Sábado de Blues: Os Diferentes Estilos de Blues #1

Rob Gordon
9 min readMay 14, 2016

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Dessa vez, eu peço licença para uma introdução muito maior que o normal. Caso esteja sem paciência, pule direto para os tópicos lá de baixo.

Primeiro, vamos falar sobre playlists. Postei o primeiro texto da Sábado de Blues num sábado por volta das três da tarde. Deviam ser três e quinze quando recebi o primeiro pedido para fazer playlist no Spotify.

A ideia era boa, mas eu não me animei. Já havia brincado no Spotify logo que ele foi lançado e encontrei bastante coisa de blues, mas quando percebi que muitas músicas estavam com nome errado (ou em versões que não eram as originais), meu TOC musical sofreu uma crise e deixei de lado.

Mas os pedidos não pararam. E como a ideia principal dessa coluna é apresentar o blues para pessoas que querem começar a ouvir o gênero e não sabem direito por onde começar, eu precisava levar isso em conta. Afinal, se as pessoas se sentem mais confortáveis ouvindo desse jeito, eu não posso ignorar isso.

Então, a partir de agora, teremos playlists no Sábado de Blues. Nunca teremos uma coluna apenas com isso; elas servirão apenas para complementar os textos — e eu ainda preciso pensar como fazer isso nos posts normais. Mas, sim, teremos playlists por artistas, por época, por tema… As ideias são muitas e espero que gostem do que vem por aí.

E agora vamos ao texto de hoje, que é tão ou mais importante que as playlists. Aliás, não posso deixar de dizer que as playlists possibilitaram esse texto, que eu queria fazer desde o começo da coluna: um passeio pelos diferentes estilos do blues.

Muita gente me fala que não consegue perceber a diferença entre um estilo e outro, e isso é absolutamente normal quando a gente pensa em blues, especialmente as músicas mais antigas. Então, apresentar os principais estilos aqui pode ajudar isso — além, claro de mostrar que o blues antes dos anos 50 não foi apenas Robert Johnson e Bessie Smith.

Agora, o problema é que dividir o blues por gêneros é muito difícil. A primeira divisão é sempre geográfica, pois cada região dos Estados Unidos desenvolveu um som próprio. Mas como os músicos viajavam muito — e sempre roubavam elementos das músicas que encontravam — existem momentos em que tudo é bastante cinzento.

Mas, de forma geral, na primeira metade do século 20, a divisão geográfica funciona razoavelmente bem. Mas, depois, a coisa complica.

Por exemplo: Muddy Waters é um ícone do blues elétrico de Chicago dos anos 50. Mas, ao mesmo tempo, ele é um blueseiro do delta do Mississippi — o fato dele estar em Chicago fazendo um som diferente não muda isso. John Lee Hooker é pior ainda, já que estamos falando de um sujeito que também era um blueseiro do delta que estava fazendo a mesma música de Chicago… Em Detroit. Ou seja, existem dezenas de maneiras de classificar muitos músicos de blues — e todas elas estão certas e todas estão erradas.

Por que eu estou falando tudo isso? Para deixar claro que esse texto que começa abaixo — e os outros que vão segui-lo — não são definitivos. Eu escolho os principais subgêneros do blues e falo um pouco sobre eles, pincelando sobre a música e contextualizando sobre a época e o local. E cada um deles tem uma playlist para exemplificar o som, que padronizei com cinco artistas, selecionando cinco músicas representativas de cada um deles.

Mas, novamente, não é uma definição, é apenas a forma que eu enxergo mais ou menos como todos esses subgêneros se dividem — e, muitas vezes, se completam. Se você encontrar uma definição ou classificação diferente em outro lugar, ela também pode estar certa. Aliás, provavelmente estará. Mas esses posts vão ser uma ferramenta importante na hora de ler os próximos textos (ou reler algum antigo, já que muitos nomes abaixo já foram assunto aqui).

Mas vamos ao que interessa. Nesse primeiro texto, vou falar somente do blues acústico que se fazia na primeira metade do século, antes das guitarras elétricas (e que normalmente leva o nome de pre-war blues). E já respondo aqui algo que sempre me perguntam: não existe o gênero “country blues”. Esse termo é dado para todo o blues que era feito fora das cidades nessa época.

No próximo texto da série, vamos dos anos 50 em diante. Como sempre, espero que gostem — e não se esqueça de deixar nos comentários qual foi o estilo que você mais gostou.

Bessie Smith, a imperatriz.

Classic Female Blues: Crazy Blues

Houve um momento em que o blues foi dominado apenas por mulheres. Vários gêneros de blues nasciam em diversas regiões dos Estados Unidos, e alguns artistas até mesmo conseguiram projeção nacional. Mas demoraria muito para que um homem igualasse o sucesso das cantoras dos anos 20, que percorriam o país, acompanhadas de suas bandas, fazendo apresentações em cidades e no campo. Era a época das grandes damas do blues, como Ma” Rainey, Victoria Spivey e a maior de todas, Bessie Smith.

Algumas das maiores canções do século foram cantadas por elas. Amores perdidos, a solidão urbana, a falta de dinheiro e a boêmia ganharam ares trágicos na voz dessas cantoras. Mas havia também espaço para a loucura. A bebida, as drogas, a violência e o sexo corriam soltos — no caso de muitas delas, não apenas nas músicas (Shave em’ Dry, que Lucille Bogan gravou completamente bêbada e até hoje não pode ser tocada em rádios por causa de sua letra explícita, está na playlist), mas também fora do palco, com um escândalo atrás do outro. Sem elas, o blues não seria a mesma coisa. E nós também não.

Ouça a playlist aqui.

Son House: praticamente uma força da natureza no Mississipi.

Delta Blues: Me and the Devil

Mississippi, primeira metade do século 20. Esse é o lar da figura mítica do blueseiro, o homem que caminha por estradas repletas de lama e com o violão nas costas. Independente do misticismo, esse é o grande pilar do blues. Tudo o que se fez daí em diante bebe do som criado nessa região, em maior ou menor quantidade.

Além disso, talvez seja o blues mais cru que existe e, provavelmente, um dos mais fortes. A voz é gritada — menos por mais estética e mais para o blueseiro ser escutado em espeluncas ou no campo aberto — e seu violão é agressivo (o que não impede uma delicadeza impressionante em suas músicas). Em termos de letras, talvez seja a fase mais rica do blues. Sexo. Miséria. Estrada. Dinheiro (ou, especialmente, a falta dele). Misticismo. Amores perdidos. Canta-se sobre tudo isso, sempre em busca de uma salvação que nunca vem. Sejam vindos ao mundo de Robert Johnson e Son House.

Ouça a playlist aqui.

Mississippi John Hurt e seu violão mágico.

Piedmont Blues: We Sure Got Hard Times

Piedmont Blues é uma enorme contradição. É um dos subgêneros mais conhecidos do blues dessa época, entretanto poucos conhecem seu nome. É um estilo que se desenvolve numa região específica (Georgia, Virginia, Carolina do Norte e Carolina do Sul) e tem uma clara influência do ragtime da época. Suas músicas são normalmente mais animadas e feitas para dançar. Imagine festas em fazendas e campos abertos. Essa era a trilha sonora.

Mas, antes de tudo, é talvez o blues mais elegante já criado. O Piedmont Blues se destaca pela guitarra dedilhada, o que torna mais rico que o som do Mississippi. Mas, apesar de ser uma música que na época era executada também por brancos, todos os temas do blues estão aí: as histórias doloridas do cotidiano, a eterna insatisfação com a vida, a religião. Tudo embalado em um dos violões mais delicados do blues.

Ouça a playlist aqui.

Blind Lemon Jefferson, o homem que praticamente inventou o blues do Texas.

Texas Blues: Bring me my Shotgun

Em termos de variedade, o blues do Texas é, certamente, o mais rico dos Estados Unidos. Afinal, ele é o único que evoluiu do violão acústico (quando explodiu para o resto do país com Blind Lemon Jefferson) para a guitarra elétrica sem perder sua identidade ou mudar de região (como aconteceu com o blues do Mississippi, que depois migrou para Chicago). Porém, sua origem é parecida com a do blues do Delta — mas, ao invés de trabalhar em fazendas de algodão, seus músicos passavam o dia trabalhando em madeireiras e com extração de petróleo.

Musicalmente, é tão rico quanto os outros da época, mas com duas grandes diferenças. A primeira é que suas músicas tem muito mais swing (por causa da influência de ritmos latinos pela proximidade com o México). Além disso, se no blues do Mississippi, o violão funciona basicamente como um acompanhamento da voz do músico, no Texas, o instrumento vai além e se torna uma extensão da voz. É um dos princípios (humildes e pouco citados) de um dos maiores símbolos do rock: os solos de guitarra virtuosos.

Ouça a playlist aqui.

Memphis Jug Band: não há como ser mais popular que isso. Até nos instrumentos.

Memphis Blues: Liquor Store Blues

De todos os gêneros de blues dessa época, esse é o que menos conheço. Mas certamente quem se aventurar por ele terá uma experiência sensacional. Aqui, o blues não é apenas diferente do que se fazia nas outras regiões do país — por ter nascido diretamente do vaudeville, ele é muito mais animado, quase festeiro em alguns casos — mas também muito variado dentro de si mesmo.

Porque, olhem só: estamos em Memphis. Então, a proximidade com o jazz é muito maior que nos outros estilos de blues. Isso fica ainda mais claro com canções que já abrem espaço para o solo de guitarra e com a variedade de instrumentos caseiros em algumas bandas, como garrafões de bebida e tábuas de lavar roupa (fiz questão de colocar a Memphis Jug Band na lista para ilustrar isso). Mas a guitarra ainda está muito presente, especialmente nas mãos de Memphis Minnie, uma das maiores guitarristas que existiu.

Ouça a playlist aqui.

Albert Ammons, um dos muitos magos das teclas.

Five O’ Clock Blues: Boogie-Woogie

Nem todos sabem disso, mas antes da explosão do blues de Chicago nos anos 50 — o grande ícone do blues urbano — já havia blues nas grandes cidades. Ou, pelo menos, algo muito perto disso. Se no campo a guitarra dava as ordens, nas cidades quem mandava era o piano. Assim, surgiu o boogie-woogie — algo que muita gente se surpreende ao descobrir que é um gênero musical que está dentro do blues. É o tipo de música que se você deixar tocando enquanto faz outra coisa, logo começará a dançar sem perceber.

A maior parte das músicas é instrumental: trata-se de um piano aceleradíssimo e com mais notas que você consegue contar — ele é quase um avô do rock ’n’ roll, já que Chuck Berry pegou muitas desses pianos para sua guitarra. Historiadores já encontraram paralelo entre o boogie-woogie e trechos da 32ª sonata de Beethoven. Mas, nos anos 20, as pessoas das grandes cidades estavam ocupadas demais dançando ao som do piano para se importar com isso.

Ouça a playlist aqui.

Big Bill Broonzy: o blues deixa a lama e coloca os pés no asfalto.

When the Sun Goes Down — Urban Blues

Aos poucos, o piano do boogie-woogie perdeu velocidade e se tornou o piano do blues — ou, pelo menos, aquilo que hoje pensamos como o piano do blues. Sensual. Melancólico. Mas ele não estava sozinho, pois agora o violão do campo havia chegado até as grandes cidades. Então, tínhamos pianistas e guitarristas — muitas vezes trabalhando juntos — criando toda a base do blues urbano moderno.

Se o piano era diferente do boogie-woogie, o violão também era diferente do blues rural. Era mais sofisticado, mais trabalhado, mais elegante. Mas as mudanças eram apenas no som. As letras nunca deixaram de ser blues e cantavam os mesmos temas do blues do delta. O ciúme que termina em violência — algumas vezes em morte. O sexo que funciona como alívio do cotidiano e jogo de poder. A bebida que nasce como fuga do problema e se torna vício. De repente, o blues moderno estava nas grandes cidades…

E pouco depois, a guitarra se tornaria elétrica e mudaria tudo mais uma vez.

Ouça a playlist aqui.

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