O sonho americano é mantido à custa do negro americano, por James Baldwin — parte 1
Traduzido por Soma Livros e revisado por Rodolpho Camargo
Boa noite.
Não pela primeira vez, encontro-me na posição de uma espécie de Jeremias¹.
Não discordo de Burford, por exemplo, de que a desigualdade sofrida pela população negra dos Estados Unidos seja um obstáculo ao sonho americano. Porque de fato é.
Mas venho divergir de algumas outras coisas que ele diz. Outro elemento mais profundo de um certo constrangimento que sinto diz respeito ao ponto de vista das pessoas, à forma como elas enxergam a realidade e qual é seu sistema de realidade.
Parece que há duas proposições perante a Câmara: “o sonho americano é mantido à custa do negro americano?” ou se “O sonho americano é mantido à custa do negro americano!”.
Essa questão traz consigo uma carga asquerosa. Dessa forma, a resposta, ou a reação, de alguém a essa pergunta depende do efeito e de onde ela se encontra no mundo, como ela enxerga a realidade e qual o sistema de realidade que ela tem.
Ou seja, depende de premissas que mantemos tão profundamente, que dificilmente estamos cientes delas.
Pensem em um arrendador de terras branco da África do Sul ou do Mississippi, um policial do Mississippi ou um francês expulso da Argélia: no fundo, todos têm um sistema de realidade que, no caso do exílio francês da Argélia, por exemplo, os obriga discordar das razões que os franceses tiveram para governar a Argélia.
O policial do Mississippi ou do Alabama realmente acredita que, ao enfrentar uma criança ou um adulto negro, essa pessoa só pode estar louca a ponto de atacar o sistema ao qual deve toda a sua identidade.
Obviamente, para uma pessoa como esse policial, a proposição que estamos tentando discutir aqui hoje não existe.
Por outro lado, falo aqui como uma das pessoas que mais foram atacadas pelo que agora devemos chamar de sistema de realidade ocidental ou europeu.
Os brancos do mundo todo, aos quais nos referimos como supremacia branca (odeio dizer isso aqui), vêm da Europa. Foi assim que essa supremacia chegou aos Estados Unidos.
Abaixo deles, qualquer que seja a reação de alguém a essa proposição, deve estar a questão de saber se as civilizações podem, como tais, ser ou não consideradas iguais ou se a civilização de uma pessoa tem o direito de ultrapassar e subjugar (e, de fato, destruir) outra.
Mas o que ocorre quando isso acontece? Deixando de lado todos os fatos físicos que podem ser citados. Deixando de lado estupro ou assassinato. Deixando de lado a quantidade sangrento de opressão com o qual já estamos familiarizados de certa forma. A coisa mais séria e mais privada que isso faz aos subjugados é destruir seu senso de realidade.
Destrói, por exemplo, a autoridade que o pai de uma pessoa tem sobre ela. O pai não pode mais dizer nada a essa pessoa, porque o passado desapareceu e esse pai não tem poder no mundo. Isso significa que, desde o momento em que uma pessoa negra nasce nos Estados Unidos, naquela república cintilante, tudo o que ela vê, todo rosto, é branco.
E como ela ainda não viu um espelho, supõe que também seja. É um choque enorme descobrir por volta dos 5, 6 ou 7 anos de idade que a bandeira à qual você jurou lealdade, juntamente com todo mundo, não jurou lealdade a você. É um choque enorme descobrir que, quando você torcia para que Gary Cooper² matasse os indígenas, os indígenas eram você.
É um choque enorme descobrir que o país em que você nasceu e ao qual você deve sua vida e sua identidade não tem, em todo seu sistema de realidade, lugar para você.
A insatisfação, a desmoralização e a lacuna entre uma pessoa e outra apenas com base na cor de sua pele começam aí e aceleram, por toda a vida, até o presente, quando ela percebe que está com trinta anos e tem dificuldade de confiar em seus compatriotas.
Com trinta anos, você já passou por uma espécie de moinho. E o efeito mais sério desse moinho, novamente, não são o enorme número de desastres, os policiais, os taxistas, os garçons, os donos do apartamento que você aluga, os bancos, as seguradoras, os milhões de detalhes, vinte e quatro horas por dia, que deixam claro que você é um ser humano sem valor.
Não é isso. É que com trinta anos você começa a ver isso acontecer com sua filha, com seu filho, com sua sobrinha ou com seu sobrinho.
Notas
¹Jeremias foi um profeta bíblico que, entre tantos feitos, confrontou reis e denunciou a injustiça social do seu povo.
²Gary Copper (1901–1961) foi um ator americano que atuou em mais de cem filmes, dentre eles muitos westerns em que os americanos eram retratados como estrangeiros que invocam a justiça e a superioridade colonial perante a povos não civilizados.