O sonho americano é mantido à custa do negro americano, por James Baldwin — parte 2

Soma Livros
4 min readJun 22, 2020

--

Traduzido por Soma Livros e revisado por Rodolpho Camargo

Detalhe de policias do estado de Alabama atacando manifestantes nos protestos de Selma, conhecido também como Domingo Sangrento, em 1965 (Creative Commons)

Clique aqui para ler a parte 1

Você está com trinta anos e nada do que fez o ajudou a escapar da armadilha. Mas o pior é que nada do que você fez pode salvar seu filho ou sua filha de enfrentar o mesmo desastre e de chegar ao mesmo fim.

Agora vamos falar de valores. Suponho que existam várias maneiras de se dirigir a si mesmo na intenção de encontrar o que essa palavra significa aqui.

De um ponto de vista muito literal, os portos, as ferrovias e a economia do país de forma geral — principalmente dos estados do Sul — não poderiam ter se tornado o que são se não tivessem usufruído no passado e no presente, por tanto tempo, por tantas gerações, de mão de obra barata.

Afirmo com muita seriedade e sem exagero: eu colhi e carreguei algodão até os mercados e construí ferrovias sob o chicote de alguém sem ganhar nada. Nada.

A oligarquia do Sul, que ainda hoje tem muito poder em Washington (e, portanto, no mundo) foi criada pelo meu trabalho e pelo meu suor, pela violação de minhas mulheres e pelo assassinato de meus filhos. Isso na tal terra da liberdade e lar dos corajosos. E ninguém pode contestar essa afirmação, pois é um fato histórico.

Ou seja, esse sonho (do qual já vamos falar daqui a pouco) vem acontecendo à custa do negro estadunidense.

Foi com grande alívio que vocês viram isso acontecer no Extremo Sul dos EUA. Mas não só lá. No Extremo Sul, um policial, um dono de imóveis ou uma atendente da lotérica não sabe muito bem quem você é. Ou seja, se você não for da cidade, e se for um negro vindo do Norte, vão perceber isso de milhões de maneiras diferentes.

Essa pessoa sabe que você não é de lá e não vai querer ter contato, razão pela qual você vai precisar esperar um pouco para receber seu telegrama, por exemplo.

Todos sabemos disso. Todos já passamos por isso, e quando você se torna homem é muito fácil lidar com isso.

Mas o que se passa pela cabeça daquela pobre mulher ou homem? Essas pessoas cresceram acreditando (e acreditam piamente) que independentemente de suas vidas serem horríveis (e são), ou de estarem no fundo do poço, ou de serem açoitadas por qualquer desastre, em algo que as consola como uma revelação celestial: “pelo menos não sou negro”.

Agora sugiro que, de todas as coisas terríveis que possam acontecer a um ser humano, esta daqui seja uma das piores. Sugiro que o que aconteceu com os sulistas brancos seja, de certa forma, muito pior do que o que aconteceu com os negros do Sul, porque o policial Clark¹ em Selma, no Alabama, não pode ser considerado um monstro. Tenho certeza de que ele ama a esposa e os filhos. Tenho certeza de que ele gosta de ficar bêbado.

É preciso presumir que ele seja um homem como eu. Mas ele não sabe o que o leva a usar um cassetete, a ameaçar com a arma e a usar um bastão elétrico. Algo terrível deve ter acontecido a um ser humano para que ele consiga colocar um bastão elétrico contra os seios de uma mulher, por exemplo. O que acontece a ela é horrível, mas o que acontece com o homem que faz isso é, de certa forma, muito, muito pior.

Afinal, isso não aconteceu cem anos atrás, mas em 1965, em um país abençoado com o que chamamos de prosperidade (uma palavra que não examinaremos de forma muito detalhada) e com um certo tipo de coerência social, que se denomina nação civilizada e que defende a noção de liberdade do mundo.

E o que vou dizer agora é algo real do ponto de vista de qualquer negro estadunidense. Qualquer negro dos Estados Unidos que esteja assistindo isso, não importa onde esteja, até mesmo do Harlem (que é outro lugar terrível), precisa dizer a si mesmo (apesar do que o governo diz, e o governo diz que não podemos fazer nada a respeito): se as pessoas sendo assassinadas nas fazendas do Mississippi e levadas para a prisão fossem brancas, se as crianças correndo pelas ruas fossem brancas, o governo encontraria alguma maneira de fazer algo a respeito.

De novo, odeio parecer um profeta do Antigo Testamento, mas se a 15ª emenda da lei de direitos civis, de quase 100 anos atrás, não foi respeitada até agora, não tenho nenhum motivo para acreditar que será cumprida agora.

E depois de tanta gente chegar no Sul dos Estados Unidos, muitos outros chegaram lá. Então se alguém tem que provar sua posse da terra, 400 anos não são suficientes? Quatrocentos anos, pelo menos três guerras. O solo dos Estados Unidos está cheio de cadáveres dos meus antepassados.

Por que agora é concebível questionar minha liberdade, minha cidadania ou meu direito de morar lá?

E sugiro ainda mais e da mesma maneira que a vida moral dos policiais do Alabama e das pobres mulheres do Alabama (mulheres brancas) foi destruída pela peste chamada cor, pela qual o senso de realidade dos Estados Unidos foi corrompido.

Clique aqui para ler a parte 3

Notas

¹James Gardner Clark Jr. (1922–2007) foi um xerife do Condado de Dallas, Alabama, responsável pelas violentas prisões dos manifestantes dos direitos civis manifestantes durante as marchas de Selma a Montgomery, em 1965. Seu nome é notório para Baldwin pois Clark foi o responsável por usar táticas brutais que incluíram o uso de bastões elétricos contra manifestantes.

--

--

Soma Livros

Somos uma loja virtual de livros usados, raros e fora de estoque. Assine nossa newsletter: bit.ly/newsletter-soma