Arquipélago Gulag (1/6)

Hemanuela P
6 min readApr 1, 2019

--

Parte 1

[…] ler Soljenitsin e seu Arquipélago Gulag, o que deveriam fazer, e todos deveriam, pois é o documento definitivo deste tipo de coisa que surgiu no século XX. Soljenitsin colocou clareza extraordinária, primeiro em suas obras sobre Lênin, e então nas suas obras sobre a URSS, exatamente como as doutrinas marxistas perniciosas e patológicas foram transformadas lógica e sistematicamente nas leis que mataram milhões de pessoas. Milhões de pessoas! Havia pessoas com tanta fome na URSS durante a década de 20, que havia pôsteres dizendo para não comerem seus filhos. Então já testamos esse caminho. Vamos tentar novamente sob o disfarce da “equidade”? Jordan Peterson

Foi com o coração oprimido que me abstive, durante anos, de publicar este livro, já há muito concluído: o dever perante os vivos prevalecia sobre o dever perante os mortos. Agora, porém, que as forças de segurança do Estado dele se apoderaram, nada mais me resta a fazer senão publicá-lo imediatamente. A. Soljenítsin

O termo GULAG surgiu com a expansão, sob a liderança de Stalin, do sistema de campos de prisioneiros inicialmente criados por Lenin. GULAG é um acrônimo em russo para “Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional”.

Soljenitsin passou cerca de oito anos em prisões e campos gulag. Ele foi preso em 1945 por criticar Stalin em cartas particulares a um amigo. Depois de publicar o “Arquipélago Gulag” em 1973, ele foi acusado de traição e exilado da União Soviética.

O livro divide-se em duas partes. A primeira traz um extenso relato do funcionamento da indústria carcerária. O segundo, trata de como o sistema se perpetuava e funcionava.

Os relatos foram documentados durante o período em que ele mesmo esteve preso e, posteriormente, em entrevistas com outros prisioneiros.

1. A detenção

A primeira história é da sua própria prisão. É interessante pontuar que Soljenitsin mistura os relatos pessoais com dados históricos.

Para esclarecer, vou tentar contextualizar os dados históricos e citar alguns casos mais interessantes, afinal, a ideia é ter um resumo.

A NKVD (Narodnyi Komissariat Vnutrennikh Del) ou Comissariado do Povo para Assuntos Internos era responsável, além das funções policiais e de segurança, pelo controle da economia e do serviço secreto.

Os relatos transparecem a confusão que era o sistema de prisões russo na época. O clima geral era de desconfiança, mas ninguém sabia ao certo o que temer. “A inocência geral engendra a inatividade geral” e os Órgãos “não tinham frequentemente motivo profundo para a escolha, não sabendo que pessoa deter ou não deter, mas simplesmente quais os números a atingir”.

O clima era de fatalidade. Ninguém sabia se voltaria para casa ou em que momento poderia ser preso e o que teria feito. Soljenitsin explica que haviam diferentes tipos de detenção, variando de acordo com critérios diversos: “noturnas e diurnas; domiciliares, no lugar de trabalho ou em trânsito; primeiras ou segundas detenções; isoladas ou em grupo.” Havia variação também pelo grau de surpresa exigido e pelo grau de resistência esperado, pela gravidade dada à busca e apreensão, pela necessidade de prender os familiares ou deportá-los para outros campos.

Ele reforça o quanto isso era feito de maneira discreta. Como se os presos não quisessem que “sua perdição fosse vista aos que permaneciam vivos”. Uma mulher poderia ir ao teatro, por exemplo, e sentar-se ao seu lado um policial que se ofereceria para acompanha-la até sua casa. Mas no fundo, ela estava sendo presa e o sabia, mas não fazia nada. Não gritava. No fundo parecia que era tudo um engano que iria se resolver. “Mas se dos seus lábios ressequidos não brota nem um som, a multidão que transita descuidadamente toma a você e aos seus carrascos por amigos que passeiam”.

Esse clima gerava angústia em quem não era preso, de maneira que quando a prisão acontecia, chegava a ser um alívio.

“Faltou-nos suficiente amor à liberdade e, mais que tudo, a plena consciência da verdadeira situação. […] Merecemos simplesmente tudo quanto sobreveio depois”.

Quando ele foi preso, por exemplo, os policiais que o detiveram não conheciam a cidade e ele teve que conduzi-los a Lubianka. Os acompanhou calado, carregando seus diários numa mala, as provas de sua condenação.

“Outros não estão ainda mais maduros para as ideias que se transmitem em gritos à massa. Na verdade, só os revolucionários tem sempre as palavras de ordem na ponta da língua prontas a saltar, mas que dizer do pacato e simples homem comum, não implicado em nada? Ele não sabe, pura e simplesmente, o que é que deve gritar”.

Esses relatos me remeteram ao livro o Processo, de Franz Kafka. Quem já leu consegue imaginar a aflição de ser acusado e ter que defender-se sem saber o motivo pelo qual foi preso ou como fazer sua defesa.

2. A história da nossa canalização

Lenin, ao tomar o poder, instituiu a Tcheka (Comitê de Emergência) e uma das primeiras missões foi deter os comitês de greve contrarrevolucionários que “sabotavam o país”, segundo ele. A intensão era a “limpeza da terra russa de todos e quaisquer insetos nocivos” (Lenin, Obras escolhidas). Quem eram os insetos era algo complicado de definir: membros de cooperativas, professores, comissões paroquiais, coros religiosos, padres, freiras, quem não jurava servir as “armas”. Soljenitsin comenta que eram tantos, que seria impossível processar todos de forma que encontraram maneiras mais rápidas: repressão sem julgamento. Serviço assumido pela Vetcheká, sentinela da revolução, “o único órgão punitivo da história da humanidade que reuniu nas mesmas mãos a investigação, a detenção, a instrução do processo, a acusação pública, o julgamento e a execução da sentença”.

A ordem era prender “imediatamente todos os socialistas-revolucionários de direita, elementos da burguesia e da oficialidade”. Soljenitsin explica que com o passar do tempo vários partidos que antes eram considerados apoiadores foram condenados como farsantes. Se um grupo do proletariado fizesse greve ou alguma exigência, passava a ser um inimigo e todos eram presos. Logo essa perseguição estendeu-se aos camponeses, como nesse decreto de Lenin: “os culpados de venda, açambarcamento ou armazenamento para fins comerciais de gêneros alimentícios monopolizados pela República são punidos com a privação da liberdade por um prazo não inferior a 10 anos, seguidos de trabalhos forçados pesados e confisco de todos os seus bens” (julho de 1918).

E não era possível conceder tampouco ajuda. Foi preso, por exemplo em 1921, o Comitê Social de Ajuda às Vítimas da Fome pelo motivo de que “as mãos que davam de comer não eram as apropriadas para vir em ajuda dos famintos”.

Tudo isso durou muitos anos pois a condição principal era o silêncio e a discrição. O que importava era limpar as cidades e depois os campos dos outros partidos socialistas. “Isto exigiu uma paciência silenciosa e de Jó, cujas regras eram inteiramente incompreensíveis para os contemporâneos e de cujos contornos só agora podemos dar-nos conta. […] A paciência, sempre a paciência, reinava nesse jogo de paciências estendidas sobre a mesa. E sem ruído, sem clamor, gradualmente iam desaparecendo os outros partidos, perdendo todas as ligações com os lugares e as pessoas onde antes eram conhecidos, eles e a sua atividade revolucionária”.

Alexandre menciona trechos de jornais, decretos, cartas e relatos de outros presos. É chocante ler que algo assim aconteceu com tantas pessoas. Já li muitos livros sobre o nazismo, mas a impressão é que o medo de Hitler era algo conhecido de todos de forma que era necessário até fugir. Mas nesse período da história russa esse terror ainda estava por se instalar. Era o começo de algo que serviria de inspiração para a própria Alemanha. Parece surreal que algo assim crescesse de tamanha forma, mas foi justo o que ocorreu.

Essa é parte do segundo de quatorze capítulos sobre a indústria carcerária (parte I) do livro Arquipélago Gulag.

Até o próximo post!.

Você pode ir direto para o próximo post clicando aqui:
https://medium.com/@portatrechos/resumo-arquip%C3%A9lago-gulag-2-b2f6ec6f2208

--

--