O que resta do trabalho quando futuro e passado colidem bem na nossa frente

Ricardo Calazans
5 min readApr 20, 2017

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Patrões, empregados e novas (possíveis) conexões num mundo sem empregos

Queda de Constantinopla, afresco, igreja Moldovita, Romênia, século XVI

É uma época e tanto para se viver.

(não disse que é fácil)

Todo mundo sabe. Nas últimas décadas, a internet, a rede www e todas as inovações tecnológicas, câmbios econômicos e convulsões sociais derivadas dessas invenções formaram este conjunto imperfeito e mutante que, aqui em 2017, podemos chamar (não sem algum pesar) de REALIDADE. Ao que parece, nosso presente é um daqueles momentos históricos que vão parar nos livros escolares ou em filmes distópicos — ou nos dois.

Nem de longe o mundo é, hoje, o que era era há 10 anos. Viver em 2017 é participar de um terremoto: sacolejamos sem parar e tentamos ficar de pé, enquanto tudo ao redor está de pernas pro ar. É triste dizer, mas quedas são inevitáveis durante terremotos. Mas estes são nosso mundo e nosso tempo. Como se lida com isso, ainda mais sabendo que daqui a cinco (ou dois) anos tudo já poderá ser outra coisa (aposto que sim)? Não sabemos bem o quê, mas nada parece muito seguro ultimamente.

No tempo passado, mas ainda presente, a vida se organizava de outras formas. A estrutura familiar patriarcal (herança do Brasil colonial), o modelo escolar prussiano (do ancestral século XVIII) e as hierarquias de trabalho engessadas (do igualmente antigo século XIX) haviam sido erguidos sobre uma lógica de escassez, com menos informação, menos empregos, menos direitos para mulheres e minorias. A banda era mais estreita. Era tudo ou nada: fora da rigidez dessa lógica, sobrava o caos da miséria, da ignorância e da marginalização social.

Caulos

A isso demos o nome de Civilização Moderna. Esta que ainda está em curso.

No tempo futuro, mas já presente, o caos penetrou bonito a rigidez. A banda digital é, efetivamente, bem mais larga. O que está em cheque / choque é nossa própria organização social, agora que o local pode ser capaz de virar global sem intermediários. E que o micro pode construir seu valor sem ter que se tornar necessariamente macro.

“O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança”, observou Sigmund Freud em 1930. Oitenta e cinco anos depois, a banda carioca Baleia constatava (e postou a constatação no YouTube): “Meu lugar são dois mundos em colisão.”

Trivia:

Com a internet, a informação *:

a) tem se desorganizado, ou

b) tem se reorganizado de novos modos;

O modelo escolar:

a) está caindo de maduro, ou

b) está despertando para modelos que estimulem de novas maneiras o potencial de nossas crianças e jovens conectados;

Os empregos:

a) evaporam na nossa cara ou

b) evaporam na nossa cara.

*R: Todas as respostas acima.

Trabalhadores ingleses na época da Revolução Industrial

O choque do Futuro (com o passado).

Os índices econômicos e o inconsciente coletivo repetem / rezam: “é uma crise; VAI PASSAR”. Vai (vai?), mas, quando passar, como estará o mercado de trabalho? Reparando bem bem, ele já está diferente. E nós também acabamos mudando aos poucos, de um jeito ou de outros, embora, por hábito ou falta de opção, sigamos procurando esses empregos que, ou escasseiam ano após ano, ou simplesmente já não existem mais.

Futuro e passado colidiram bem na nossa frente, e o resultado disso é um presente espinhoso. O modelo atual de trabalho — aquela mesma relação patrão-empregado lá da Revolução Industrial (século XIX, lembra?) — é descrito de maneira assombrosa e transparente nesta dolorosa reportagem da BBC Brasil sobre as pressões que os trabalhadores sofrem em seus empregos neste período de crise. É um texto bem direto: “Enquanto essas relações não mudam, a pressão dentro dos escritórios começa a afetar a saúde dos trabalhadores”. (o texto é pré-reforma trabalhista; essas tensões, hoje só fizeram aumentar).

(ouça a Playlist da Terceirização)

‘Their refinement of the Decline’, óleo sobre tela de Michael Kerbow

O futuro do trabalho

Entramos na Era Pós-Industrial, mas ainda seguimos o modelo de trabalho da revolução anterior. “O futuro do trabalho como o conhecemos está mudando de uma abordagem autoritária ultrapassada para esquemas colaborativos que nos inspiram a nos envolver de maneiras novas e diferentes com nosso trabalho e uns com os outros”, atesta a autora deste artigo publicado em 2014 no Brasil Post. Há quem enxergue oportunidades onde muitos só vêem desesperança.

As relações nessa Era Pós-Industrial (com wifi, 4G e smartphones cada vez mais acessíveis) apontam naturalmente para a colaboração e o compartilhamento; fomos todos irremediavelmente afetados pela informação que circula em rede. E o 5G vai acelerar e consolidar essas novas relações em pouquíssimo tempo. Mas antes mesmo disso, cada vez mais gente já deseja, cria e propaga relações de trabalho mais equilibradas e abertas às boas ideias, interessada em derrubar o modelo vertical de gestão. Algo que, ao mesmo tempo, é uma questão de saúde, um modelo de eficiência, uma ação por equilíbrio social e uma afirmação política. É ou não é uma época e tanto?

Ambientes e processos colaborativos são construídos aos poucos, com quedas e avanços; mas, de repente, transformam tudo ao redor. Mas isso não acontece sem dor. Como observa a reportagem da BBC, “o ideal seria que patrões e empregados formassem uma ‘coalizão’ para que, com sacrifícios mútuos, pudessem passar juntos pela recessão”. Porém, por mais óbvio, isso ainda não passa de um desejo para quem trabalha em esquemas verticais. Os mais jovens (mas não apenas eles) se debatem sob esse modelo e buscam outras conexões profissionais, novos arranjos em que os objetivos sejam traçados de comum acordo entre todos, de forma simples e clara. São os tais dois mundos em colisão da Baleia se chocando bem na nossa cara.

Redes

No digital, cultivamos uma imensa planície de informações acessíveis e semeamos potencial para desatar nós e criar novos elos, por mais improváveis e impensáveis, únicos entre nós, seres vivos do século XXI. Agora todo mundo pode conversar — boas conversas sempre dão ótimos resultados. Precisamos com urgência de boas conversas.

Pela rede se espalha desinformação, mentiras, ódios e preconceitos em larga escala. (Pós)Verdade. Mas uma rede também pode ser feita da soma das habilidades específicas de quem faz parte dela. Queremos construir uma em que essas habilidades estejam a serviço de todos, e que as respostas para problemas, crônicos ou novos, estejam na troca de serviços e informações e nas associações certas para cada situação. Esta é uma organização de trabalho possível e viável neste tempo em que vivemos. Temos tudo para lidar bem com ele e transformar nosso futuro num presente muito melhor. #republique

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