Para Santiago sob a chuva ( Parte 2 de 4) — A Impermanência é a constância de quem caminha

Renata Mello Feltrin
7 min readJan 19, 2023

( Se você não leu a parte 1 dessa série, clique aqui )

A Catedral de Tui na Espanha é onde muitos peregrinos que fazem o trecho final do caminho central português até Santiago de Compostela, adquirem a credencial e iniciam a caminhada. Justamente porque dali até o destino final são cerca de 115km e o mínimo exigido para conquistar a compostela são 100km. Eu e meu marido Rogério entramos na Catedral sob chuva fina, logo após deixar para trás a cidade de Valença em nosso primeiro dia de peregrinação. Chegando naquele lugar foi como se atravessássemos um portal. Entramos e ali me ajoelhei e rezei. Não lembro ao certo o que pedi, mas lembro como me senti. Fui invadida de paz. Uma paz calma, uma coisa especial, uma leveza.

Deixando pra trás a igreja, passamos por mais duas pelo caminho até a saída da cidade que nos levou até uma antiga via romana. Por ela seguimos em uma trilha de bosques lindíssima, acompanhada de um rio à nossa direita sempre presente. Avançamos mais um pouco e entramos em uma rodovia. Justamente nesse ponto a chuva veio forte! Lembro que passávamos por um viaduto que cruzava duas pistas largas lá em baixo. A chuva torrencial me molhava da cabeça aos pés, escorria pelo meu rosto. Os carros fazendo barulho, passando em velocidade alta ao meu lado esquerdo. Absolutamente nenhum lugar pra achar abrigo.

Para lavar a alma

Tentei lembrar da última vez que havia “tomado um banho de chuva” daqueles, não lembrava. Eu deveria ser bem criança e deveria ter sido de pura brincadeira. Ali, seguindo embaixo dela me vi vulnerável, exposta, desconfortável, mas estranhamente não senti medo. Queria que parasse, queria muito, a chuva era a única coisa que não estava nos meus planos, a coisa que mais desejei não encontrar. Mas a chuva decidiu que seria presente, decidiu que me acompanharia eu querendo ou não. E no primeiro dia ela já me lavou inteira.

Aquele “momento de temporal” durou cerca de 30 minutos e depois uma chuva mais leve e contínua seguiu. Passamos pela ponte das febres de San Telmo com ela e por um longo caminho de terra sob árvores até chegar em uma primeira vila no meio do nada. Mas no meio do nada tinha um café, e ali tinha um suco de laranja gelado que jamais vou esquecer o gosto, que desceu perfeito combinando sabor, refrescância e nutrição.

Continuamos com o tempo mais firme, ainda assim não conseguimos ir muito mais rápido. Estávamos cansados, os pés começavam a doer, coluna dando sinais de incômodo. Próximo à nossa chegada o céu abriu ainda mais e um arco-íris apareceu no horizonte, bem na nossa frente e bem na direção de onde deveríamos seguir. Isso me arrancou um sorriso e me senti grata, era um sinal? Eu achei que era.

No primeiro dia andamos cerca de 25km, um pouco mais do que a média que andaríamos nos 6 seguintes de percurso completo: algo em torno de 20km por trecho.

Dor, incômodo e aprendizado

Na chegada em O Porriño, primeira cidade que pernoitamos, Rogério começou a sentir bastante dor no joelho. Foi uma noite tensa de remédios, gelo e repouso. Por isso, começar o segundo dia foi muito diferente do primeiro. A ansiedade deu lugar ao sentimento de alívio porque seria possível continuar. O café da manhã foi tomado com calma para sairmos só com o nascer do sol e o conjunto de aprendizados do intenso primeiro dia nos habilitaram à realmente estar mais conectados à experiência.

Ao nos afastar do perímetro urbano, entramos em um bosque de pinheiros. Saindo de lá bem na nossa frente no céu novamente um arco-íris indicava o sentido do caminho. Parece até fato inventado mas dou minha palavra que é a mais pura verdade! Após a primeira hora de caminhada a chuva novamente nos encontrou, intensa e contínua.

Quando chove forte no Caminho a experiência, por mais que estivéssemos fazendo em duas pessoas, ficava mais individual. É incômodo conversar sob chuva forte, aliás é incômodo fazer qualquer coisa nesse estado, inclusive simplesmente caminhar. Por inúmeros trechos eu seguia mais na frente ou mais atrás do Rogério durante longos intervalos de tempo, talvez horas. Quando chovia isso acontecia ainda mais.

E então, naquele segundo dia, andando já por pelo menos umas 2 horas desde a saída e por pelo menos uma hora sob chuva muito intensa, em uma estrada sem a menor possibilidade de me esconder, me proteger, da chuva ou de mim mesma, fui invadida por um sentimento profundo de desconforto. Os pés encharcados, a água escorria pelo meu rosto atrapalhando inclusive de enxergar com clareza. Um pouco de frio e nenhuma perspectiva daquela situação se amenizar. Haveriam horas pela frente exatamente daquele jeito.

Senti profundamente. “Isso é certamente uma das coisas mais desagradáveis que já fiz na vida”, pensei. Tudo o que não queria era que chovesse e agora estava ali imersa em uma chuva inconveniente e não prevista. Além de toda pena física isso me trazia grande frustração. Foram longos minutos profundos de aflição.

E de repente aconteceu.

Uma percepção profunda que me invadiu e me trouxe respostas que eu nem sabia que buscava.

O oposto do desconforto é a paz

Aquela situação que se mostrava tão difícil fisicamente, era ao mesmo tempo uma das coisas mais fáceis que já havia feito na vida! Simplesmente porque não existia nada a ser decidido ali, nenhuma carga cognitiva envolvida, nada. Toda a decisão que eu precisava tomar tinha acontecido quando decidi que faria aquela caminhada, ainda no Brasil. Ali era apenas sobre caminhar, apenas e totalmente sobre seguir, apenas sobre completar o percurso, com chuva ou sem ela.

Vencer o desconforto passa pela conquista de paz. Naquele instante uma paz tão intensa me invadiu, uma clareza mental que ligou estímulos físicos e emocionais de conforto, de ordem, de força, de equilíbrio e de gratidão. Isso me transformou e não naquele dia apenas, transformou pra vida. Profundo a ponto de só conseguir entender o poder disso ao longo dos dias posteriores e até mesmo depois de toda a caminhada. O foco no presente, no processo, no que ele faz de nós.

A vida é impermanência. É sol, chuva, arco-íris, tempestade, novamente sol. Todos nós como humanidade havíamos acabado de sair de um período intenso de incômodo e angústia coletiva: a pandemia do COVID 19. Foram 2 anos longos e de muita incerteza, sem visibilidade de como seria aquela jornada, sem clareza de por quanto tempo andaríamos sob “aquela chuva”. Foi duro e cicatrizes emocionais nos acompanharão para sempre. Cada um de nós como indivíduo esquece do que ouviu, comeu, falou, comprou, mas jamais esquece do que sentiu. E sentimos intensamente esse período da humanidade. Aprendemos juntos à seguir sob a chuva, a incerteza e a dor.

O mundo, como nunca, é reflexo da realidade impermanente da vida. Quanto mais interligados enquanto economia, recursos compartilhados, culturas complementares, mais precisamos aprender a seguir com propósito de chegar, não em um destino final, mas em uma versão melhor do mundo e de nós mesmos. Não é sobre o percurso, e sobre as intempéries que enfrentaremos, é sobre o que o percurso faz de nós. E o que nós nos tornamos diante do outro nessa jornada.

Nenhuma chuva cai sob o solo em vão

Naquela região do Norte da Espanha, entendi que a profunda experiência daqueles dias para mim jamais teria acontecido da mesma forma sem a chuva. Ao entender isso fui capaz de agradecer por ela estar ali, tão presente e tão marcante, protagonista do meu caminho, intensificando tudo que já tinha tanto pra ser intenso. Só naquele segundo dia foram pelo menos 4 horas de muita água caindo do céu. Porém nos últimos 5 quilômetros abriu um sol tímido, mas suficiente para mais uma vez pintar um arco-íris bem na direção de Redondela, onde iríamos pernoitar. Não, não era uma miragem.

Quando chegamos na pousada àquela tarde, completamente encharcados, esgotados, eu era concretamente diferente da Renata que saiu de O Porriño pela manhã. Embora não conseguisse realizar ainda o impacto disso.

Nos próximos 4 dias que se seguiriam até a chegada inesquecível e emocionante em Santiago de Compostela, passamos ainda por Pontevedra, Caldas de Reis e Padrón antes do destino final. Além dos lugares que passamos, houveram homens e mulheres que passaram por nós. Aliás, mais do que isso, gosto de dizer que eles e elas me atravessaram. O encontro com a humanidade do outro, naqueles dias, foi um presente. Ao deixar registrado, como parte seguinte à essa da minha narrativa, deixo eternizado para você e pra mim toda essa riqueza desses encontros. Riqueza que nunca serei capaz de mensurar.

Sobre a Autora: Renata é casada com Rogério Feltrin desde 2005 e juntos percorreram 125km do Caminho de Santiago na Galícia entre 19 e 24/10/2022. São pais de Carolina 9 anos e Mariana 12 anos, que atuou como ilustradora desse projeto.

--

--

Renata Mello Feltrin

Renata Feltrin é mãe, construtora de futuros e apaixonada por viajar como uma atitude de curiosidade e descoberta sobre si mesma, o mundo, pessoas e culturas.