores o boato de que o censo era um instrumento de poder para eliminar os últimos fiéis remanescentes. Apesar disso, o resultado do censo foi surpreendente: mais de metade da população soviética declarou acreditar em Deus, apesar de duas décadas de perseguição e propaganda religiosa em todos os níveis”.

Voltando ao Arquipélago, Soljenitsin explica que o critério de perseguição não era o tipo de religião, mas simplesmente pela manifestação de “convicções em voz alta e por darem uma educação às crianças nesse espírito”.

“Podes orar livremente,

Mas… de modo que só

Deus te escute”

Tánia Khodkévitch, foi condenada a dez anos por escrever esse verso.

A educação religiosa das crianças passou a ser qualificada como um delito do artigo 58 — agitação contra-revolucionária. O interessante aqui, mas não tão surpreendente, é a admiração de Alexandre pela convicção que as mulheres demonstravam. Muitas eram presas e resistiam bravamente, não negando suas crenças. A condenação de 10 anos era, até então, a maior pena possível. Para se ter uma ideia, a prostituição era um delito passível de apenas 3 anos.

Ele segue comentando sobre a prisão por títulos de burguesia e da intelliguêntsia, que se fazia passar por progressista. A intenção dessas prisões era ocultar as “origens sociais” e realizar uma “profilaxia social” antes da revolução mundial.

Como se todo esse cenário não fosse distópico o suficiente, havia também o interesse em destruir a intelectualidade técnica por terem demasiadas pretensões de serem insubstituíveis e não estarem habituadas a cumprir imediatamente as ordens.

Os engenheiros eram vistos com desconfiança por serem “lacaios dos antigos patrões capitalistas” e o Corpo de Engenharia passou a ser considerado sabotador. “A Sentinela da Revolução franzia mais os sobrolhos e para onde quer que olhasse com os olhos franzidos logo descobria um ninho de sabotagem”.

Aqui eu confesso que me surpreendi. Quando li A Revolta de Atlas, da Ayn Rand, admirei a sua capacidade imaginativa ao propor um enredo tão político e surreal. Ao ler Arquipélago Gulag entendi que a inspiração da autora veio de todo contexto que o país vivia naquele período.

Rand nasceu na Rússia, frequentou o colégio e a universidade; estudou história, filosofia e produção de roteiros para o cinema; testemunhou a Revolução Bolchevique e o nascimento da União Soviética. Em 1925, ela deixou o crescente estado comunista, dizendo às autoridades soviéticas que faria uma breve visita a parentes nos Estados Unidos da América, e nunca retornou.²

Assim como em A Revolta de Atlas, os intelectuais eram os inimigos do povo. A NKVD responsabilizava os intelectuais pelos fracassos econômicos, acusando-os de sabotagem sempre que algo dava errado. Soljenitsin relata “na União Estatal de Centrais Elétricas de Moscou havia sabotagem: por isso se verificavam cortes de luz. Na indústria petrolífera havia sabotagem: por isso não se conseguia querosene. Na indústria têxtil havia sabotagem: por isso as pessoas que trabalhavam não tinham o que vestir. Na indústria do carvão havia uma sabotagem colossal: por isso gelávamos de frio! Na do metal, na da guerra, na da construção de maquinaria, na da construção de barcos, na química, na do outro e da platina, na de irrigação — por todo lado havia abscessos purulentos de sabotagem”. Esse não é um trecho escrito por Rand. Essas investigações e descobertas eram divulgadas diariamente nos jornais russos da época.

Um caso: o engenheiro Nikolai K. von Mekk, muito devotado ao país, recomendou que os trens fossem carregados com mais mercadorias. Na verdade, era uma conspiração para que os trilhos desgastassem mais rapidamente. Foi descoberta a sabotagem e von Mekk foi preso e fuzilado. O novo camarada responsável pelo setor, Kaganóvitch, recebeu ordens de Lenin para aumentar as cargas três vezes mais. Quando os engenheiros avisaram sobre o desgaste dos trilhos, foram acusados de serem limitadores e não terem confiança nos transportes socialistas.

A única coisa que dificultava a prisão dos engenheiros era a falta de substitutos preparados.

“Havíamos caído numa armadilha, e não tínhamos para onde ir. Os melhores de nós saíram da fábrica na primeira semana de vigência do plano. Perdemos nossos melhores engenheiros, superintendentes, chefes, os trabalhadores mais qualificados. Quem tem amor-próprio não se deixa transformar em vaca leiteira para ser ordenhada pelos outros. Alguns sujeitos capacitados tentaram seguir em frente, mas não conseguiram aguentar muito tempo. A gente estava sempre perdendo os melhores, que viviam fugindo da fábrica como o diabo da cruz, até que só restavam os homens necessitados, sem mais nenhum dos capacitados”. A Revolta de Atlas (p. 352).

Para se ter uma ideia, em 1928, em Moscou, houve o Processo Judicial de Minas para investigar os “organizadores da fome”, sabotadores da indústria alimentícia. Quarenta e oito foram presos. Esses presos eram pessoas que confessavam, contra sua vontade, participarem dos tais planos. Havia tanta publicidade na investigação que quando chegava o julgamento a população pedia pena de morte aos criminosos. Ou seja, você era pressionado a se entregar pensando ter alívio de sua condenação, mas na verdade a população era instigada a pedir sua morte, o que acabava acontecendo. “Célebres revolucionários, teóricos e dirigentes sindicais, sete anos antes da sua morte sem glória, saudavam esse bramido da multidão, sem adivinhar que o seu tempo também estava chegando, que bem depressa os seus nomes seriam arrastados nesse bramido, aos gritos de ‘imundície’ e de ‘canalhas”.

No começo de 1931, a classe de engenheiros teve alívio, pois novos planos de crescimento foram aprovados e ao invés de repressão, o governo passou a preocupar-se com a classe de intelectualidade técnica. Os que estavam presos foram soltos e inocentados.

Nesse mesmo ano o conflito passou a ser do Partido Industrial contra o Partido Camponês, o qual tinha, de acordo com investigações, duzentos mil membros e também preparava sabotagens. Stalin, que era o líder nesse período, não levou esse julgamento adiante e os inocentou (por terem os líderes confessado as más intenções). Soljenistin ironiza que até mesmo Stalin conseguia mensurar o risco de fuzilar ou prender 200 mil camponeses. Quem produziria alimentos?

Ocorreram ainda outras torrentes de prisões. A impressão que Soljenitsin passa é de que sempre era possível imaginar novas formas de exploração: entrega do ouro ao estado, cobrança de passaportes entre províncias, prisão dos que não colaborassem com a produção de alimentos, dos que não produzissem alimentos, cristãos que não trabalhavam no domingo, estrangeiros… Não havia limites, “nos crimes cometidos por todo país verificava-se uma assombrosa unanimidade e uniformidade”.

No próximo texto vou trazer mais detalhes sobre o artigo 58 e as formas de torturas adotadas na época. A lei não servia para orientar o comportamento. O objetivo era ter o maior número possível de motivos para prender as pessoas.

Link do próximo post: https://medium.com/@portatrechos/arquip%C3%A9lago-gulag-parte-3-6132aa89512a

Fontes:

¹ Perseguição à igreja Ortodoxa Russa aqui: https://pt.zenit.org/articles/igreja-ortodoxa-russa-da-perseguicao-sovietica-a-ressurreicao/

² Fonte sobre Ayn Rand: https://objetivismo.com.br/quem-foi-ayn-rand

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