Navaratri, as 9 noites de Durga — Parte 2: OMergulho

Satya Devi
6 min readOct 4, 2019

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Templo milenar de Bali, hoje submerso.

Limpamos nossos sentidos no texto anterior.

Despimos nosso olhar, nossos ouvidos, nossas peles, re-treinamos nosso olfato e nosso paladar a outros gostos e desgostos. E assim afiados, estala a Intuição, como uma espada que canta no ar quando movimentada, nosso sexto sentido.

E assim, sem as vestes culturais limitadas ao tempo e ao espaço, mergulhamos nesse mistério de nove noites.

Espero que sua consciência esteja alterável e vigorosa nesse mergulho. Porque eu não conheço outra linguagem para esses saberes. Este não é um texto comum.

Soa o mantra.

A Superfície

Contam os contos, em vozes masculinas, de uma Deusa que foi criada por Vishnu, Brahma e Shiva para salvar o mundo de Mahishasura, um rei de cabeça de búfalo, que era muito devoto de Brahma. Quando, depois de longos Sadhanas, Brahma, o Criador, lhe concedeu a realização de qualquer pedido, Mahisha pediu que se tornasse imortal, “de forma que nenhum homem ou animal” pudesse derrotá-lo. Brahma concedeu-lhe este Poder, e então, lhe disse “uma mulher será uma ruína”. Mas Mahisha não acreditou, e cego pelo Poder, partiu para conquistar o reino dos Devas com seu exército. Dessa necessidade teria nascido Durga, a partir do terceiro olho dos 3 Devas. Que depois de 15 anos, derrotou Mahishasura com um tridente. O conto data da época ao redor do século VI, e seu hino, o Mahishasura Mardhini, é atribuído a um autor que morreu em 1951, o que em termos da história da Índia e suas tradições, é extremamente recente.

Existem 3 dias consagrados a Durga, 3 a Lakshmi e 3 a Saraswati, e um último dia, o décimo, tido como a Noite da Vitória, Noite da Glória, em que Durga finalmente teria de fato derrotado Mahishasura, totalizando 10 dias de prática, que ressoariam por 10 semanas seguintes.

Mergulhando um pouco mais fundo, lembramos que nas tradições Shaktas, Durga é honrada como uma das faces de Maha Devi (A Devi Suprema, que se manifesta em diversas faces), não fazendo sentido que ela tenha sido criada, e não Criadora.

Sabemos também que no extremo Sul da Índia, onde as práticas tântricas ancestrais foram muito fortes, nessa data, celebra-se não “as nova noites”, mas sim a época “Das Dez” — numa alusão bastante explícita às 10 Maha Vidyas, que eram de tradições e simbologias de Devis insubmissas, ancestrais e vistas com grande tabu hoje em dia.

Indo um pouco mais fundo…

Lembramos também, que nos contos das Maha Vidyas, a história de Mahishasura e Durga Devi foi criada a partir da batalha entre Tripura Sundari e Bhanda. E as tradições das Maha Vidyas são bem mais antigas do que o século V ou VI. Nesse conto, Bhanda, que teria ganhado o Poder de produzir Seres a partir de seu próprio corpo, produz Mahishasura. E Tripura Sundari, a partir da poeira sob suas unhas, teria gerado Durga Devi, e toda a batalha teria acontecido então. Em seguida, Tripura Sundari teria conseguido vencer Bandha, exausto da batalha.

“Algo”, várias pistas, na verdade, apontam para uma associação mais ancestral entre Navaratri e as 10 Maha Vidyas.

De uma forma ou de outra, em termos de Mergulho, sabemos que todas as formas, formatos e manifestações das Devis ou das Vidyas são apenas diferentes máscaras de uma mesma Força invisível. Essa talvez seja a principal mensagem em se ter 10 Maha Vidyas, e não uma única. O que nos interessa é fugir das armadilhas, iscas e redes que nos prendem na superfície, e nos impedem de encontrar as jóias e belezas do fundo do Oceano, porque é ali que ‘eles’ nos querem, para que as jóias e belezas pertençam apenas a eles.

Acostume-se aos poucos com a pressão, com a pouca luz. É entre cada respiração que mora um pouquinho mais de vida, um pouquinho mais de morte. É com outra parte do cérebro que as Deusas conversam. Você sabe acessá-la. Recorde-se…

A Voz esquecida no fundo do Mar

Lá onde a pressão já é suficiente pra se esquecer do formato do próprio corpo

Lá onde o escuro é suficiente pra cintilar pequenas estrelinhas coloridas, e os vultos de seres de outro mundo passam livres por um ecossistema misterioso…

Lá, em silêncio respeitoso abrimos nossos olhos. E entoamos

“Om Dhum Durgaye Namaha”

E algo já não é mais o mesmo. Pára o Som. Pára a Luz.

Uma voz feminina de trovão, antiga e passional ecoa no silêncio (recomendo que leia em voz alta):

Eu sigo com os Rudras, com os Vasus, com os Adityas e com Vishvadevas; Eu sustento tanto Mitra quanto Varuna, Agni e Indra, e os dois Asvinis.

Eu sustento os destruidores de inimigos, Tvasrt, Pushan e Bhaga; Eu restauro a saúdo sobre quem presta rituais de oferenda. Que derrama libações e merece proteção cuidadosa.

Eu sou a Rainha Suprema de toda a Existência, a coletora de tesouros, conhecedora do Ser Supremo, a principal a ser adorada; como tal, fui divinamente colocada em muitos lugares, residindo em múltiplas condições, entrando em inúmeras formas.

Quem que se alimenta, se alimenta através de mim. Quem vê, quem respira, quem ouve o que é dito, o faz através de mim; Aqueles que são ignorantes de mim, perecem. Ouçam quem for capaz de ouvir, Eu direi aquilo que é merecedor de crença

Eu Mesma, em Verdade, declaro isso, que é aprovado tanto por Deuses quanto por humanos; quem quer que Eu escolha, eu tornarei essa pessoa extremamente poderosa, um sábio, tornarei essa pessoa Brahma ou altamente ingeligente.

Eu curvo o arco para Rudra, para que assassine os inimigos que odeiam Brahma que causam tormentos. Eu levarei guerra a quem se opuser a meus devotos. Eu permeio o céu e a terra.

Eu trago afrente as abóbodas celestes paternal sobre a coroa desse Ser Supremo; meu gênesis vem das águas cósmicas que a tudo permeiam. Portanto, eu permeio a todos os seres e alcanço este céu com meu corpo

Eu mesma em Verdade respiro adiante como o vento, exalando forma a todos os mundos criados; além dos céus, além do mundo, Eu existo eternamente além de espaço e tempo, vastíssima em minha grandiosidade.

(Devi Suktam, verso 10, Rig Veda)

Respire esse texto. Leia em voz alta se possível, se não agora, mais tarde, em meditação. Quantas vezes forem necessárias. Recomendo que grave sua própria voz recitando os versos e a escute em seguida.

Estes foram os versos pronunciados pela própria Durga Devi mais antigos e poderosos que consegui encontrar e compartilhar com vocês. A tradução do inglês por português foi por minha conta. As fontes e referências, eu deixarei abaixo.

Ela Mesma disse tudo que precisava ser dito e eu nada mais tenho acrescentar.

Quando voltar do fundo do mar, ou do fundo escuro do céu, abra seus olhos como uma plena e perfeita manifestação de Devi. Respire o ar como quem destrói e emana Universos inteiros. Ela vive dentro de você. Você vive dentro Dela. Pise sobre a terra como quem reconhece a maior preciosidade de todas pra além das aparências imediatas. Que seu peito possa transbordar de Amor e Fúria, jogando pra fora tudo que não presta como num tsunami, quantas vezes forem necessárias.

Rainha que me lê, que seu Sadhana seja forte e vigoroso, que as armadilhas da superfície passam longe de ti e dos que lhe são queridos. Que a Voz do fundo do Oceano, esteja sempre entoando essas palavras poderosas, no fundo da sua mente. Que sua própria voz gravada nesses versos seja seu mantra pelo menos uma vez.

Eu te reverencio, Devi. _/\_

Referências

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Satya Devi

Escrevo sobre Deusas porque nós mulheres precisamos re-assumir o poder de escrever nossos próprios Mitos, e, consequentemente, reescrever nossas Histórias.