Arquipélago Gulag (6/6)

Hemanuela P
6 min readMay 5, 2019

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As palavras são relativas. Não passam de símbolos. Se não usarmos símbolos feios, não há nada feio. Por que o senhor quer que eu diga as coisas de um jeito, se eu já disse de outro”

A Revolta de Atlas, Ayn Rand.

Quem foi mais cruel? Os czares russos ou os revolucionários que destruíram o império? Soljenitsin faz um comparativo da crueldade dos julgamentos e aplicação da pena máxima (pena de morte) do período czarista para o socialista.

Até 1905 a pena de morte era uma medida de exceção. Entre 1876 e 1905 foram executadas quatrocentas e oitenta e seis pessoas (17 pessoas por ano em todo o país). De 1905 a 1908 foram executadas cerca de duas mil e duzentas pessoas (quarenta e cinco por mês).

E, para que o Partido Comunista não parecesse tão cruel, a pena de morte foi abolida. A única medida extrema permitida seria o fuzilamento. Você não leu errado.

Alexander explica que a mudança de nomes era intencional. Para que cada fato fosse encarado como novo. Por exemplo: a “pena de morte” passou a ser “medida máxima”, não de “castigo”, mas de “segurança social”.

Esse trecho ilustra bem: “o presidente do Supremo Tribunal Revolucionário, Kárklin, num russo defeituoso pronunciou à pressa a sentença ‘Fuzilá-lo num prazo de vinte e quatro horas’. Na sala do tribunal houve uma grande agitação: a pena de morte foi abolida! O promotor Krilenko esclareceu: ‘Por que se inquietam? Foi a execução que foi abolida. Não vamos executar Chástni — vamos fuzilá-lo’. E fuzilaram-no.”

Foram tantas condenações e tantas execuções que na verdade não é possível afirmar quantos morreram durante esse período. Soljenitsin explica que antigos funcionários que acabaram caindo em desgraça deixavam escapar, depois de presos, alguns números: “diziam os de Iéjov que nesses dois anos tinham sido fuzilados em toda a União meio milhão de ‘políticos’ e quatrocentos e oitenta mil comuns”. Esse período ao qual ele se refere é de 1939–40.

Outra informação importante que ele traz é sobre os locais onde ficavam os gulags. O nome arquipélago veio justamente da analogia quanto a quantidade de prisões. As transferências de presos aconteciam pelos trilhos ou stolípins (uma espécie de caminhão baú), nas piores condições imagináveis. Não vou me ater as descrições pois tudo que assistimos em filmes de guerra ou sobre campos de concentração consegue fazer uma boa imagem do que essas pessoas passaram.

Alexander reforça o quanto tudo se tornava pior por causa dos gatunos. Era impossível possuir algo de maneira que ele chega até a recomendar que a melhor opção é não ter nada consigo. “Tenha só o que puder levar sempre com você: conhecimento de línguas, países e gentes. Que a sua memória seja a sua mochila. Use a memória! Retenha tudo nela! Somente essas sementes amargas poderão algum dia frutificar”. E graças a incrível memória que ele tinha conseguiu reconhecer muitas pessoas ou se aproximar de pessoas das quais só havia ouvido falar por meio de outros presos, em outras prisões.

De um destes conhecidos Soljenitsin ouviu um conselho precioso: “evite os trabalhos gerais”. Trabalhos gerais eram todas as atividades de manutenção dos gulags. Atividades mais braçais que sempre extenuavam todas as forças do preso até a morte.

Além disso, também soube de uma lenda que circulava pelos campos. Uma lenda que dizia existir ilhas paradisíacas. Pequenos campos onde reinaria a paz pois só havia presos intelectuais realizando trabalhos ultrassecretos.

Alexander, após meses de trabalho braçal na carpintaria, foi retirado do meio dos demais. Inicialmente achou que seria solto ou aplicariam outra pena. Mas não. Quando fez seu cadastro de entrada, respondeu que sua profissão era “especialista em física nuclear”. Na verdade, jamais o fora. Decidiu responder daquela maneira pois havia visto uma palestra sobre o tema, antes da guerra, e aquilo parecia importante.

Foi levado para prisão de Butirki, um antigo sanatório. A lenda era verdadeira! Alexander compartilhou a cela com algumas das mentes mais brilhantes da ciência russa na época. “Não creio jamais ter vivido dias tão plenos, tão tumultuados, tão excitantes como os daquele verão na cela 75”. Esta experiência foi relatada no livro “O primeiro círculo”.

Obviamente ele não cumpriu toda sua pena ali. Nos anos 50 Soljenitsin descobriu que tinha câncer. A experiência do seu tratamento rendeu outro livro “O pavilhão dos cancerosos”, no qual relata o dia a dia do grupo de cancerosos durante o período de hospitalização.

A última grande lição, talvez a mais importante do livro, ele traz ao comentar sobre sua transferência para Butirki. Alexander teve que aguardar num local, com outros viajentes, e ouviu a conversa de alguns deles. Vizinhos que se detestavam, uma sogra que se desentendeu com a nora, um marido que espancou a mulher. “Como fazer para suportar tantas besteiras? Isso não é uma insignificância? Enquanto você ouve tudo isso, sente um súbito calafrio causado pela resignação: percebe, com clareza, a verdadeira medida de todas as coisas no mundo circundante! A medida de todas as fraquezas e paixões! E essa percepção é vedada aos pecadores ao seu redor. Somente você, o incorpóreo, vive realmente, de verdade; os demais, esses infelizes, creem estar vivos mas se equivocam.

O abismo entre nós é intransponível! Impossível exortá-los ou acusa-los, toma-los pelos ombros e sacudi-los: você é espírito, um fantasma, e eles, corpos materiais.

Como fazê-los compreender (por uma iluminação? Por uma aparição? Em sonho?): irmãos! Homens! Para que a vida lhes foi dada? No meio de uma noite escura, abrem-se as portas das câmaras da morte e seres humanos de almas grandiosas se encaminham para o fuzilamento. Nesse mesmo instante, a essa mesma hora, tais criaturas viajam por todas as estradas de ferro do país; depois de engolir um arenque, passam a língua pelos lábios ressequidos, sonham com o prazer de estirar as pernas, de ficar tranquilos após ter feito suas necessidades. Em Orotukan, a terra derrete só até um metro de profundidade, e apenas durante o verão; só então é possível enterrar ali os despojos dos que morreram durante o inverno. Mas vocês têm sobre suas cabeças o céu azul e, sob o cálido sol, o direito de decidir seu próprio destino, beber água, sentar esticando as pernas, viajar para onde queiram. Que história é essa de sapatos sujos, e qual a importância da sogra? Querem que lhes revele agora o segredo mais essencial da vida? Não persigam o enganoso, nem as posses, nem os títulos: tudo isso ser paga à custa dos nervos, década após década, e numa só noite pode ser confiscado. Vivam com serena superioridade perante a vida… Não temam a desdita (infortúnio) nem anseiem pela felicidade, pois ambas as atitudes vêm a ser o mesmo. A amargura não se prolonga eternamente, e a medida do prazer nunca se completa. Alegrem-se se não tremem de frio, se as garras da fome e da sede não dilaceram suas entranhas. Vocês não têm a espinha quebrada, suas duas pernas andam, seus dois braços se dobram, seus dois olhos enxergam e seus dois ouvidos escutam — quem poderiam vocês invejar? E por quê? A inveja é o que mais nos tortura. Esfreguem bem os olhos, purifiquem seus corações, então poderão aquilatar perfeitamente quem verdadeiramente lhes quer e deseja seu bem. Não lhes façam nenhum mal, não pronunciem palavras malévolas contra eles, não permitam que as brigas os separem, pois quem pode saber se este não é o seu último ato antes de serem presos e ilho lhes pesará na memória!…”

Leia o Arquipélago Gulag.

Link para um adendo, resumindo o contexto político da época: https://medium.com/@portatrechos/adendo-arquip%C3%A9lago-gulag-9911d29c8980

Assista a primeira parte de uma entrevista com Soljenitsin, gravada quando ele retornou à Rússia:

Por que os homens vivem? Neste magnífico documentário, Sokurov conversa com um dos mais importantes escritores russos do século XX. Dividido em quatro partes, o diálogo entre ele e Solzhenitsyn passeia pelos mais diversos temas: indo desde a história pessoal do escritor, passando pela história russa, questões literárias e estéticas, e abordando tudo o que concerne à questão existencial humana e a Criação.

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