O véu islâmico — quebrando o tabu (parte I)

Rebeca Benício
4 min readMay 20, 2019

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Pare um minuto para pensar e me diga: o que vem na sua cabeça quando você pensa no véu islâmico?

É muito provável que as suas ideias tendam para o lado negativo – mulheres submissas, extremismo religioso etc. –, fruto de uma mídia tendenciosa.

Antes de nos firmarmos em ideias tão parciais, precisamos dar um passo para trás e analisar um pouco da história sob uma perspectiva mais ampla (e de forma bem resumida), a fim de entender um dos maiores tabus que envolvem a religião islâmica.

O surgimento do véu

Se você nasceu em uma família católica, muito provavelmente tem em casa, ou pelo menos já viu, algum quadro de Maria. Ela sempre é representada usando um véu, não é?

Agora tente se lembrar de algum filme que você tenha visto que retrata a história de Jesus, seja ele do Mel Gibson ou com o Christian Bale. Como é a roupa das mulheres daquela época?

Jesus viveu mais de 600 anos antes do profeta Muhammad (PBUH) e do surgimento do islamismo, portanto, já podemos desconsiderar que a religião tenha criado essa “regra de vestimenta”. Até mesmo antes do cristianismo as mulheres judias já usavam o véu.

É óbvio, então, que este era um costume cultural das mulheres do Oriente Médio que passou a ser aplicado à religião, e não o contrário. Mas aí você me pergunta: e por que o véu se tornou um elemento tão mais forte e marcante no islamismo do que em outras religiões?

Vamos viajar no tempo até uma Arábia pré-islâmica e entender como era a sociedade de então:

Naquela época, as pessoas pertenciam a tribos e, dentro delas, cada mulher tinha o seu papel e seus direitos. Algumas menos, outras mais. Então, para que essas mulheres fossem identificadas e diferenciadas, especialmente em público, havia uma série de regras de vestimenta.

O véu, objeto da nossa análise, era utilizado não só para identificar mulheres de classe social mais alta, mas também as que eram casadas.

Na época, mulheres de classe baixa (como as escravas) sofriam muito abuso sexual – o que era um problema social –, porque não tinham o respaldo de uma tribo; assim, quando o islamismo foi instituído, o Alcorão instruiu o uso do véu para todas as muçulmanas para que elas fossem identificadas como pertencentes a um grupo e, dessa forma, os abusos fossem evitados. O véu era, então, uma forma de proteção:

يَا أَيُّهَا النَّبِيُّ قُل لِّأَزْوَاجِكَ وَبَنَاتِكَ وَنِسَاءِ الْمُؤْمِنِينَ يُدْنِينَ عَلَيْهِنَّ مِن جَلَابِيبِهِنَّ ۚ ذَٰلِكَ أَدْنَىٰ أَن يُعْرَفْنَ فَلَا يُؤْذَيْنَ ۗ وَكَانَ اللَّهُ غَفُورًا رَّحِيمًا — 33:59

O Prophet, tell your wives and your daughters and the women of the believers to bring down over themselves [part] of their outer garments. That is more suitable that they will be known and not be abused. And ever is Allah Forgiving and Merciful.(33:59)

Então, como parte do conceito que chamamos hijab (válido para homens e mulheres), as muçulmanas são instruídas a usar o véu e roupas que não marquem o corpo, de forma a privá-las dos olhares públicos. Ou seja, ela é orientada a se vestir modestamente e usar o hijab quando em público ou na presença de um homem que não seja um parente direto.

O propósito dessa e de muitas das ações do islamismo (como a poligamia, por exemplo) era o de melhorar a condição social das mulheres daquela época, ao contrário do que muitos imaginam. Mas esse é outro assunto.

A pergunta que nos trouxe até aqui é: por que o véu se tornou um elemento mais forte no islamismo do que em outras religiões?

Eu acredito que seja pela tradição. O islã é uma religião muito tradicionalista e nós, muçulmanos (sunitas), tentamos manter os costumes instituídos por Muhammad (PBUH), que tinha hábitos extremamente saudáveis. E muitas muçulmanas tentam se espelhar em suas esposas, especialmente na forma de se vestir.

O véu e a expressão cultural

Obviamente o islamismo se expandiu, tanto que hoje a maioria islâmica não é nem árabe, mas sim asiática. E o uso do véu foi incorporado pelas diversas culturas que adotaram a religião, mas ainda assim elas mantiveram suas conotações culturais (no Paquistão, por exemplo, com o uso do shalwar kameez ou o chador, usado no Irã).

Imagem retirada do site da BBC.

Com o passar do tempo, e principalmente nos últimos 40 anos, o hijab foi ressignificado em muitos lugares e por muitas mulheres, e o seu uso, além do aspecto religioso, também se tornou um lembrete de sua fé, e é parte de sua consciência religiosa.

Ele é usado com orgulho pelas mulheres, não como um peso ou uma obrigação. É uma aproximação da sua fé e da sua relação com Deus.

É claro que existem mulheres que são obrigadas a utilizá-lo, mas isso não é uma norma e o próprio Alcorão diz que não devem haver imposições dentro da religião, e que nenhuma prática deve trazer sofrimento:

لَا إِكْرَاهَ فِي الدِّينِ ۖ قَد تَّبَيَّنَ الرُّشْدُ مِنَ الْغَيِّ ۚ فَمَن يَكْفُرْ بِالطَّاغُوتِ وَيُؤْمِن بِاللَّهِ فَقَدِ اسْتَمْسَكَ بِالْعُرْوَةِ الْوُثْقَىٰ لَا انفِصَامَ لَهَا ۗ وَاللَّهُ سَمِيعٌ عَلِيمٌ — 2:256

There shall be no compulsion in [acceptance of] the religion. The right course has become clear from the wrong. So whoever disbelieves in Taghut and believes in Allah has grasped the most trustworthy handhold with no break in it. And Allah is Hearing and Knowing.(2:256)

Existem muitos benefícios agregados ao uso do véu, especialmente em países de maioria muçulmana, mas, mesmo assim, o que vemos hoje é uma crescente onda de mulheres que escolhem tirá-lo. Eu sou uma delas. A minha visão é muito particular, e eu a compartilho com vocês na parte II deste texto.

Links relacionados:

Women in pre-Islamic Arabia

Why muslim women wear the veil

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Rebeca Benício

Paulistana que há 3 anos se tornou Cairota mas que na verdade passa a maior parte do tempo no mundo dos livros enquanto o seu gato cochila do seu lado.