A atriz e produtora Regina Vogue | Foto: Xavier Fernandez

Respeitável Público: com vocês, Regina Vogue

A atriz e produtora gaúcha dá nome a um dos mais importantes teatros da cidade, localizado no Shopping Estação, no coração do Rebouças. Referência nacional na produção nacional de teatro para crianças e cidadã honorária de Curitiba, Regina Vogue e sua família são “gente que faz”.

Rômulo Zanotto
Blog do Rômulo Zanotto
9 min readOct 20, 2016

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Regina Vogue nasceu gaúcha. Chegou em Curitiba em 1981, com dois filhos pequenos e muita vida na bagagem. Um dos poucos teatros da cidade era o Guaíra e Curitiba ainda não conhecia o seu nome. Hoje, a história de Regina Vogue passa por Curitiba e a história de Curitiba passa por Regina Vogue. A atriz e produtora me recebe para a entrevista nos bastidores do Teatro que leva seu nome, às vésperas da estreia de sua mais recente produção.

– Que número de produção é essa sua? — começo perguntando, por curiosidade, apenas para enumerar na matéria.

– Ai… Não sei, Rômulo. Não faz pergunta complexa –, brinca Regina. — Mais de cem.

O espetáculo tem direção artística do sempre talentoso Maurício Vogue e produção executiva do sempre competente Adriano Vogue. Ambos, como se pode antever pelo sobrenome, filhos da Rainha. “São meus braços direito e esquerdo”, diz Regina. “Sou ambidestra.”

Quem conhece a trupe de perto, sabe e admira como é que a coisa funciona. Parece a empresa familiar perfeita, no sentido de aliar o melhor de cada um, seus talentos, seus interesses e suas satisfações pessoais, em prol de um bem comum. “A família que Regina construiu é daquelas em que o ofício passa de geração para geração, os filhos seguindo a trajetória da mãe”, lê-se na biografia da atriz, publicada em 2012.

Maurício, o diretor artístico da maioria das produções da mãe, é reconhecido ora pelo lirismo, ora pela ousadia estética de seus espetáculos. É o artista que comanda o picadeiro, o palco, o centro da liça. Adriano, avesso às luzes da ribalta, é o homem dos negócios, dos bastidores, quem arma a lona e viabiliza o espetáculo. E Regina, do alto da experiência que lhe outorgam seus 72 anos de vida e 56 de carreira, é a lenda viva que motiva tudo e dá nome ao circo.

Que não pareça, com isso, que ela apenas esteja lá no alto assistindo e se deleitando com o espetáculo que é capaz de proporcionar ao seu respeitável público. Com frequência, quem a conhece pelas feições, e não apenas pelo nome, a verá por aí carregando sacolas e atenta aos mínimos detalhes dos figurinos de suas produções. Por puro deleite e prazer. Por amor à arte. Regina Vogue precisa estar, ainda hoje e sempre, com a mão na massa. “Eu sou a mesma de 30 anos atrás. Eu vou à luta.”

Regina Vogue | Foto: Xavier Fernandez

A menina que queria ter um passado, hoje tem história para contar

“Sua história é quem você é. Você precisa contá-la bem alto o tempo todo para não esquecer.” Regina parece conhecer e seguir ao máximo esta máxima. Apesar de dizer não gostar de contar histórias — “eu não sou muito de contar histórias, o passado tem que ficar no passado”, é o que responde ao ser perguntada qual episódio de sua vida não vê a hora de contar para sua neta — é inegável a satisfação da atriz ao narrar sua trajetória. Da mesma forma, é inegável o prazer e o deleite de seu interlocutor ao ouvi-la. Regina narrando sua vida é, por si só, um espetáculo. Descreve tudo com memória, vivacidade e bom humor. “Da minha tragédia, eu faço uma comédia”, transforma ela a história.

A conturbada mas heroica trajetória de Regina está devidamente registrada, como merece, em No Centro da Liça. Uma narrativa singela, daquelas recheados de sofrimento, melodrama, reviravoltas, clímax e, finalmente, felizmente, final feliz. Final feliz que só vem pela capacidade de superação e determinação da protagonista. Tudo sem vitimização e com muita poesia.

“Às vezes, lembro de fatos como se fossem de vida passada, de tanto que eu me distanciei daquilo. Como se não fosse eu. Acho engraçada esta sensação. Estou preparando um espetáculo sobre isso. Não acredito em reencarnação, mas acho que é nesta vida que a gente passa por todas”, explica Regina. “É muita história para uma mulher só”, ri.

Levada para morar com a avó aos oito anos de idade em uma das ruas centrais de Porto Alegre, Regina lembra de ouvir as histórias secretas e recheadas de mistério, confidenciadas entre a avó e as vizinhas. Se inteirava dos segredos de moças que “haviam caído em desgraça” e de mulheres que tinham — “ora, veja só!" — um passado. Ficava ali, imaginando se um dia teria um passado também. Sem ter saber muito bem o que significava aquilo, mas querendo ser, como aquelas mulheres, assunto em alguma roda de conversa no futuro também.

Em outras palavras, entendeu depois: ter passado era ter história.

Com o circo, a fuga

Aos 16 anos, Regina, que sempre acalentara o sonho de ser artista, encarnou a fantasia recorrente, quase sinônimo do clichê impossível: fugir com o circo.

Antes de pisar nos palcos convencionais, tal como temos a satisfação e o orgulho de vê-la hoje, Regina foi dançarina, engolidora de fogo, assistente de mágico, ficou na prancha para o atirador de facas e bancou a toureira. Depois, trabalhou no teatro de pavilhão — aqueles que percorrem, itinerantes, cidade por cidade — onde se descobriu e lapidou como atriz. “As pesquisas dos meus personagens, nunca fiz nos livros. Sempre fui às ruas, conversar com eles, no corpo a corpo, como político”, descreve Regina, em meio à gargalhadas.

Ao chegar em Curitiba, na década de 1980, a atriz era conhecida pelos colegas como "a mulher do circo".

– Você achava pejorativo? Tinha vergonha?

– Nada! Eu achava chiquérrimo! Estavam começando a falar de mim, como nas rodas de Porto Alegre, entre minha avó e as vizinhas. Significava que eu estava começando a ter um passado — diverte-se.

Nessa época, Regina conta que gostava de viajar no caminhão, com os “peludos”, como eram chamados os empregados que montavam e desmontavam o circo. Para ela, nunca fez diferença, como nunca faria, o lugar de cada profissional na hierarquia do espetáculo.

Regina Vogue | Foto: Xavier Fernandez

Próxima parada, Curitiba

Pergunto como foi que Curitiba a recebeu, por ser uma cidade culturalmente careta, elitista e preconceituosa, bem avessa ao perfil de sua biografia e de suas andanças.

– No começo, não foi fácil. O curitibano não lhe dá a cara, te olha de lado. Você tem que mostrar que pode, que faz jus, que tem competência. Mesmo a classe artística me recebeu com ressalvas, mas eu fui conquistando aos poucos, a classe e a cidade. Através das pequenas chances que eu recebia, ia criando as oportunidades e, assim, a cidade foi me conhecendo. Na verdade, acho que foi Curitiba que me escolheu.

– E se te chamarem para atuar no Rio ou em São Paulo?

– Ah, não vou! Se me chamarem para morar em Rio e São Paulo, só se for para morar em hotel — gargalha. — Daqui não arredo o pé. Criei raiz.

Regina acredita que só Curitiba poderia ter feito sua vida. Quando viaja e chega novamente à cidade, tem aquela sensação de estar voltando para casa. Ama as pessoas daqui e detesta quando falam mal da capital. “Qualquer cidade tem seus problemas, precisamos é encontrar a solução.”

Quando pergunto sobre políticas culturais, Regina diz que sua política são o teatro e a cultura. “Eu não sou Pôncio Pilatos, não lavo minhas mãos, se precisar ir para o campo de batalha e guerrilhar eu vou, como já fui. Mas não esperem que eu faça estardalhaço ou use nariz de palhaço. Lugar de artista, lugar de palhaço, é no palco. Na rua, eu sou Regina Vogue, escolho formas mais contundentes de me manifestar. Para mim, a cultura está acima de qualquer política.”

Teatro Regina Vogue, a melhor história que Curitiba lhe deu

Em 2004, em mais uma história de conquistas e determinação, no clímax da história que começou a ser contada com a fuga no circo, Regina inaugurou em Curitiba o Teatro que leva seu nome. Final feliz que foi fruto de um reconhecimento artístico do empresário Miguel Krigsner, fundador de O Boticário, pelo trabalho da produtora. Um destes meandros que o destino encontra para se desenredar e que faz com o ponto de chegada pareça em nada ter a ver com o ponto de partida.

No início dos anos 1990, Regina estava em cartaz com o espetáculo Pluft, o Fantasminha, inaugurando sua trajetória solo na carreira como produtora. Desde então, o padrão de qualidade, sofisticação e excelência dos espetáculos da Regina Vogue Produções — especialmente no que concerne à sua linguagem diferenciada e inteligente para crianças — já existia.

Regina, que desde sempre procurou apresentar espetáculos de qualidade, condizentes com a expectativa de seu público, tinha, entre os habitues de sua plateia, a presença ilustre de Krigsner e sua família, que assistiram ao espetáculo oito vezes. “Minhas filhas me carregavam insistentemente, durante semanas, como se não existisse outro espetáculo em cartaz”, conta o empresário no prefácio da biografia da produtora.

Anos depois, nutrindo o sonho de ter um espaço qualquer (nem precisava ser um teatro) para deixar mais tempo suas peças em cartaz, Regina não tirava da cabeça que deveria procurar Miguel. Krigsner acabara de assumir a administração do Shopping Estação e vinha imaginando, para ele, a construção de um teatro. O Teatro Regina Vogue abriu as portas em primeiro de abril de 2004. Parece mentira. Mas não é.

Regina Vogue | Foto: Xavier Fernandez

Essa família é fada

Apesar das conquistas e do sucesso, Regina Vogue conserva a mesma simplicidade e reconhece a importância das pessoas que fizeram e fazem a diferença em sua vida. De Miguel Krigsner ao apoiador que fornece lanche para o elenco de seus espetáculos, jamais perde de vista a trajetória que a levou até ali, àquele teatro em que a entrevisto.

É ensaio geral do espetáculo e a camareira passa o figurino, o sonoplasta testa o som, o iluminador afina a luz, o elenco se aquece, o contrarregra ajeita o palco. Tal qual a menina que viajava ao lado dos peludos e sabe que a contribuição de cada um é essencial para que o espetáculo aconteça, Regina interrompe a entrevista para dizer "muito obrigado" a cada um: artistas, técnicos e criadores, sem distinção.

Para além do carinho e reconhecimento do público em geral, a produtora tem um histórico de agradecimento e admiração entre os colegas da classe artística e política curitibana, por tudo que ela é e representa. Se quando chegou aqui, precisou contar com o carinho e o acolhimento de artistas e produtores locais para chegar ao seu reconhecimento, hoje é ela quem oferece o palco para que novos talentos sejam reconhecidos. Regina tem orgulho dos grandes artistas que passam pela sua companhia e alçam voos maiores. Alexandre Nero, Guta Stresser, Katiuscia Canoro, Fabiula Nascimento, Simone Spoladore e Maureen Miranda, estão entre os muitos que passaram e os muitos que ainda passarão.

Tudo que ela toca, vira ouro. Regina está sempre renovando, revitalizando, remexendo o celeiro de talentos em busca de jovens profissionais. “Gosto do contato com os novos. Assim caminha a humanidade.”

Para finalizar, faço um trocadilho barato com Regina, perguntando depois de tantas peças, qual foi a maior peça que Curitiba lhe pregou. A atriz pensa, pensa, pensa e conclui: “Seria irrelevante. O que você tem que passar, você vai passar.”

Está certa, Regina. Certíssima. Afinal, a vida não vale nada se você não tiver uma boa história para contar.

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Rômulo Zanotto
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Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.