"Repertório Shakespeare", em cartaz na última edição do Festival de Teatro de Curitiba, compartilha o mesmo elenco e o mesmo cenário em duas montagens de Shakespeare: uma tragédia e uma comédia. | (Foto: Divulgação)

Repertório Shakespeare

Crítica às montagens de Ron Daniel para "Macbeth" e "Medida por Medida", com Thiago Lacerda

Rômulo Zanotto
6 min readNov 10, 2016

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No encontro comigo antes da estreia de Repertório Shakespeare (as montagem de Macbeth e Medida por Medida que compartilham o mesmo elenco e o mesmo projeto cênico), no Festival de Teatro de Curitiba, Thiago Lacerda dizia que nenhuma montagem de Shakespeare é em vão.

“Tudo que contém as histórias que esse cara escreveu é absolutamente pertinente”, falava ele. “Enquanto houver um ser humano pisando no chão do planeta, Shakespeare será moderno.”

Thiago Lacerda e eu, conversando sobre "Repertório Shakespeare", na manhã de sua estreia na última edição do Festival de Teatro de Curitiba | Solar do Rosário | 2016 (Foto:Moyses Vaz)

“Tudo que contém as histórias que esse cara escreveu é absolutamente pertinente. Enquanto houver um ser humano pisando no chão do planeta, Shakespeare será moderno.” (Thiago Lacerda)

Macbeth e Medida por Medida, por exemplo, as duas peças que compõe o repertório, tratam de temas atuais até hoje. A primeira, da usurpação, da ambição, e do poder como corruptor. A segunda, da justiça e das medidas relativas da justiça. Duas coisas que, no Brasil, temos acompanhado nos jornais diariamente.

Substitua o arrivismo e a ambição desenfreadas em nome da coroa pela guerra entre o Executivo e o Judiciário, e teremos um correspondente para o arrivismo e a ambição desenfreadas em Macbeth no Brasil. Substitua crimes medievais de assassinato por crimes republicanos do colarinho branco, e também teremos os correspondentes.

Em relação à Medida por Medida, troque o nome do juiz Ângelo pelo de Sérgio, nosso contemporâneo Moro, e teremos as mesmas questões: da idoneidade, da iniquidade e da moralidade — ou não— de qualquer julgamento humano.

Em relação aos temas e à universalidade e atemporalidade de Shakespeare, não há dúvida: conforme defendido por Thiago, a obra do bardo inglês será para sempre pertinente, ficando atual em qualquer biblioteca ou livraria. Contudo, em relação à cena, precisa fazer jus à linguagem teatral para ser justificada. Antes de qualquer montagem dele, haverá sempre a pergunta: Afinal de contas, por que montar Shakespeare?

Para Thiago, no caso de Repertório Shakespeare, unir numa mesma jornada dois gêneros shakespearianos já é, por si só, de grande valia.

Além disso, ao contrário de outros espetáculos experimentais (como o caso da montagem de Hamlet que também estivera em cartaz no Festival), o objetivo das montagens dirigidas por Ron Daniels — brasileiro radicado em Nova York, que já trabalhou com a Royal Shakespeare Co. em Londres — não é fazer um exercício sobre a obra, mas sim contar a história da forma mais simples, compreensível, objetiva e direta possível.

Macbeth

Originalmente situada na Escócia, Ron Daniels transpôs nominalmente a trama para a Inglaterra em sua adaptação. Mas, através dos figurinos, deslocou a ação também para outros tempos e lugares.

Caracterizados como espécies de soldados do BOPE, os figurinos aproximam claramente a cena de uma identidade carioca. Das milícias, do submundo, do poder paralelo.

Thiago Lacerda e Giulia Gam: Macbeth e Lady Macbeth | “Macbeth” (Dir.: Ron Daniels) | (Foto: Divulgação)

Um dos principais pontos abordados pela dramaturgia, em Macbeth, é a corrupção dos valores individuais pelo poder. Ao situar a trama nestes lugares, de instituições de poder não estabelecidas, a montagem ilustra que o arrivismo e a ambição pelo topo continuam sendo as mesmas — desmedidas, desenfreadas — , em qualquer lugar do mundo ou submundo.

Na cenografia, o que a montagem tem de mais teatral: um painel gigante toma conta de toda extensão do fundo de palco, com dezenas de rostos assistindo a cena. O painel lembra um recorte da obra Os Operários, de Tarsila do Amaral.

Thiago Lacerda, em cena de "Macbeth" | Ao fundo, painel remetendo à obra "Os Operários", de Tarsila do Amaral. Conforme a peça avança, vão se revelando caveiras por baixo dos rostos. | Teatro Positivo | Festival de Teatro de Curitiba | 2016 (Foto: Revista One)

Conforme a peça avança, na medida em que o casal de protagonistas vai se revelando cada vez mais assassino e cada vez mais corrupto, as figuras do painel também vão tendo suas caveiras reveladas, como em um raio-x. O recurso evidencia a máxima de que todos somos iguais e de que o poder corrompe. Quem quer que seja.

Tal qual o arrivismo e a ambição inescrupulosa de Macbeth, assim também se revelariam aqueles rostos do painel, caso tivessem, um dia, a oportunidade de viver o mesmo dilema dele.

Além disso, o painel também serve como símbolo de uma “vigília” popular. Quer seja significando uma população resignada e passiva que assiste a tudo como vítima submissa das tramas pelo poder e pela justiça, quer seja, ao contrário, signo da soberania do testemunho ocular e do julgamento moral de um povo, o painel representa um tribunal paralelo à Justiça, com suas próprias regras de moralidade e voyeurismo.

Assim, a trama de usurpação e a retomada da coroa se destrincham sob o olhar e o julgo de duas plateias: a do teatro e a do painel.

Medida por Medida

Em Medida por Medida, o mesmo painel serve de fundo, e com o mesmo significado. Aqui, ao invés das plateia ser testemunha das manobras ou assassinatos pelo poder, assiste ao julgamento e ao juízo de valores de um homem, Ângelo.

Para dar o tom da farsesco da comédia, alguns trapos e disfarces (sobrancelhas, bigodes postiços, ribanas, etc) são colocados sobre alguns dos rostos do painel.

Thiago Lacerda (ao centro) e elenco, em cena de "Medida por Medida" | Disfarces cobrem alguns rostos no painel, dando o tom farsesco da comédia | Teatro Positivo | Festival de Teatro de Curitiba | 2016 (Foto: Revista One)

Ao contrário da montagem anterior, o local onde se passa a ação não é citado nominalmente. Mas, pela caracterização dos personagens, podemos facilmente supor que também seja algum lugar parecido com o Rio de Janeiro de nossa época.

Aqui, porém, a sobriedade das fardas dá lugar a um figurino primário. Na peça, assim como na farsa do Brasil contemporâneo (apenas para fazer um paralelo entre os dois tempos), parece muito fácil acreditar no hábito chinfrim de cada um: têm toga é juiz, têm batina é padre, têm hábito é freira, têm macacão é preso, têm faixa é presidente, tá no palco é ator. São as crenças ingênuas nos disfarces. Como se o hábito fizesse o monge.

A cena inicial de Medida por Medida — que começa com uma bexiga vermelha, inflável, iluminada no centro do palco — conecta a peça à cena final de Macbethque termina com a cabeça dele decapitada no lugar onde agora está a bexiga. Um balé de atores brinca com ela, enquanto uma chuva de bexigas cai sobre suas cabeças.

A cena evoca a capacidade, da vida e do teatro, de se transformar. De colocar pra escanteio e deixar para lá uma tragédia, para botar no lugar uma comédia. De como o tempo transforma o peso e o horror de uma cabeça cortada, em uma brincadeira com bexigas de vento.

Thiago Lacerda e Luisa Thiré | “Medida por Medida” (Dir.: Ron Daniels) | (Foto: Divulgação)

1+1

Embora a passagem dos séculos tenha transformado Shakespeare em um erudito, ele era popular em seu tempo. Produzia peças à rodo, roubava ideias de seus concorrentes, escrevia trechos enaltecendo a si mesmo e à sua obra.

No Teatro Elisabetano renascentista onde ele escrevia, as encenações de uma peça duravam cerca de seis horas, eram assistidas de pé, ao relento, com telhado descoberto, andando de um lado para o outro, conversando com quem quer que fosse e prestando atenção no palco quando ouvia alguma coisa interessante (tudo mais ou menos da mesma forma como se assiste novela hoje em dia).

Quando escrevi sobre aquela montagem de Hamlet, falei sobre a ausência ou a ineficácia das convenções teatrais para os dias de hoje. O reduto dos dramas psicológicos e das convenções realistas nas artes, atualmente, parece ter ficado restrito o cinema (e o audiovisual de uma forma mais abrangente nos últimos anos).

A partir daí, qualquer tentativa de reproduzir o realismo no teatro soa como farsa. Sempre. Por melhor que seja. O famoso e eterno teatrão, como é conhecido este tipo de espetáculo com cara de século XIX que se faz desde o século XX.

Repertório Shakespeare vale ao menos pelo motivo que, no nosso encontro, Thiago diz valer a pena qualquer adaptação da obra de Shakespeare: montá-lo.

E a presença das peças na programação do Festival, vale por aquilo que Guilherme Weber, um dos curadores da mostra, também falou em outro de meus encontros: “Como é que você preenche a grade de programação dos grandes auditórios do Festival, senão com espetáculos com uma comunicação direta com o público?"

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Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.