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Grão. 2019. Aquarela, bordado e fotografia impressa em acetato.

Três meses depois

Quando deu um mês, eu engravidei. O mal estar que senti no dia exato não sei dizer se era tristeza ou se já era a minha carne se fazendo terra para aquela semente. Quando descobri, umas semanas mais tarde, foi como se chegasse chuva dentro do meu peito seco: vida que veio lavando toda a poeira que a morte levantou e eu ainda não tinha alcançado força para limpar. Ô, mãe, tivesse esperado um pouco mais, ou tivesse a sementinha se adiantado um tempo, mas agora como é que eu vou fazer isso sem você? E fui fazendo, porque o corpo sabe fazer e, aos poucos, foi me alimentando aquela promessa de chegar um novo pedaço de mim para habitar o descampado deixado pelo pedaço que me foi arrancado. Ô, mãe, me olha daí, então, que eu tento daqui, do jeito que der.

Mas não é assim que a vida se move e o pior de tudo é que eu já sabia disso. É como se a trajetória de cada pessoa tivesse um tema recorrente, uma competência indispensável que deve ser adquirida e que a gente mesma se encaminha a topar a cara na parede quantas vezes forem necessárias até entender. E a minha grande limitação, o que Saturno me exige como resgate para devolver os fragmentos que ele vai devorando de mim, é e sempre foi o enfrentamento digno desse desconhecido que nenhuma razão alcança, dessa sombra onde as luzes não chegam e que só pode ser atravessada com os olhos fechados. E que, precisamente porque não tem raciocínio que dê conta dela, me deixa sempre de joelhos, armada com recursos inúteis e em completo desalento. Assim, alguns meses depois de enterrar o corpo que fez meu corpo, soube que não vingou nosso plantio e tive que deixar a água levar o pequenino corpo que o meu corpo vinha fazendo.

De imediato, o resultado foi o mesmo de antes, da vida toda: dentro da pessoa que sente que deu à vida, ou à morte, toda potência que tinha para se sustentar de pé em face da dor, o que sobra é deserto. Como parece próprio do humano quando confrontado com sua pequenez, neguei às minhas sombras qualquer dignidade e já estava pronta para sentar no formidável trono do castigado. Me imaginei no centro de uma conspiração cósmica e quis me entregar, resignada, à impossibilidade. Aquela semente, com tudo que ela continha de sentido, manteve minha cabeça fora d’água quando parecia que a vida ia me engolir e sem isso, sem mais isso, só me restava, então, me deixar afundar, aceitar sem resistência o tempo da terra arrasada. Foi aí que minha mãe veio em meu socorro.

Até ali, eu já não pensava mais nela senão como falta, como tragédia: minha mãe não existe mais. Acabou minha mãe, como antes dela acabou minha avó e cabe a nós que tivemos que ficar aprender meios de seguir existindo. Veja, eu não duvido de um tanto de coisa, mas nunca botei fé em nada. Aquelas certezas que nos protegem nos encontros com a morte, o estrangeiro inconcebível, nunca tive nenhuma, nem para o sim nem para o não. Mas quando digo que minha mãe me ajudou a passar, não é que ela tenha me visitado como um espectro ou numa aparição anunciada por anjos: ela estava aqui comigo o tempo todo, porque ela esteve aqui comigo por centenas de milhares de horas e ninguém que se desdobra assim em laços desaparece por completo. Não tem jeito. Porque ela existiu e porque nossa conexão existiu, tem limite para o que a morte pode me tirar dela. Minha mãe, que foi mãe menina, que morreu mulher, não chegou e não vai chegar a ser velha, mas sempre vai existir, das minhas raízes aos meus frutos, nas minhas vísceras e nos meus ossos, seu rastro está aqui, em tudo que eu sou, que fui ou que posso me tornar. E, estando aqui, minha mãe menina, feiticeira generosa, me deixou instrumentos para navegar a escuridão e olhar nos olhos da minha fraqueza: guiada por seu amor, cruzei o deserto que a dor me tornou e entendi que preciso aceitar a morte ― a sua morte, mas também a minha e a de tudo que é vivo ― antes de germinar.

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Stephanie Boaventura

uma mamífera que precisa do futuro ➳ mãe, pesquisadora, artista ➳ escrevo textão na internet e não obedeço algoritmo