Por que a tag#PraCegoVer é ruim e deveria ser abandonada (na minha opinião)

Sidney Andrade
7 min readJan 7, 2020

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(Esse texto é a compilação dos tweets desta thread aqui)

Em primeiro lugar, vamos exercitar nossa identificação com o problema. Não parece, mas vai fazer sentido depois.

Pergunto:

Você, pessoa negra, deixaria que pessoas brancas determinassem os termos do seu discurso antirracista?

Você, mulher, deixaria que homens determinassem os termos do seu discurso antimachismo?

Você, pessoa Trans, deixaria que pessoas cis-gênero determinassem os termos do seu discurso antitransfobia?

Você, pessoa gorda, deixaria que pessoas magras determinassem os termos do seu discurso antigordofobia?

Se você é o homem cis-gênero heterossexual branco padrão e não capta os exemplos acima, suponha, então, que eu, que sou seu chefe, ) vou decidir, de hoje em diante, não te chamar pelo seu nome. Não vou te chamar pelo seu nome porque eu não gosto dele, e vou te chamar por outro nome, que você não gosta. Mas você tem que aceitar pois, de outra forma, eu não te chamo e você perde o emprego.

Ninguém iria sentir prazer, ou mesmo minimamente confortável, nas situações acima, iria?

Então, porque você, que não é cego, acha que eu, que sou cego, deveria gostar e aceitar que pessoas sem deficiência visual determinassem os termos da minha luta anticapacitismo?

A origem da tag #PraCegoVer é bem intencionada. Mas, como Shakespeare já nos ensinou: é de boas intenções que se pavimenta a estrada pro inferno. Porque ela nasce da boa intenção mal executada daqueles que só se prestam a ajudar se forem nos seus termos, não nos nossos.

#PraCegoVer é uma tag/projeto de acessibilidade nas redes sociais de autoria de alguém que enxerga e que, por trabalhar com pessoas cegas, pressupõe que pode determinar o que as pessoas cegas querem; ou mesmo falar por elas. Não é má intenção, é má execução.

Pessoas sem deficiência falando e agindo em nome das pessoas com deficiência é o suprassumo da história do movimento pró direitos das PCD no mundo inteiro. Até hoje, pessoas com deficiência são tratadas como incapazes de cuidar de si mesmas e, portanto, são encaradas como precisadas de serem ser tuteladas.

Não cito nomes nem fontes, pois sei que já serei antagonizado o bastante aqui, mesmo tentando ser neutro. Não quero atacar a autoria da tag, não quero insinuar que ela não foi importante. Eu quero dizer que a execução e a escolha das palavras é infeliz e condescendente.

Condescendente, em primeiro lugar, porque foi pensada por alguém que enxerga, alguém que não experimenta a vivência de ser cego. Por alguém que, por enxergar, ainda acha que “ver” precisa ser o centro da experiência humana na terra. Enxergantes são assim. Alguns cegos também…

Depois, #PraCegoVer é ruim, enquanto sinalizador de descrições para cegos pois, pasmem, a gente NÃO QUER VER, a gente quer saber o que há nas imagens.

“Mas, Sidney, e a metáfora, a polissemia do verbo Ver?

Para os efeitos dessa discussão e do capacitismo impregnado na tag, eu só tenho a dizer: Eu me importo muito pouco com a polissemia do verbo.

Achar que uma tag para descrever imagens para cegos precisa ter o verbo “ver” indica uma coisa: você ainda está partindo do pressuposto de que a visão é a experiência hegemônica, e que toda aquisição de conhecimento deve passar, mesmo simbolicamente, pela visão.

Apesar de sua boa vontade, usar #PraCegoVer é reforçar um capacitismo que diz: “essas pessoas não enxergam, o certo é enxergar. A gente vai fazer elas enxergarem, nem que seja no nível do simbólico, do semiótico, do polissêmico.

Ou seja, é você reforçando, pelo discurso: “Nem que seja pela metáfora, a gente cura eles.”

Deixa eu contar uma novidade pra vocês que não são cegos: não enxergar é tão legítimo quanto enxergar. Ter uma vida plena sem a visão é tão possível quanto viver plenamente enxergando. Eu não preciso enxergar pra ser feliz.

Achar preciso atribuir visão a toda experiência de quem não enxerga é mau hábito de enxergantes que não admitem a possibilidade de uma vida plena, completa e feliz sendo cego.

Você que vê, mas não consegue se imaginar feliz sendo cego, é por sua causa que #PraCegoVer existe. Portanto, não atribua a mim, que sou cego a sua frustração de enxergante.

A tag #PraCegoVer, no fim das contas, nasce dessa mentalidade capacitista de querer curar as pessoas com deficiência, mesmo que seja só pela linguagem.

Existem mil e uma formas de sinalizar descrições de imagens para cegos nas redes sociais. Existe, inclusive, e pasmem vocês, A POSSIBILIDADE DE NÃO USAR TAG NENHUMA! Porque o que a galera cega quer é a descrição, não a tag.

Mas de todas as maneiras possíveis de sinalizar descrições de imagens, a que se popularizou foi aquela na qual o capacitismo está impregnado. E isso não me surpreende em nada.

“Mas, Sidney, e agora, o que eu faço? Eu quero ser inclusivo, eu quero ser acessível, sem ser capacitista!”

O Facebook tem uma maneira de incluir descrições dentro das imagens:

https://pt-br.facebook.com/help/214124458607871

O Twitter tem uma ferramenta de incluir descrições dentro das imagens:

https://help.twitter.com/pt/using-twitter/picture-descriptions

O Instagram tem uma ferramenta de incluir descrições dentro das imagens:

https://postgrain.com/blog/texto-alternativo-instagram/

E nenhuma dessas ferramentas EXIGE a inclusão de tag nenhuma.

Mas sabe por que a galera ainda insiste na #PraCegoVer? Porque ela apela para o emocional capacitista das pessoas.

E a gente sabe que o emocional capacitista das pessoas, aquele que é ativado quando você vê vídeos de PCD se ferrando pra superar a falta de acessibilidade, só pra você se sentir bem consigo mesmo, essa comoção, meus caros, gera ENGAJAMENTO.

E engajamento é tudo numa rede social. Por isso que você não vê ninguém se gabar de pôr as descrições das imagens nos textos embutidos delas. Porque ninguém vai saber que sua marca ou perfil é descolado e empenhado com a inclusão dos “pobres ceguinhos” que acessam seu perfil.

Ao mesmo tempo, é por isso que um monte de marca se gaba de estampar nas postagens a #PraCegoVer, porque isso dá status social pra o perfil. Ainda que às custas de reforçar um capacitismo disfarçado de boa intenção.

Eu não uso #PraCegoVer, eu desencorajo a tag, e se qualquer pessoa me perguntar, eu vou pedir pra não usar.

Escolha qualquer outra coisa, escolha tag nenhuma, descreva a imagem e basta. Mas não queira me convencer que a condescendência dessa tag me inclui. Porque ela só faz me estigmatizar ainda mais.

Dito isso, tenho links,textos de uma pessoa cega falando como gostaria que as coisas acontecessem. Se isso for importante pra você que chegou até aqui, faça o favor de ler, compartilhar e aplicar na sua vivência diária.

CAPACITISMO: O QUE É, ONDE VIVE, COMO SE REPRODUZ?

https://medium.com/@sidneyandrade23/capacitismo-o-que-%C3%A9-onde-vive-como-se-reproduz-5f68c5fdf73e?source=---------7------------------

Nos dois textos abaixo, dou instruções e referências iniciais a quem quer descrever, mas não sabe por onde começar; e ofereço alternativas a essa tag:

Como tornar suas Timelines mais acessíveis para pessoas cegas

https://medium.com/@sidneyandrade23/como-tornar-suas-timelines-mais-acess%C3%ADveis-para-pessoas-cegas-5542c188b91f?source=---------8------------------

Como tornar suas timelines mais acessíveis para pessoas cegas (2)

https://medium.com/@sidneyandrade23/como-tornar-suas-timelines-mais-acess%C3%ADveis-para-pessoas-cegas-2-3ff4322c2c66?source=---------5------------------

Tenha sempre uma frase em mente, que nasceu do movimento das pessoas com deficiência mundial: NADA SOBRE NÓS SEM NÓS. Não fale por nós, nos ouça falar.

Observação 1:

Esse texto não visa desestimular a descrição de imagens para pessoas cegas nas redes sociais. Se você entendeu assim, leia novamente. Esse texto visa tão somente desestimular o uso da tag #pracegover pra sinalizar essas descrições.

Observação 2:

Sentiu vontade de me fazer alguma pergunta? Clica nos links dos textos que colei acima, provavelmente eu já respondi ela em algum deles. Se, mesmo assim, você quer me perguntar algo, só chegar lá no @deridevio que a gente bate um papo legal.

Observação 3:

Sim, eu sei, a tag nasceu numa época em que os recursos de inserir descrições embutidas nas imagens não existia. Sobre isso, duas coisas: 1. Mesmo assim, de todas as escolhas pra sinalizar a acessibilidade, foi escolhida a alternativa capacitista; 2. Se foi assim no passado, agora que percebe-se o problema, não precisamos continuar repetindo no futuro, não é mesmo? É pra frente que se anda. Abandonar coisas também faz parte do processo de melhoramento do discurso.

Observação 4:

Perceba que, em nenhum momento, eu problematizei o termo “cego” da tag, porque “cego” não é xingamento, não é palavrão, “cego” não é uma palavra feia que você deve evitar, quando você está se referindo a pessoas que não enxergam. O capacitismo da tag está no uso do verbo “ver, vou frisar novamente, pois sei que a tag já evoluiu de #pracegover para #paratodosverem, sob a necessidade de incluir mais pessoas beneficiadas pelas descrição de imagens, mas que não são necessariamente cegas (como pessoas com baixa visão ou mesmo pessoas disléxicas). Mesmo assim, persiste o problema: “Ver” continua sendo perpetuado como a experiência máxima e legítima humana. Não deve ser assim, pois, como eu já disse, não ver é tão legítimo quanto ver. A tag pra descrever imagens não precisa nem deve girar em torno de “dar o dom da visão”, ainda que metaforicamente, para pessoas que usufruem das descrições. Eu estou muito bem, cego, obrigado, não preciso da visão pra viver. E mais grave ainda: não preciso de um discurso que fique querendo me convencer, a cada descrição, que não ver é errado, que eu deveria querer ver.

Observação 5:

Eu sou 01 pessoa cega, eu não represento a totalidade das pessoas cegas do mundo. Ou seja, obviamente, você vai encontrar pessoas cegas que não se sentem ofendidas com a tag. Sobre isso, só posso dizer que “ofender-se” é um processo individual. Não me sentir ofendido com algo problemático não anula o problema, porque o problema está para além da ofensa, uma vez que o problema é sistemático, ao contrário da ofensa, que é individual. Quero dizer, portanto, que esse texto imenso não é pra dizer que eu me sinto ofendido com a tag. Quero dizer, sim, que na tag está impresso um problema sistemático de capacitismo que precisa ser repensado. Dito isso, não use seu amigo cego que diz que não acha ofensivos os aspectos que apontei, você estará apenas fazendo seu amigo de token para deslegitimar um debate que é maior do que reações individuais, e que precisa ser feito, ou o discurso anticapacitista não evolui. Leia mais sobre o tema, leia outras perspectivas sobre o tema, mas não diga que o exposto aqui é balela só porque você não gostou do que eu disse. Se informe mais.

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