Contar histórias e dar sentido ao mundo pós-pandemia de Covid-19

Rodrigo Bandeira
7 min readApr 19, 2020

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Síntese de impressões colhidas durante a primeira quinzena de abril de 2020

Vivemos uma distopia, como nos filmes.

O SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome — Corona Virus) é o segundo vírus SARS e o terceiro do tipo coronavírus, como o MERS-CoV (Middle East Respiratory Syndrome — Corona Virus). Até agora sabemos relativamente pouco a respeito da transmissibilidade e letalidade da Covid-19 (Corona Virus Desease 2019), doença causada por um micro-organismo que infecciona o sistema respiratório e tem causado muitas mortes por todo o mundo.

Para conter a velocidade do contágio, evitar o colapso dos sistemas de saúde e o consequente crescimento das mortes de pessoas infectadas pelo coronavírus ou com outras doenças comuns, o lockdown — a quarentena compulsória — foi adotado em vários países do mundo. Em outros, como o Brasil, foram decretadas apenas medidas de restrição de circulação para viabilizar um distanciamento social de 70% — meta que ainda não chegamos a alcançar.

Estas medidas, por sua vez, paralisaram as economias nacionais e o tombo está sendo comparado ao que ocorreu durante a Grande Depressão, que se estendeu de 24 de outubro de 1929 — a Quinta-Feira Negra — quando houve o chamado Crash da bolsa de valores de Nova Iorque, até a Segunda Guerra Mundial, causando altas taxas de desemprego, quedas drásticas do Produto Interno Bruto de diversos países, bem como na produção industrial e nos preços das ações.

No entanto, essa crise tem algo de único. Considere-se as crises de 1929, a de 2008, as duas grandes guerras mundiais, a gripe espanhola ou a peste. Na crise desencadeada pelo SARS-CoV-2 não haverá vencedores, ninguém sairá ileso, ninguém estará infenso aos seus efeitos. Todos vão perder dinheiro, muitos vão perder a vida e os mais pobres e vulneráveis serão os mais prejudicados.

É crise para ninguém botar defeito.

Le Sphinx by Jean-Michel Folon

UMA PERSPECTIVA

Não sou especialista em nenhum dos assuntos em pauta, apenas um ator-observador. Esse artigo é meramente prospectivo e, com perspectiva de longo prazo, pensa para frente e não procura explicar a crise.

Para além das tristezas, perdas e preocupações, minha perspectiva é sobre as transformações e o novo mundo que advirá após esta crise e de toda a dor que provoca.

Para este trabalho vali-me de um projeto de, digamos, inteligência coletiva a que me dedico desde 2015. Anualmente entrevisto alguns amigos a respeito de um tema contemporâneo e, em seguida, dedico-me juntar as impressões desta rede de referência, buscando encontrar padrões e insights. O texto de 2019, ainda bastante atual, está aqui.

Neste ano, a pergunta que fiz, foi:

Nesses tempos de quarentena, em que você certamente deixou de fazer algumas coisas que consumiam parte importante do seu tempo, para onde dirigiu suas energias (intencionalmente ou levado pela situação) e como isso poderá ser incorporado ao seu dia a dia no pós-coronavírus fazendo você e seus circunstantes mais felizes?

Aos que responderam ao meu chamado, agradeço imensamente pela generosidade e incríveis insights a partir de suas perspectivas privilegiadas.

Ao longo das últimas semanas também consumi atentamente um sem número de artigos, entrevistas, relatórios e reflexões de especialistas que aportaram importantes perspectivas sobre o momento atual.

Conversar com amigos inteligentes e cultos e ler muito me ajuda a entender o mundo, a mim mesmo e também o meu papel a cada momento. Por outro lado, e por isso faço este registro, tenho esperança de que isso ajude outras pessoas que poderão interessar-se em conhecer o resultado do esforço deste ser humano, hoje em quarentena.

CONTAR HISTÓRIAS

O professor israelense de História Yuval Harari nos disse em seu brilhante Sapiens — uma breve história da humanidade que a vida não possui um sentido intrínseco, resumindo-se à interação entre as leis da física, química e biologia. Da mesma forma, podemos dizer que esta pandemia não veio com a intenção ou a função de nos ensinar ou nos mostrar algo. Ela não quer que sejamos mais humildes, utilizemos mais a bicicleta em nossos deslocamentos diários ou qualquer outra coisa. Diferentemente, cabe a nós atribuir sentido a esta crise, como fazemos com a própria vida.

Dito isso, o atual momento excita duas perspectivas para as quais será necessário atribuir sentido: como vamos viver nos próximos meses e o que vai ser do mundo daqui pra frente. Adicionando o desejo à perspectiva com maior campo de visão, temos a proposição: o que, dentre o que desejamos, ganha potência de ser com a atual crise? E o que depende de nós para isso?

Para aproveitar esta oportunidade, minha resposta, após minha breve pesquisa, é que devemos contar novas histórias inspiradoras a respeito do que desejamos e que ganhou potência de ser. Sem ativismos oportunistas que, com a mão do gato, procurem trazer o que não está em pauta, mas com sensibilidade para identificar os desafios da hora. Há avanços importantes de sobra com o que temos para hoje.

Victor Hugo, romancista francês do século XIX, uma vez disse que não há nada mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou. Assim, ao perceber que a pandemia do vírus trouxe para a ordem do dia nosso desejo mais profundo, elaboremos histórias. Ambicionando vivificar as emoções humanas, com músicas, textos literários ou dissertativos, vídeos, ilustrações, tertúlias, simpósios ou mesmo em conversas entre amigos, tornemos ainda mais viável aquilo que desejamos e cujo tempo chegou.

MIRADAS

Primeiro resultado desta escuta, quero tratar de cinco perspectivas à atual crise que mostram como as visões de mundo particulares implicam no processo de escolha dos temas sobre os quais contaremos novas histórias.

1) A grande ficha vai cair ou back to business. Alguns dizem ‘Agora a grande ficha vai cair!’ enquanto outros dizem ‘Assim que descobrirem uma vacina, tudo vai voltar a ser como era antes.’ E então, vamos mudar pouco, nada ou muito com essa crise? Vamos transformar nosso modo de viver? O impacto será forte o suficiente para ensejar nossa transformação mais profunda? E, se não temos aprendido com as crises até aqui, por que seria diferente agora?

2) The Big One ou um novo normal. Ouvi também aqueles que entendem que ‘Essa pandemia é The Big One!’ ao passo que tem gente dizendo que ‘Com o mundo interconectado, eventos desse tipo serão cada vez mais comuns.’ E aí, essa é a crise ou ainda viveremos muitas outras, talvez crescendo em gravidade? Existe quem diga que uma tempestade solar pode torrar nossos satélites, fazendo a internet cair no mundo todo. Seria essa a última palavra em catástrofes? E os eventos climáticos extremos? Thomas Friedman, em entrevista a André Esteves, disse que as mudanças climáticas não são um fenômeno como a pandemia do coronavírus, que chega a um pico e depois cai. Uma vez que o aquecimento global chegue a um determinado ponto, a mudança será permanente, e não haverá vacina. Numa queda de braço entre o mercado e a natureza, a natureza não descansa no fim de semana e trabalha 24 horas por dia. E novas epidemias por novos vírus mais contagiosos e mortais? Desde 2002, essa é a terceira causada apenas por esse tipo de vírus. E a ameaça de uma guerra nuclear?

3) Um salto evolutivo ou pequenos passos. Existem também aqueles que acreditam que as mudanças serão graduais (soft) e outros que põem suas fichas em uma ruptura (hard), uma reforma completa do nosso modo de vida. Esse é, sem dúvida, um contínuo, mas a mudança será predominantemente incremental ou daremos um salto evolutivo?

4) Épica ou lírica. E de onde virá a mudança? Esse evento terá o condão de promover a união em torno de um grande acordo, um novo New Deal global, de cima para baixo (top down), resultando em regulamentações de corporações e governos? Ou virá de baixo para cima (bottom up) por meio de uma miríade de pequenas mudanças glocais, avanços a partir de ações individuais na medida em que as circunstâncias se impõem e que requerem tempo até que se ajustem em um novo ethos global? Vai prevalecer a lógica do dinheiro (follow the money) e daqueles que podem se beneficiar (cui bono), impondo a mudança para os de baixo como sugeriu Pepe Escobar em entrevista à TV 247? Será, como distingue David De Ugarte, um movimento de natureza épica, com salvadores que sacrificam-se para salvar a humanidade ou lírica, onde a ação particular acontece a partir do que se sente, somando-se a outras formas de expressão, sem se diluir? Em um mundo fragmentado, haverá necessidade de um discurso único heróico?

5) Aprendizados infinitos ou os limites do humano. Finalmente, muito depende de quanto tempo isso tudo ainda vai durar. Como disse o bioquímico especializado em virologia Dr. José Eduardo Levi, só voltaremos a ter uma vida minimamente normal quando tivermos a capacidade de testar e isolar os casos positivos. E ainda precisaremos de vacina, remédio ou imunidade de rebanho (herd immunity.) A incerteza sobre até quando isso vai, evidencia uma dicotomia entre os que imploram para ‘Que tudo isso acabe logo e possamos voltar ao normal’ e a esperança de quem diz ‘Para que não voltemos ao status quo ante, que precisa ser alterado urgentemente, os efeitos precisam ser profundos e perdurar por um tempo maior do que o curto prazo.’ E então? Queremos que tudo isso acabe logo porque não aguentamos o sofrimento (veja a importância da perspectiva pessoal, aqui) ou somos capazes de suportar o processo, refletir e aprender o que devemos fazer como humanidade, mesmo com toda a dificuldade? Pelo lado das mortes e do sofrimento dos que perderão suas rendas, parece claro que desejamos que tudo acabe logo, mas pensando no aprendizado, em como podemos redesenhar o normal, como sugeriu Henrique Bussacos, mais ajustado às nossas utopias, seria desejável aprofundar esse processo?

CONTINUA…

No texto seguinte, trago uma relação de temas desejados e que ganharam potência de ser, sendo alçados a potenciais objetos das novas histórias a serem contadas. Histórias que emocionarão nossas comunidades sobre a chegada do tempo de mudar.

Antes, porém, sirvo-me do genial provérbio capiau, citado em epígrafe no conto A hora e a vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa que diz: ‘O sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão’.

Assim, dentre as coisas que podem e devem mudar, por serem desejadas e terem ganhado potência com a crise, para pularmos ou permanecermos parados como o sapo que não percebe sua precisão, contemos novas histórias capazes de emocionar.

Para terminar, sugiro essa belíssima versão de Fernando Brant de ‘Only a Dream in Rio’, de James Taylor, com Milton Nascimento e Naná Vasconcelos.

Obrigado e um abraço!

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