Parte 1: Eu, sou eu, diz ai quem é você?

Redesign de vidas
9 min readSep 19, 2023

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(Título em homenagem à Preta Gil e Gal Costa — Vá se benzer)

Outro dia estava conversando com uma parceira de pesquisa sobre um texto que escrevi. Pedi a ela uma crítica sincera sobre o tom do texto. E ela me disse: “às vezes, quando um texto tem este tom, eu me pergunto quem é essa pessoa que está falando? Quem é ela para me dizer isso?!? Eu te conheço e sei que você faz tudo isso que escreve, mas os outros não sabem”.

Eis que resolvi escrever sobre mim, a narradora destas reflexões. Uma escrevivência, como define Conceição Evaristo. É um texto longo, mas ajuda a entender um pouco mais sobre o que eu penso, digo e faço. Senta que lá vem a história!

Posso dizer que sou fruto dos aprendizados nesta vida. Em muitas tentativas e erros. Meus e dos meus pais. Um projeto de vida em continuo aprimoramento. Segue o fio…

Sou filha primogênita de um pai nordestino que encontrou uma mãe gaúcha durante os estudos de mestrado. Nasci em Brasília, mas logo me mudei para uma cidade do interior no Sul do Brasil. Neste caso, minha mãe aprendeu na prática, nessa primeira experiência, aos vinte e poucos anos, como ser mãe. Poucas eram as pessoas que estavam na sua rede de apoio. Então, aprendeu principalmente com o que os médicos diziam, com a revista pais e filhos, com uma tia que ajudava como podia e em como eu reagia a essas tentativas. Teve um período específico que ela me deu tanto ovo para comer (porque acreditava que iria melhorar algo na minha saúde), que eu nunca mais consegui comer ovo in natura na vida. Com dois anos de idade, por um descuido parental, caí de um balanço, tive traumatismo craniano e delicado profissional da saúde que me atendeu disse que eu poderia morrer. Não morri, como podem ser percebido. O que aconteceu foi que fiquei um tempo sem poder brincar fora de casa, sem correria e ganhei um autorama para brincar quieta dentro de casa, vendo os carros andarem. Não tenho recordações disso, só a história que me contaram. Com cinco anos, fui parar no hospital com suspeita de meningite. Colocaram uma agulha tamanho gigante nas minhas costas para tirar o líquido da medula e desde então, tenho problema com agulhas. Já chego avisando todas as profissionais que vão fazer coleta de sangue ou vacinas.

Cabe pontuar que meus jovens pais eram de classe média. Não eram herdeiros. Eram trabalhadores que ascenderam socialmente por conta dos estudos. Num país instável, com altos índices de inflação. Mas eram de uma classe média estável, porque tinham emprego de pesquisadores na maior empresa pública de pesquisa deste país. Uma empresa referência em inovação, numa época em que o governo destinava recursos e acreditava na potência da pesquisa para o desenvolvimento do país [inclusive, saudades disso]. Por conta disso, tive outras mulheres que cuidaram de mim enquanto meus pais trabalhavam. Na época, não era comum a responsabilidade parental compartilhada: cabia a mulher os principais cuidados com os filhos. Como as crianças de classe média da época, tive a possibilidade de estudar em escola particular confessional [aquelas que professam uma fé cristã e não tem fins lucrativos], porque desde aquela época, o ensino básico público era precarizado por descaso dos governantes.

Na cidade em que eu morava, todos perguntavam o sobrenome, seguida da pergunta: “tu é filha de quem?”. Nesta cidade de descendentes de italianos, para SER alguém, era preciso ter um sobrenome reconhecido na cidade, o que definitivamente não era o meu caso. Mas quando sabiam que meus pais trabalhavam nessa empresa importante, a expressão facial resultante expressava algo do tipo: tudo bem, serve. Dito isso, posso dizer que o principal valor passado pelos meus pais foi: estuda para SER alguém na vida. E é o que eu faço até hoje [mas já sei que meu SER não depende disso].

Outro aspecto curioso das pessoas de classe média da época foi aprender que TER posses era um importante marcador sobre QUEM tu era. O carro que tínhamos, as roupas e acessórios que usávamos dizia quem éramos. Como exemplo, minha mãe, que veio de uma infância pobre, usou dos produtos de moda (marcas nacionais acessíveis e badaladas) como um modo de distinção social [a leitura de Pierre Bourdieu me ajudou a entender isso]. Comprava roupas numa loja conhecida da cidade e usava jóias de ouro, porque agora ela podia comprá-las e ouro era investimento. E nós, as crianças, não teríamos tanto acesso as roupas das marcas badaladas da época [meu uniforme da adidas não era hype, mas tive uma mochila da company], porque não se tinha dinheiro para tudo. E como sigo classe média até hoje, marcas badaladas não fazem parte do meu armário. Posso dizer que depois do meu redesign, meu armário é repleto de roupas que fazem sentido, projetadas por designers locais que valorizam todos os elos da cadeia de produção. Uso produtos desenvolvidos por designers brasileiras que produzem uma moda sustentável.

Lookinho de uniforme da adidas na celebração do meu primeiro diploma. A animação contagiante da pessoa é incrível

Durante a minha infância, morei em casas com pátio, grama, horta e árvores, porque minha mãe sempre gostou de plantar. Brincava na rua. Andava de bicicleta. Normalmente, comia alimentos saudáveis preparados em casa, mas nem sempre. Às vezes pegávamos vianda[1] em restaurantes, [não chamávamos de marmita], às vezes almoçávamos nos restaurantes. Meus pais faziam compras no supermercado (rancho) uma vez por mês, quando o salário entrava na conta, para a inflação não comer o dinheiro, e guardavam estoques em casa [hábitos que mantém até hoje, embora não seja mais necessário]. Minha mãe comprava alimentos direto dos produtores da região [e anos mais tarde, virou defensora dos produtos orgânicos]. A base da nossa alimentação era arroz, feijão, salada e carne. Com variações para massas, queijos e salames. Nunca gostei muito de carne. Mas comia um bife por imposições maternas. Nunca comi carne de bichos fofinhos/peludinhos (ovelha e coelho) ou estranhos (rã). E era chatinha para comer partes estranhas dos bichos que não eram tão fofinhos (cartilagens, gorduras, nervos e vísceras não eram para mim. A exceção foi ter comido coraçõezinhos de galinha). [Hoje sou vegana e só de escrever isso já me dá uma dor…no próximo episódio da série, eu conto como cheguei aqui.]

Tomávamos suco natural durante a semana, e refrigerante no final de semana. Sucos em pó não entravam em casa. Experimentei na casa de amigos e passei a consumi-los na juventude. Na minha lancheira tinha quatro possibilidades de lanches: pastelina, waffer de morango; bolo e pipoca de arroz. Nos aniversários tínhamos guaraná ou laranjinha, cachorro-quente e doces. Doces eram meu refúgio afetivo. Qualquer coisa com leite condensado me faria feliz. Só não comia doces à base de ovos por conta do meu trauma (quindim, fios de ovos, ovos moles…).

Não sei como esse salgadinho sobrevive até hoje, mas tenho boas memórias afetivas

Amava torta de morango, mas no mês do meu aniversário não era época da safra de morangos. Tinha que esperar o aniversário da minha mãe, no mês de outubro, para comer torta de morango [sim, era um tempo em que não tinha tanta disponibilidade de produtos vindos de todos os lugares do mundo. A globalização ainda não era uma realidade].

Comecei a estudar cedo. Com 5 anos tive minha primeira formatura na pré-escola [já viste o retrato da alegria em ser fotografada]. Já sabia ler. Lembro que fui fazer prova para avaliarem se eu podia entrar na primeira série com 6 anos (que faria em maio, enquanto as aulas começavam em março). Passei. E desde então, fui sempre adiantada. O foco da minha educação foi desenvolver alguns tipos de inteligência que me dariam boas possibilidades profissionais. Sempre tirei boas notas e gostava muito de estudar. Sim, porque uma família de classe média com 3 filhos precisa priorizar algo: estudo para a empregabilidade.

Das inteligências múltiplas identificadas por Gardner [2] , o foco foi a inteligência linguística e lógico-matemática. Não tive muito incentivo para desenvolver as inteligências musical, física-cinestésica, espacial para além da escola. Em um curto período da infância, pratiquei balé na escolinha, como toda a menina da época. Mas não era a minha praia. Esportes e música só nos poucos períodos da escola (um girassol florindo no jardim está tatuado na minha mente até hoje). Talvez meus pais tivessem percebido que eu não tinha muito interesse nessas áreas e não investiram nisso. Meu esporte era conversar com as amigas (muito tempo para desenvolvimento de inteligência interpessoal e intrapessoal). A inteligência naturalista foi pouco desenvolvida: plantei algumas poucas coisas na vida e cuidei de pets (cuidar pode ser uma palavra forte para o que eu fazia quando criança).

Uma pequena aprendiz de produção orgânica de morangos. Já era adepta do uso de roupas sem gênero. Já colocava um cropped pra ir para a luta.

Na juventude, fui morar na capital gaúcha dividindo um apartamento com uma amiga para estudar. Passei numa universidade pública e tinha recursos contados para viver na capital. Neste período, minha alimentação mudou um pouco. Cozinhar não era minha praia. Tinha semanas que eu trazia comida feita na casa dos meus pais, tinha semanas que eu comia no restaurante universitário, ou buffets livres (lembro que eles destacavam o direito a uma carne; às vezes eu dava a carne de meu direito para um amigo), mas não era muito adepta de fast food. Comidas baratas eram cachorro-quente do Rosario, pastel de queijo e pizza. Levou um tempo para termos a profusão de comida a quilo que temos hoje. Meu foco continuou sendo estudar para ser alguém na vida, com um bom trabalho. Por muitas vezes, tentei frequentar academias para atividades físicas, mas não curti. Como me movimentava muito caminhando ou andando de ônibus, para o metabolismo que eu tinha na época, não poderia ser considerada totalmente sedentária.

Comecei a beber com 17 anos, porque minhas amigas já tinham 18. Na época beber e fumar eram requisitos necessários para a aceitação social. Eu não suportava cigarro, porque meu pai fumava. Nunca fumei. O álcool também era uma questão, na época meu pai bebia além do que a minha mãe achava que era adequado e ela vivia apontando isso. Hoje sei que ele começou a beber muito cedo para lidar com os sofrimentos da vida. Como ele não teve uma infância e juventude fáceis, esse foi o modo que ele encontrou para seguir em frente. Entendo que ele precisou desse ‘anestesiante’ para viver a vida, apoiado por uma sociedade que estimulava o álcool e o cigarro como marcadores de masculinidade e não os considerava drogas. Parou de fumar quando apareceu uma mancha no pulmão. Nunca mais colocou um cigarro na boca, então, determinação para lidar com vícios ele tinha. Na época que ele parou, ainda não tinha pressão social para parar de fumar, então, o mérito foi todo dele. Já o álcool seguiu na vida dele por mais tempo [até o fim da narrativa saberão]. No campo do álcool, comecei a beber drinks docinhos, espumante moscatel e depois fui para vinhos e caipirinhas. Nunca gostei de beber coisas amargas. Bebi de passar mal (vomitando na calçada) 2 vezes na vida. A primeira na juventude, onde reconheci o limite e nunca mais cheguei nele [dentre as coisas que eu não suporto na vida, vomitar é uma delas]; a segunda, em idade adulta, para relembrar o limite.

Na vida adulta, segui estudando e trabalhando para SER alguém na vida e me tornei uma professora universitária. Sonho atingido: me pagariam para fazer as coisas que eu mais gostava na vida: estudar e ensinar os outros. [esqueci de contar que na escola, eu terminava rápido os exercícios propostos e ia ajudar os colegas ou conversar]. E como era muito prazeroso, me tornei uma workaholic. Meu primeiro sinal de que algo estava errado foi dado pelo meu estômago. Tinha dores horríveis. Achei que era uma úlcera. Fui para o médico. A única recomendação que ele me deu foi a de me estressar menos, sem muitas opções sobre como fazer. Comecei a experimentar algumas possibilidades de novos modos de ser: tentei praticar esportes. Comecei pelo boxe para liberar o estresse, mas não vingou; tentei ir trabalhar de bicicleta, mas o terreno íngreme da cidade não foi nada favorável para mim.

O próximo capítulo dessa saga será no próximo post aqui

[1] Uma curiosidade A palavra “vianda” tem origem no latim “vivenda”, que significa “aquilo que se deve viver”

[2] GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a Teoria das Múltiplas Inteligências. Porto Alegre: Artes Médicas, c1994.

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Redesign de vidas

Dra. em Design. Orientadora da Vida Integral. Cuidadora do Planeta. RegenerARTivista do Amor. Agente do bemviver p/ um mundo+justo. www.redesigndevidas.com.br