Sábado de Blues –Muddy Waters: O Rei de Chicago

Rob Gordon
10 min readJul 23, 2016

--

Nota: para os usuários de Spotify, todas as músicas que aparecem no texto estão nessa playlist.

O blues é cheio de lendas e uma delas é particularmente fascinante. Alan Lomax — o homem que percorria o Sul dos Estados Unidos no começo do século 20 gravando músicas regionais para a Biblioteca do Congresso americano — estava na região do Mississippi procurando por Robert Johnson.

Lomax já ouvira falar de Johnson há bastante tempo conversando com moradores da região — muitos deles blueseiros — mas não conseguia localizar o sujeito de forma alguma. Ao passar por uma cabana perto de Clarksdale, viu um jovem negro sentado na varanda com um violão. Sem pensar duas vezes, Lomax desceu do carro e perguntou ao sujeito se ele sabia onde encontrar Robert Johnson.

“Robert Johnson? Robert Johnson morreu faz uns dois ou três anos”, respondeu o jovem.

Lomax não conseguiu disfarçar sua decepção e explicou ao rapaz seu trabalho de gravar músicas populares da região num equipamento que levava no carro. Era um trabalho mais histórico que comercial, mas o jovem se animou.

“Se o senhor quiser gravar aqui. Meu violão está ali na varanda.”

Lomax aceitou a proposta. Afinal, em suas viagens, gravava praticamente tudo o que encontrava pela frente. Enquanto descarregava o equipamento, perguntou ao rapaz como ele se chamava.

“McKinley. McKinley Morganfield”.

“McKinley?”

“Isso. Mas todo mundo aqui me chama de Muddy Waters”.

A gravação aconteceu em agosto de 1941 e chega a ser divertido pensar o que Lomax faria se soubesse que estava ao lado de um sujeito que, menos de uma década depois, mudaria a história da música do século 20. A conversa em torno de Robert Johnson talvez seja lenda — provavelmente é — e, apesar de trazer certa magia, não chega perto do tamanho da lenda que o próprio McKinley se tornou.

Muddy Waters pisou em Chicago pela primeira vez em 1943 com esperança de se tornar um músico profissional. Deixou para trás sua segunda esposa e um filho ilegítimo (que causou o final do seu primeiro casamento), e levou na bagagem apenas seu violão e tudo o que ele sabia sobre o blues da região.

Por incrível que pareça, não foi suficiente. A Chicago dos anos 40 estava se tornando a meca do blues, mas como todo centro urbano, exigia uma música um pouco mais polida que o velho blues rural. E o jovem que durante o dia ganhava a vida trabalhando em fábricas e dirigindo caminhões não conseguiu fazer sua carreira decolar — mesmo contando com a ajuda de Big Bill Broonzy, um dos maiores músicos da cidade.

As coisas começaram a mudar em 1945, quando ganhou uma guitarra elétrica de seu tio. Finalmente, conseguiu alguns contratos com gravadoras como Mayo e Columbia, mas essas canções nunca viram a luz do dia. Em 1947, conseguiu um contrato com a Aristocrat e, ao lado do pianista Sunnyland Slim, gravou Gypsy Woman e Little Anna Mae, que também não foram lançadas.

Sua sorte mudou apenas em 1948, quando I Can’t Be Satisfied se tornou um enorme sucesso. Pouco depois, emplacou I Feel Like Going Home, que também explodiu. As duas canções já possuem aquilo que seria a marca do seu som: elas são melódicas (a ponto de grudar na cabeça), mas pesadas e repletas de notas graves (elas chegam a ser quase ásperas em alguns momentos). Por cima de tudo isso, uma voz poderosa e segura de si cantando sobre insatisfação e saudade.

Essas duas canções não transformaram a história do blues, mas foram suficientes para mudar a vida do jovem que nem era tão jovem assim, que já havia ultrapassado os trinta anos de idade (Muddy dizia ter nascido em 1915, mas há indícios de que sua data real de nascimento possa ser 1913). Assim, largou os empregos diurnos e começou a se empenhar na carreira. Agora, era possível viver apenas de sua música.

Poucos anos depois, a Aristocrat já havia mudado de nome para Chess — que, mais que uma gravadora, se tornou praticamente uma grife do blues — e Muddy era o principal astro da casa. Mais importante que isso: Chicago tinha se tornado o centro do blues elétrico nos Estados Unidos e a música que tocava na rádio mostrava que a cidade tinha um rei: Muddy Waters.

Nesse momento, Muddy já havia gravado algumas canções que se tornariam sua assinatura, como Rollin’ and Tumblin’ e Rollin’ Stone — que, anos mais tarde, batizaria uma banda de jovens ingleses fanáticos pelo seu trabalho. Se sua carreira tivesse parado aí, ele já seria lembrado como um dos maiores nomes do blues da época.

Sua banda não reunia apenas alguns dos principais músicos de Chicago. Little Walter (gaita), Otis Spann (piano), Jimmy Rogers (guitarra) e Elgin Evans (piano) hoje são considerados lendas do blues. E à frente de tudo, Muddy comandava a ação com sua persona fascinante e uma presença de palco quase hipnotizante.

E aí tudo mudou novamente. Um dos sujeitos que trabalhava na Chess era um ex-boxeador gigantesco que tocava baixo e acabou se tornando o maior compositor da casa. E, em 1954, ele escreveu três canções para Muddy Waters que se tornariam emblemáticas. E duas delas são fascinantes.

A primeira se tornou um hino do blues. Hoochie Coochie Man mistura magia negra com conquistas amorosas e poder (financeiro, mas não apenas esse) numa canção que se tornou imortal, com sua letra quase falada a maior parte do tempo, em que Muddy fala e a banda responde. É uma das músicas mais influentes do século e, em cada dez coletâneas de blues, Hoochie Coochie Man está em pelo menos nove.

I Just Want to Make Love To You também se tornou hino e foi regravada por muita gente. Acredito que eu já disse isso em outros textos, mas nenhuma versão chega perto da original.

Sim, sua letra fala sobre sexo (e não vou nem mencionar a coragem do seu título em 1954 — treze anos antes dos Stones cantarem que “eu quero passar a noite com você”), mas na voz de Muddy, a canção ganha profundidade e se torna quase um grito de liberdade, em que o músico literalmente diz que não quer nada além de fazer amor com a pessoa para quem ele canta — junte isso ao solo arrastado de gaita de Walter e você tem uma das músicas mais sensuais que eu ouvi na vida.

Mas há um verso em especial que dá uma profundidade à letra que vai além do universo do blues. O sexo sempre foi tema recorrente no blues e, assim como o whisky e o próprio blues, ele é usado para aliviar a tristeza do dia a dia — é quase uma pequena vitória em meio a tantas derrotas.

Mas, aqui, Muddy canta que “eu não quero você porque estou triste, eu apenas quero fazer amor com você”. Ou seja, ele segue o caminho contrário das principais letras de blues. Enquanto o normal seria “eu estou triste porque não faço amor com você”, Muddy é mais sincero e diz apenas o que quer. Não se trata de tristeza, e sim de tesão — e como a letra inteira deixa claro, é um tesão quase irracional.

Essas músicas — junto com a terceira, I’m Ready — ajudaram a criar a imagem de Muddy Waters em Chicago. Se os blueseiros do início do século tinham aquela aura quase mística, Muddy, aqui, começa a criar uma persona mais urbana, que começa a se confundir com o estereótipo do “macho” da época: boêmio e conquistador, perigoso e ameaçador, mas ao mesmo tempo sensível e com uma classe inatingível. E Muddy, fora dos palcos, não era muito diferente disso.

Leonard Chess, Muddy Waters, Little Walter e Bo Diddley. A história é feita nos estúdios da Chess.

Muddy mudou a história do blues. E também mudou a minha vida. Quando eu descobri Muddy Waters, já estava começando a ouvir blues mais a sério e ele, junto com John Lee Hooker, foram minhas grandes portas de entrada para isso.

Isso aconteceu, claro, pelo som, mais próximo do rock e consequentemente mais acessível. Muddy é uma das grandes pontes entre o Mississipi e o rock, a ponto de deixar o público do festival de Newport chocado quando começou a tocar na apresentação que se tornou um marco na história do blues. A plateia esperava um blues rural, acústico e pacífico, e, de repente, levou algo muito mais perto de rock que de blues — ou do que o público casual imagina ser blues — no meio da cara.

Mas se eu comecei a mergulhar nas músicas de Muddy Waters por causa do som, não demorou muito para que elas começassem a me fazer compreender de verdade o blues. Claro que há algumas restrições: o blues urbano parece muito mais focado em cantar amores — ou a perda deles — que toda a gama de variedades do blues rural dos anos 30.

Enquanto Robert Johnson, Son House e Skip James funcionavam como cronistas e cantavam sobre tudo — absolutamente tudo — Muddy e a maior parte dos blueseiros a partir dos anos 50 parecem mais preocupados em cantar sobre o sexo oposto. Liricamente, é um ambiente mais estreito. Mas, na voz de Muddy — especialmente quando as letras de Dixon entravam em cena — a profundidade é a mesma.

Willie Dixon, Muddy Waters e um jovem Buddy Guy.

Nas músicas de Muddy, cada verso e cada nota parecem ter significado. Do solo de Walter em I Just Want to Make Love To You aos gritos de Hoochie Coochie Man, dos lamentos de Forty Days and Forty Nighs à energia (quase sexual e despojada) de Got my Mojo Working… Nada está ali por acaso. Muddy era mais que o rei de Chicago. Muddy era um gênio.

Não é à toa que todos roqueiros influenciados pelo blues veneram sua imagem. Ele fez mais pelo blues que apenas modernizar o som, ele atualizou também a imagem do blueseiro. Jimi Hendrix, Eric Clapton, Angus Young…Todos já citaram Muddy como uma de suas grandes referências.

Sem Muddy, não haveria o blues como conhecemos hoje. Nem o rock como conhecemos hoje.

E provavelmente você não estaria lendo esse texto. Sem Muddy, eu nunca teria gostado de blues a ponto de escrever sobre esse assunto.

Clique e Ouça — Músicas para Conhecer:

Gypsy Woman — A primeira gravação de Waters em Chicago. É um blues elegante, somente com guitarra e piano, mas já mostra toda a confiança de Muddy, especialmente nos vocais. Mais que cantar, ele está interpretando a letra como um veterano, como nos momentos em que ele apenas conta a história e volta a cantar.

I Feel Like Going Home — Como I Can’t be Satisfied, foi um dos seus primeiros sucessos pela Chess, ainda chamada de Aristocrat. Para mim, é uma das músicas que mais mostra que a origem de Muddy está no Mississippi. Os vocais são gritados, às vezes quase desafinados, mas carregados de uma emoção gigante.

I’m Ready — A terceira canção escrita por Willie Dixon para Muddy em 1954. Começa com ar de sexo, com os versos “estou pronto para você, espero que você esteja pronta para mim”, mas logo cai na marginalidade, com pistolas “que disparam balas de sepulturas” e torcendo para “algum idiota começar uma briga”. Um dos versos diz que “estou bebendo TNT e fumando dinamite” e isso parece explicar bem a canção, com o blueseiro se sentindo uma bomba relógio pronta para explodir — em violência, sexo ou ambos.

Mannish Boy — A semelhança com Hoochie Coochie Man (Muddy canta para a banda que responde) não é por acaso. Ela é uma versão de I’m a Man, de Bo Diddley, que por sua vez se inspirou em Hoochie Coochie Man. Sua letra é ainda mais voltada ao amor e sexo, mas ela não precisaria disso para soar ainda mais suja que sua “antecessora”, graças à voz de Muddy, ao riff preguiçoso (e imortal) e aos gritos de fundo que ecoam o tempo inteiro.

Forty Days and Forty Nights — Faz quarenta dias e quarenta noites que o amor de Muddy deixou a cidade. E ele canta sobre isso de uma forma que explica algo fundamental sobre o blues. Não importa se a guitarra é elétrica ou acústica, se existe gaita ou piano… Nada importa se a voz do cantor não transmitir toda a dor que ele sente. E ele faz isso logo de cara, no berro que abre a canção.

Rollin’ and Tumblin — Guardei essa para o final pois sua história é grande. É um clássico do blues do Delta e foi regravada por dezenas de músicos, com um verso (“eu rolei e caí e chorei a noite inteira”) um dos mais poderosos do blues. Muita gente considera a versão de Waters como a definitiva.

Eu também pensava assim até descobrir que, um mês antes dele gravar a versão para a Chess, participou de uma gravação para outra gravadora chamada Parkway, ao lado de seus companheiros Little Walter e Baby Face Leroy Foster, sob o nome de Baby Face Leroy Trio e que permaneceu rara durante muitos anos — ela não existe no Spotify.

Provavelmente eles tocaram apenas para se divertir (e é difícil imaginar que não havia álcool no meio), mas a versão de “Baby Face Leroy Trio” se tornou quase uma força da natureza. É impossível não imaginar os três tocando em algum lugar quente e abafado, mal conseguindo se mover. A música soa quase como algo proibido e sujo, com seus resmungos e gemidos e gritos descoordenados. É extremamente sedutora, e parece ameaçadora na mesma medida. Aqui você ouve as duas partes dessa versão, que é um dos maiores tesouros da história do blues.

Gostou do texto? Então clique no “Recommend” abaixo e faça esse post — e, mais importante, essas músicas — chegarem até outras pessoas. Sim, seu clique é mais importante que você imagina! E não se esqueça de me seguir aqui: todo sábado tem um texto novo com o melhor do blues.

--

--