“Boca aberta ao Banquete”/PARTE I

(seguida de “Feixe que alimenta o Poço”)

Rodrigo Qohen
3 min readApr 4, 2020

“Cérbero, o grão réptil, nos divisando

Os dentes mostra, as bocas escancara

De sanha os membros todos convulsionando”

Dante Alighieri (A Divina Comédia, Inferno, Canto VI)

William Blake — “Cerberus” (1824–7)

O cão de três cabeças guarda o círculo do submundo que alarga-se na cintura dos gulosos. Acima, humanos abastados ‘em isolamento compulsório abrem a geladeira com a mão no ventre e veem o espelho convexo no cós que ruge. O Lago de Lama, domínio de Cérbero, é frio como o eletrodoméstico destapado, onde “eternas chuvas, gélidas caíam”, conforme Dante experienciou na descida. Lá fede como se o esgoto da exorbitância comida voltasse com o entupimento de tanto papel higiênico estocado na vida privada. A besta de “sanguíneos olhos” e apetite infinito “rasga, esfola, atassalha a triste gente” condenada pela barriga.

Platão colocou O Banquete como um espaço propício para além de embebedar-se e fartar o apetite físico; fez da mesa um lugar de relacionamento entre companhias amistosas. No diálogo homônimo, o grupo em torno do simpósio pleiteia a essência do Amor, em diversas facetas, até questionarem a própria divindade de Eros. Depois de sermos cortados ao meio por Zeus, que repartiu nossa forma ancestral como punição pela insurgência contra o monte Olimpo. A vida da humanidade passou a orientar-se pela busca do par como única maneira de alcançar a felicidade plena. Cabe ao Amor, como atividade divina, conceder a força motriz para essa jornada infinita.

Rimbaud escreveu “eu é um outro”; dormimos na profundeza e acordamos no palco onde somos possuídos por aquele estranho de nós mesmos. Sócrates desafia a lógica platônica ao não tratar Amor/Eros como um ser puro, mas de natureza composta, a força dinâmica mediatriz dos opostos, entre celestes e terrenos. Concebido no jardim enquanto panteões celebravam em banquete afrodisíaco o nascimento de Vênus, o Amor germinou como um gênio, filho de Poros e Pênia,. Esta que representa a penúria, aquele os meios para conquistar fortuna. O Amor está entre, tem caráter ambíguo. É como o pai, cheio de recursos, mas busca preencher o que herdou da mãe, esse apetite infinito. Carência e Astúcia. Eros coloca nos humanos ‘ousado desejo de eternidade. Seja pelo tesão carnal, riqueza material, vigor atlético, ou conhecimento, são desejos eróticos. Nos perpetuamos quando alcançamos tais virtudes.

No futuro, a ciência promete a quase imortalidade. Basta preserva-se, que o homem médio — e arriba — perde o temor do fantasma apagando. Tudo gira em torno da necessidade de exorcizar esse medo. Enquanto atiçado, distrai-se no vendaval de entorpecentes e fica vulnerável nos períodos de exaustão. Esparrama-se o tédio, uma brecha para impulsos ao consumo irresponsável; então o tempo — já há muito comercializado — é negócio preenchido pelo gasto. Na sucessão ansiosa dos estímulos, come-se para fugir de si.

Marco Ferreri concebeu o banquete no cinema n’A Comilança (Le Grande Bouffe, 1973), quando reuniu quatro homens da alta burguesia para um retiro de suicídio coletivo. Na casa de veraneio, eles transformam seus últimos dias em orgia gastronômica, onde experimentam os picos mais altos do prazer carnal. Misturam sexo com banquetes, a comida entra pelos orifícios, as mordidas distribuem-se entre as coxas de perdizes e as bundas de prostitutas, um ensaio de fotos eróticas acompanha o porco assado, garfadas de purê rodam as bocas como cachimbos. O corpo perde os limites e a carne aumenta a forma dos recipientes. São todos macios, mais gordos numa panelada de haute cuisine. Acrescenta às ideias de Georges Bataille e Marquês de Sade, do prazer indissociável da morte e da dor. Os homens agonizam: machuca o maxilar do juiz que afia a língua para alfinetar os amigos; as flatulências do músico impedem-no de terminar uma partitura; o lascivo brocha; e o cozinheiro morre com a própria comida na boca. Ao som de latidos, os homens afogam na própria merda e a gordura que ingeriram em excesso é incapaz de protegê-los do frio. No entanto, morrem explícitos no mais elevado prazer de verem até os limites do espírito.

(continua…)

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