Humanidades (en)frente à barbárie

Uma análise da postura da extrema direita em relação às Ciências Humanas.

Revista Torta
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10 min readJun 28, 2019

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Por Giovana Silvestri e Rafael Junker

Editado por Arthur Almeida, Giovana Silvestri e Rafael Junker

No dia 26 de abril deste ano, a manhã dos brasileiros começou com as seguintes afirmações: “O Ministro da Educação @abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”.

Além dessa postagem, feita pelo presidente em seu “Diário Oficial”, o Twitter, ele, na mesma rede social, ainda complementa: “A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”.

Não é primeira vez e, segundo as expectativas mais otimistas, não será a última, que o presidente eleito manifesta certo desprezo pelo campo das Ciências Humanas — restrito aqui, por questões de síntese, à Filosofia, Sociologia, História e Geografia.

Um tweet pode parecer inofensivo, mas, nesse caso, tomou proporções mais claras de ataque às humanidades, uma vez que o anúncio do presidente revela uma proposta de “descentralização” dos investimentos. Assim, a ameaça sai do campo simbólico e vai para o material, com um anúncio de corte de investimentos.

O termo “descentralização”, antes de mais nada, foi empregado pelo presidente eleito de forma equivocada. Só é possível “descentralizar” aquilo que está centralizado. E esse não é o caso dos investimentos em Ciências Humanas por parte do Governo Federal.

Segundo os dados analisados pela Lupa, dos 185,4 mil benefícios disponíveis pela Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) — ambas as entidades mantidas pelo Governo Federal — 119,3 mil benefícios vão para as áreas de Ciências Exatas, Biológicas, Agrárias, da Saúde e as Engenharias.

Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes, ficam com uma outra parte das bolsas. Em termos porcentuais, 64,3% das bolsas vão para o primeiro grupo de áreas e 24,3%, para o segundo. O restante é destinado a outros campos.

Algum tempo depois do Tweet do presidente, no dia 26 de abril, o Ministério da Educação anunciou um corte — “contingenciamento”, nos termos do Governo — de 30% no orçamento das Universidades Federais, o que afeta todos os cursos de todas as áreas.

Mas a proposta deste texto é discutir a importância das Ciências Humanas. Limitamo-nos a isso. Em texto publicado na Revista Cult, a filósofa Marcia Tiburi, defende a importância da educação citando uma passagem do texto “Educação após Auschwitz”, do pensador da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno.

O filósofo utiliza-se de um período histórico, a Segunda Guerra Mundial, para argumentar a favor da memória da barbárie, uma vez que ela possui impacto nos rumos da sociedade. Adorno destaca que é preciso lembrar de Auschwitz. E a educação garante isso. Com destaque para a História.

A História engloba a memória, análise e estudo dos fatos passados através de uma perspectiva distante do ocorrido. A matéria auxilia na recordação e compreensão de fatos, como Auschwitz, para, assim, evitar uma “repetição” do ocorrido. E não só evita como, também, destaca as condições fundamentais que geraram a barbárie.

É relevante que fatos como as Grandes Guerras, ao estarem presentes no consciente coletivo, contribuem para a compreensão da sociedade contemporânea, da economia e das tensões políticas, tanto nacionais quanto mundiais.

O indivíduo, ao conhecer a História, conhece os fatores que levaram a sociedade para o momento contemporâneo. Como Goethe, precursor do Romantismo, afirma: “Aquele que depois de três milênios não é capaz de se ter na própria conta estará fadado a viver uma vida de ignorância.”

Por outro lado, segundo o André Azevedo da Fonseca, Professor e pesquisador no Centro de Educação Comunicação e Artes (CECA) da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em um artigo escrito no Medium “Fanáticos odeiam as humanidades porque elas refletem o monstro que os habita” a História não é apenas “aprender com os erros do passado”.

Para Fonseca, estudar História é desenvolver a consciência das inúmeras possibilidades de nosso tempo, é entender que agimos condicionados por ele e que não somos capazes de definir ou prever um futuro, pois “a história é instável e as consequências de nossas ações no presente são não apenas imprevisíveis, mas, frequentemente, inconcebíveis”.

Permanecemos condicionados pela história, não determinados por ela. Não há um destino, “por isso não dizemos que a história está em evolução, pois a história não tem um objetivo, um rumo ou um fim. A história é feita de dramas improváveis que nós construímos e destruímos com a nossa reflexão e a nossa apatia, assim como a nossa ação e inação”.

Devido às infinitas direções e possibilidades, eles (os fundamentalistas) não aprovam essa perspectiva que essa matéria atribui, pois, como tradicionalistas, não aceitam as mudanças do tempo, do espaço, da História

“(…) eles [fundamentalistas] se apavoram com a perspectiva de que suas ilusões possam ser simplesmente esquecidas nas encruzilhadas do tempo. Daí também o ódio à diversidade e a liberdade, que se exercitam precisamente na possibilidade de os homens e as mulheres escolherem caminhos que não foram projetados pelas antigas crenças. A violência do fundamentalista é fruto do medo da história”.

Uma análise da visão da extrema Direita

O presidente eleito, com sua postura política, entende as Ciências Humanas a partir de valores e conceitos Positivistas, e esse é um dos fatores que o levam a desacreditá-las em relação às outras ciências.

Em meados do século XIX, a cultura intelectual chamada “Positivismo” articulou argumentos como o de que as Ciências Naturais são superiores às demais, como as Humanas que, para os positivistas, deveriam ser apenas metodologias a serem aplicadas, limitando e quase anulando, o pensamento crítico, a análise e compreensão da sociedade — que são utilizados, como citado, no estudo da História.

Além disso, o pensamento positivista é a base da visão política dos militares brasileiros, uma vez que nasceu, se desenvolveu e se moldou junto com o militarismo no Brasil. Por isso, a tendência do presidente eleito em atribuir crédito à técnica, ao imediatismo e à materialidade das disciplinas como Veterinária, Engenharia e Medicina.

Para ele, essas disciplinas são essenciais para fomentar a economia brasileira, e com razão, ao analisarmos a situação econômica do país. Sua declaração no Twitter reflete esse pensamento, uma vez que “a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte (…) um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta”.

Contudo, a medida que associa as ciências exatas e biológicas exclusivamente a um “ofício que gere renda”, descredibilizam-se áreas que evitam Guerras, instigam o pensamento crítico, fomentam a cidadania e formam pesquisadores e professores.

Porém, dentro de um pensamento de Direita, as características acima não são atribuídas às Humanidades, uma vez que os expoentes desse espectro político interpretam e enxergam as Universidades — principalmente as públicas — e os cursos de Humanidades como manipuladores de pensamento, por serem compostos por marxistas, comunistas, petistas, ateus, gays, lésbicas, etc. O típico argumento *ad hominem.

Segundo Juvenal Savian Filho, filósofo, teólogo e docente da Unifesp, historicamente os partidos de direita ou centro-direita fazem hoje o que os setores de esquerda faziam no passado. A esquerda alegava ser contra o ensino da Filosofia, por exemplo, pois “diante da falta de professores em alguns locais, quem dará as aulas serão padres, pastores, historiadores e gente com qualquer diploma universitário”.

Por outro lado, atualmente, a direita critica as Humanidades principalmente com base nos professores da área. Assim como pela esquerda antigamente, eles são entendidos como manipuladores de pensamentos. Se a crítica se baseia, novamente, em uma manipulação de pensamentos com o ensino — apenas mudou-se o espectro ideológico — a crítica permanece a mesma, e sem grandes fundamentos.

Como comentado pelo professor, o estereótipo não corresponde à realidade, tendo em vista que através de sua observação com os trabalhos que realizou na Universidade, tanto o aspecto religioso quando o ideológico político são contrários aos alegados pela direita.

A maioria dos professores, em número, de Filosofia do Ensino Médio é de “pessoas religiosas ou agnósticas (pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar a existência de Deus e têm grande respeito pelas pessoas religiosas)”, detalha Savia.

“O fato é que a maioria dos professores nos vários pontos que tenho visitado de norte a sul é uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do ponto de vista político, muitas delas são inclusive de direita ou de centro-direita, muito longe de serem petistas”, ressaltou.

Logo, independente dos lados, seja esquerda ou direita, a crítica às Humanidades sempre esteve relacionada à manipulação de pensamento, sendo os docentes taxados de pastores a ateus, de marxistas a qualquer pessoa com diploma universitário.

A realidade é interpretada e distorcida, pois, com uma visão superficial sobre a criação de pensamento crítico, estimular a visão sobre questões políticas, econômicas, sociais, históricas, filosóficas e geográficas, são manipulações se não vão de acordo com o pensamento ideológico de determinado grupo.

Em relação à Filosofia e à Sociologia, o desprezo do presidente eleito é compreensivo. Em resumo grosseiro e, em certa medida, limitador, essas duas áreas do conhecimento, a primeira sendo a mãe de todas as Ciências, a segunda surgindo a partir de uma necessidade de compreensão mais detida e metodológica da sociedade e de suas relações, contribuem para o desenvolvimento de senso crítico.

A Filosofia tem o importante papel de pensar o mundo, o homem, o conhecimento, a própria ciência, a linguagem, a política e vários outros aspectos da existência, incluindo a própria existência. Ela é uma importante fonte de transformação social, ainda que alguns filósofos de direita se recusem a atribuir a ela esse papel.

A ideia de cortar investimentos públicos na área é fruto de um interesse de restringir e dificultar o acesso às Humanidades. Essa restrição afetará, principalmente, os mais pobres, mais dependentes do Ensino Público e dos financiamentos estudantis do Governo.

Paulo Martins, professor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), ao tratar das afirmações do presidente eleito, destaca: “Os abonados, aqueles que exploram, não devem ter qualquer responsabilidade com a melhoria de vida da população, muito ao contrário, devem estar sim comprometidos com sua servido e afastando-os, os mais pobres, do acesso às Humanidades, assim sua submissão passará a ser absolutamente voluntária.”

Jean Pierre Chauvin, professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA-USP, defendendo as Humanidades, pontua: “ ‘Por que a historiografia e o ensino de história costumam ser alvejados pelos regimes totalitários?’; ‘Por que uma parte da escola brasileira ainda subestima o papel da geografia, da filosofia e da sociologia, na trajetória dos estudantes?’; ‘Por que grande parte dos alunos lê resumos, em lugar das obras literárias recomendadas pelos vestibulares?’. Tento responder: em parte porque o lucro e, com ele, a ética da recompensa tomaram o lugar dos conteúdos e métodos que deveriam ser reservados a estimular a atuação de seres humanos melhores”.

Contribuições da Filosofia — USP e UNICAMP

Um exemplo de contribuição da Filosofia na USP é o Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise, o Latesfip. Recentemente, os integrantes do Laboratório se uniram na produção do livro Patologias do Social, cuja palestra de apresentação o repórter Rafael Junker cobriu para a Revista Torta.

Outro importante exemplo, dessa vez da UNICAMP — Universidade de Campinas, é a Revista Internacional de Filosofia Modernos & Contemporâneos. Em 2018, ela publicou um interessante dossiê sobre o célebre filósofo Baruch Espinoza.

Contribuições da Sociologia- UNESP

Algumas contribuições para a sociedade das humanidades está na Sociologia e apresentada pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” — UNESP em suas revistas científicas de divulgação de conteúdo acadêmico.

A Revista “Estudos de Sociologia” da UNESP — FCLAR (Faculdade de Ciências e Letras do campus de Araraquara), e apresenta artigos interessantes para leitura, como o seguinte artigo “Sociedades de controle: a interpretação deleuzeana de Foucault” por Elton Corbanezi em sua última edição publicada em 2018.

Outra produção da Universidade que aborda as Ciências Sociais é o ensaio, presente na mesma edição “Sobre amores impossíveis e corpos improváveis”, de Fabrício Monteiro Neves e Vanessa Paula Ponte.

Contribuições da História — USP E UNESP

A Revista de História (RH), da USP, fundada em 1950, é um dos mais antigos periódicos acadêmicos do Brasil especializado nessa disciplina, como a apresentação do site da Revista revela. É uma publicação internacional e de prestígio. Em 2019, o periódico publicou um dossiê sobre Moda e História.

A revista História (São Paulo) é um dos mais antigos periódicos publicados pela UNESP. Começou em 1982, surgindo a partir da junção de dois outros projetos da época: “Anais de História”, editado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, e “Estudos Históricos”, publicado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília.

A partir de 1990, as edições passaram a ser editadas pelos dois programas de pós-graduação em História da UNESP, situados nas cidades de Franca e Assis. A revista publica semestralmente ou anualmente, sua última produção é um dossiê intitulado “Escravidão e Liberdade na Diáspora Atlântica”.

Contribuições da Geografia — UNICAMP e UNESP

Uma das formas de atribuir retorno a sociedade da UNICAMP é o “Instituto de Geociências” que realiza atividades de extensão voltadas para a comunidade, empresas e instituições governamentais e não governamentais.

As atividades de Extensão do Instituto são convênios, contratos, programas, projetos, cursos, prestação de serviços e várias outras formas de interação e contribuição com e para a sociedade, retribuindo o investimento no curso.

Outro exemplo na área é a Revista Geografia, da UNESP. Em dezembro de 2018, a publicação trazia seis artigos, entre eles A Rota do Indivíduo: Pensamento Geográfico e Geografia da Ciência no Percurso de Personagens ‘Anônimos’”, de Dante Flávio da Costa Reis Júnior.

* Argumento ad hominem é aquele que não rebate o argumento alheio, mas, sim, parte para um ataque pessoal àquele com quem se discute.

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