O sonho americano é mantido à custa do negro americano, por James Baldwin — parte 3

Soma Livros
3 min readJun 26, 2020

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Traduzido por Rodolpho Camargo e revisado por Soma Livros

Pilotos militares de caça afro-americanos da 332º Grupo de Caças das Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos (USAAF, no original) participando de uma comissão no campo de pouso de Ramitelli, Itália, em março de 1945 — Toni Frissell (Creative Commons)

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Vou correr o risco de ser excessivo, mas sempre senti algo quando finalmente saía do país e me encontrava no exterior, em outros lugares, e prestava atenção aos estadunidenses no exterior. Somos compatriotas, eu me importo com eles, e mesmo que eu não me importasse, há algo entre nós.

Sabemos que somos do mesmo país só de olharmos um para o outro. Se vejo alguém do Tennessee, sei de que parte do Tennessee a pessoa veio e o que isso significa. Os ingleses não têm isso. Os franceses também não, nem ninguém no mundo, a não ser outro negro que seja do mesmo lugar.

Dá para ver essas pessoas solitárias negando os únicos parentes que têm. Falamos sobre a integração nos Estados Unidos como se fosse um dilema muito novo. O problema aqui é que estamos integrados há muito tempo. É só me colocar ao lado de qualquer africano para ver do que estou falando. Minha avó não era estupradora. Não estamos encarando o resultado do que fizemos.

Pelo próprio bem, o povo dos Estados Unidos é levado a simplesmente aceitar a sua história. Eu estava lá não apenas como escravo, mas também como concubina. Afinal, sabe-se o poder que existe sobre o outro se você tiver total controle sobre ele.

Quando vi estadunidenses na Europa, parecia que o que não sabiam sobre os europeus era o mesmo que não sabiam sobre mim. Não estavam tentando, por exemplo, ser desagradáveis com a francesa ou grossos com o garçom francês. Não sabiam que estavam magoando aquelas pessoas. Não tinham nenhuma ideia de que aquela mulher ou homem em particular, apesar de falar outra língua e de possuir costumes e maneiras diferentes, fosse um ser humano. E passaram por cima deles com o mesmo tipo de ignorância, condescendência, charme e alegria com que sempre me deram um tapinha na cabeça e me chamaram de neguinho, ficando chateados por eu ficar chateado.

O relevante nessa história é que, quarenta anos atrás, quando nasci, era muito remota a possibilidade de ter que lidar com o que não é dito pelos subjugados, com o que nunca é dito ao mestre. Ninguém pensava nisso.

Quando criança, aprendi nos livros de história dos Estados Unidos que a África não tinha história, assim como eu. Que eu era um selvagem sobre quem quanto menos se dizia, melhor; alguém salvo pela Europa e trazido para a América. Obviamente acreditei naquilo. Eu não tinha muita escolha. Eram os únicos livros que tínhamos. Todo mundo parecia concordar.

Ao sair do Harlem, em direção ao centro da cidade, dá para ver que é tudo muito maior, mais limpo, mais branco, mais rico e mais seguro do que onde você está. Tem coleta de lixo. As pessoas conseguem pagar um seguro de vida. Os filhos são felizes e seguros. E você não é. E você volta para casa e parece que, claro, é um ato de Deus que isso seja verdade! Que você pertença ao lugar em que o branco lhe colocou.

E existe uma contra-imagem no mundo apenas desde a Segunda Guerra Mundial. E essa imagem não surgiu por meio de nenhuma legislação ou de parte de nenhum governo americano, mas pelo fato de a África estar subitamente no palco do mundo e de os africanos precisarem ser tratados de uma maneira como nunca haviam sido tratados antes. Isso deu ao negro estadunidense, pela primeira vez, uma ideia de si mesmo além do selvagem ou do palhaço. Muitos dilemas foram e serão criados.

Uma das grandes coisas que o mundo branco não sabe, mas acho que eu sei, é que o negro é como todo mundo. Alguém usou o mito do negro e o mito da cor para fingir e presumir que você estava lidando com algo exótico, bizarro e praticamente, de acordo com as leis humanas, desconhecido.

Infelizmente não é verdade. Também somos mercenários, ditadores, assassinos, mentirosos. Também somos humanos.

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