“Feixe que alimenta o Poço”/PARTE II

(sequência de “Boca aberta ao Banquete”)

Rodrigo Qohen
4 min readApr 6, 2020
Salvador Dalí, “Il cane Cerbero”, 1960

Um filme transmite-se pelo imaginário da geração quarentenada pelo vírus-2020. Muitos que assistem e sentem carência pelo turbilhão de referências disparadas na tela; a boca abre interrogações. Qual a mensagem disso que termina como começa? Ambicioso desde o início ao último minuto; desde os diálogos didáticos até a criança final via direta ao espectador. Por ser terror, estimula o pânico; como é tragédia descende à escuridão.

N’O Poço (El Hoyo), a trama isola os personagens verticalmente, como produtos na prateleira, em uma prisão com dois mecanismos: a hierarquia e a fonte de comida. Divididos em duplas, uma cela por andar, os indivíduos partilham do mesmo banquete que descende diariamente. Se posicionado em nível alto há abundância, enquanto aos desafortunados sobram restos comidos ou nada. O protagonista reúne características de profetas bíblicos em jornada messiânica; é parte Don Quixote, carrega o livro homônimo no sovaco e tem sopros em devaneios conforme devora as páginas; também incorpora aspectos do poeta Dante no Inferno, enquanto observa distante os pecados dos outros. Os pedaços literários atraíram desde filósofos de plantão a evangélicos millenials à luz de suas impressões in virtua, ampliando ‘abrangência do filme para além do público padrão. Mesmo que inspirado em heróis de prestígio, os personagens são banais, trazem apenas características de superfície e carecem de desejos. Eles julgam o sistema e os anônimos, sem despirem-se. Com a profundidade de hashtag. Não há pulsão erótica. O telespectador desnutrido não se vê ali e mal vê o outro. Restam as dúvidas no vácuo.

A arquitetura do poço é quadrada — a forma segue a função –, com um furo no meio. Abre brecha para interação entre os andares, mas o diálogo é anulado pela hierarquização dos níveis. Estão semi-isolados. No filme, como na vida que emula, só se conversa o que traz utilidade prática, sem interesse para subjetividades. O precipício estimula a imersão, os mais propensos suicidas são os que estão acima, com o instinto de sobrevivência entorpecido e tempo livre para contemplar o fim dos próximos dias. O espectador, sem um centro de empatia, ganha lugar na beirada vertiginosa. Pula ou fica? Para onde cair, é conforme pendem as questões que já tinha guardadas, ou aquelas que a sociedade cibernética não deixa esquecer. O banquete é esvaziado de sua função simbólica. Não é pretexto para reunir ou celebrar a fortuna do momento, mas uma sugestão de algo que começa perfeito e é destruído pelos humanos. Foi de luz à luminária sem lâmpada para um calabouço escuro. A sociedade fictícia é uma versão simplificada da nossa, mas sem muita alegoria — nem sustento retórico. Os desequilíbrios sociais de nosso presente são escancarados nos níveis mais baixos, onde os indivíduos canibalizam-se, enquanto as alturas compensam o gore com devaneios egoístas.

Há a emulação do Dilema dos Prisioneiros, jogo de teoria matemática cuja a estratégia dominante é trair. Só os de cima tem o poder para interferir na realidade debaixo. Poderiam aumentar a vida útil de todos se aplicassem a distribuição de recursos, mas assim perderiam a chance de empanturrarem o corpo com excedentes, já que no ciclo seguinte sabem que serão realocados para outro nível. Quem acaba de sair das profundezas, não quer abdicar da oportunidade presenteada de comer bem. O único equilíbrio possível é ineficiente, as opções expostas são extremas: sofrimento para uns, abundância a outrem. Como a mútua cooperação não soa pertinente para quem desfruta do topo ilusório, alguém indiferente ao interesse das partes é colocado para mediar as decisões e propor uma solução (a troca de celas) que não anule explicitamente um, e prejudique um pouco de ambos para sobrar algum lucro que pague o mediador inútil e desumano. Com um ministro da economia assim, ninguém ganha.

A humanidade urbana está amarrada ao serviço de plataformas flutuantes, cujas nuvens mediam as relações sociais. Esse sistema é incapazes de entender a amplitude da natureza humana, então simplifica a complexidade para converter em leitura. Se a banda larga cai, perderemos as virtudes? O vírus, diferente do filme, não está interessado em nos passar nenhuma mensagem. Ele é vivo e seu objetivo é o contágio mais vasto e genérico possível. Estamos presos ao corpo. Nossa plenitude sobre a natureza só será impossível. As práticas de supressão dos elementos orgânicos estão ricocheteando em alerta.

O banquete não é um abuso financeiro, mas um exagero simbólico, erótico. É a repartição amorosa dum corpo coletivo; é romper com os limites da carne num experimento filosófico. Enquanto a realidade está em pausa compulsória, os banquetes vão perdendo os sabores se não há com quem dividir. Racionamos a dispensa para nós mesmos, enquanto risca-se cada dia no calendário. Ao invés, alguns propõem a mortificação do corpo na aplicação do jejum. Querem corromper o amor, deixar-nos sem sistema imunológico, submissos ao contágio do fundamentalismo prescrito. As companhias cotidianas intensificaram nas primeiras semanas, como as brigas internas de leucócitos contra invasores do espaço íntimo. Apertam até a falta de ar; anulam os sentidos; some o paladar dos repetecos; o cheiro das fezes já não torce o nariz. A resposta possível é desobstruir a visão embaçada pela hipernormalização da realidade. Pessoas que nunca fritaram um bife estão experienciando o fogão pela primeira vez. Descobriram que não é tão difícil cortar uma cebola sem encharcar-se de lágrimas; que é possível escutar o fantasma das ruas cheias consolando a faca sem fio. Deu curto circuito, mas o raio que perfurará tormenta não será a descarga que colapsa as interações humanas. Será o maravilhoso Sol escondido atrás das nuvens abrindo o feixe, enquanto a força para sentir o calor virá do Amor.

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