Carta à Tati* de 10 anos atrás

e outros [intra]empreendedores sociais de trajetória parecida.

Tati Leite
5 min readOct 20, 2021

*mulher branca, de 28 anos, que largou carreira em multinacional para empreender com o marido, homem branco com trajetória similar.

Em primeiro lugar, celebro (e agradeço!) sua escolha de usar seu tempo, talento e energia para tentar mudar o mundo. Sei que isso já é uma quebra de padrão e que não foi fácil, nem óbvio.

Sei que, sem essa mudança de rumo, hoje você poderia ser a executiva que sonhava na faculdade. Lembro o quanto amava trabalhar na Coca-Cola. Quanto isso te realizava. E quanto você aprendeu e amou as pessoas com quem interagiu (até casou com uma delas e segue amando tantas outras).

Não vou te escrever sobre as dificuldades que você vai passar. Se souber, vai desistir de tentar, te conheço. E não quero que faça isso. Se fizer, eu não estarei aqui agora e a Benfeitoria não terá tocado tantas vidas.

Não ter noção dos desafios de empreender no Brasil com algo inovador e de impacto (uma mistura ainda rara hoje e pouco compreendida) é essencial para não matar sonhos que ainda estão no começo.

Muitos dos seus sonhos ainda fazem sentido e ainda são novos (e necessários, na minha visão de hoje), 10 anos depois.

Mas quero te escrever sobre outras coisas que você ainda não tem noção e que, se tiver, poderá tornar a jornada para outras pessoas ao seu redor menos dolorosa e/ou mais potentes.

O que, em 2011, você chamaria de Walk The Talk porque não se tocava que só 5% dos brasileiros falam inglês, hoje eu chamo de cuidado e coerência.

Sem querer, você machucou pessoas muito especiais. De forma sutil e não intencional, elas sabem. Elas que te mostraram generosamente isso. Mas doeu e, se eu pudesse voltar atrás ou elencar um grande erro dessa trajetória de 10 anos, foi a nossa demora em entender/ reconhecer privilégios — e atuar intencionalmente para reduzir injustiças e dores derivadas.

Sinto que preciso explicar o que hoje quero dizer com privilégio. Há 10 anos, quem mais usava essa palavra com você era a vovó Yeda, toda vez que ia visitá-la, sorrindo: “que privilégio ter vocês aqui, minha neta!”.

Sinto saudades disso, mas não uso mais essa palavra em contextos positivos.

Como bem explica o Dorly nessa conversa que tivemos na live de 10 anos da Benfeitoria, privilégio é uma condição especial que você não escolhe, mas tem (normalmente, herda) e te dá benefícios que outros não acessam.

Trecho da live de 10 anos da Benfeitoria, gravada em 28/abril/2021.

Ou seja, a vovó estava certa. Não escolheu ser nossa avó e não escolhemos ser neta dela. Cantar Ongli Ongli Ongli em família e ouvir suas histórias foi benefícios de poucos. E tudo bem.

Mas o mundo que se abriu para nós (ou não se fechou) por sermos brancas e com acesso a educação, experiências, repertório, rede e recursos que a maioria das pessoas no país não tem, gera um abismo muuuuito maior e mais cruel do que hoje você compreende.

Não se insulte. Sei que tem consciência da desigualdade brasileira. E que isso te impulsionou a querer mudá-la. Mas apesar de uma excelente educação formal e afetiva, não crescemos com consciência de raça, classe e gênero.

O que isso significa? Entre outras coisas, que aquela máxima que aprendemos na infância “trate o outro como gostaria de ser tratada” não é válida para todos os casos. O que é normal ou legal para você pode ser violento para outros. E o que é óbvio para outros é invisível para você.

Aprendi que nossa existência (e o que ela representa), pode ser, ao mesmo tempo, inspiradora para uns e opressora para outros.

Passei a enxergar que a vida é como um jogo cujas regras foram roubadas para algumas pessoas — e que estamos entre elas.

Não criamos essas regras, mas nos beneficiamos delas e, com isso, perpetuamos esse sistema.

Entendi, finalmente, porque mulheres negras se vêem como “mulheres negras”, mulheres brancas se vêem como “mulheres” e homens brancos se vêem como “pessoas”. Falar de “todos” de maneira universal e supostamente inclusiva é um ato convenientemente limitado e cruelmente excludente, sobretudo quando trata-se de políticas públicas.

Temos direito a opinião própria, não a fatos próprios. Estatísticas que você não teve acesso ainda provam que, falar em nome de “todos” no Brasil, na prática, exclui pessoas não brancas.

Não partimos todas e todos de uma posição comum de acesso à fala e à escuta. Como diz Djamila Ribeiro em seu livro “O que é Lugar de Fala?”: “só fala na voz de ninguém quem nunca teve que reivindicar sua humanidade” (trago outros trechos impactantes do livro aqui).

Respira. Não quero que se sinta culpada ou que se paralise (embora saiba que vai, por um tempo). Escrevo hoje porque quero que aja mais rápido. Se omita menos e enxergue o que você olha, mas não vê.

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.

É… essa poesia de Saramago segue nos tocando. E temos tentado reparar algumas coisas. Demoramos, mas começamos (conto um pouquinho mais dessa jornada na Benfeitoria aqui).

Ainda te escrevo uma carta contando alguns erros e outros (des)aprendizados dessa trajetória. Sei que entende a importância real daquilo que é simbólico e que alguns exemplos podem te ajudar entender melhor esta carta. Mas paro essa por aqui hoje porque sei, também, que é muito para digerir (e porque as crianças estão reclamando que não saio do computador, rs).

Siiiim, crianças! O mais velho já está com 7 e o mais novo, com 4. Mega desafio e responsabilidade criar meninos num mundo tão estruturalmente machista e racista — e de tentar conciliar maternidade e empreendedorismo, mesmo com tanto privilégio. Mas isso também é papo para outra carta.

Aliás, tantas outras me vêm à mente…Gostei de me imaginar conversando contigo. Prometo escrever mais. Te amo. Bjs carinhosos e se/me cuida. Tati.

sobre essa carta….

ESSA É UMA CARTA-CONVITE. Ela nasceu logo depois do aniversário de 10 anos da Benfeitoria, dentro do GT de diversidade e inclusão, como forma de compartilhar meus aprendizados de jornada — especialmente sobre privilégio branco — com outros agentes de fomento, executivos e empreendedores de impacto, sem apontar dedo para fora.

É a primeira de uma sequência de cartas, que pretende virar um movimento de (auto)crítica, troca, acolhimento — e (repar)ação. Um movimento que nasce pequeno, mas já conquistou corações gigantes, como Roberta Faria (CEO MOL), Adriana Barbosa (CEO PretaHub e fundadora da Feira Preta), Fabio Bibancos (fundador Turma do Bem), Paula Fabiani (CEO IDIS), entre outras pessoas que admiro muito (e me ensinaram tanto!) e que já toparam participar — e convocar outras vozes inspiradoras.

Mais para frente (quando a vida deixar, rs), faremos um livro com algumas das cartas compartilhadas, costurando diferentes olhares, vivências e aprendizados de jornada. Um livro sobre o que estamos olhando, mas não estamos vendo. E que precisamos reparar. Urgentemente. Topa somar com a gente?

Se sim, compartilhe esse texto com quem vc gostaria que escrevesse uma carta dessas e busque escrever uma também! Mesmo que não queria compartilhar, pode ser um exercício poderoso ♥️ Mas se quiser, me escreve, que conto mais sobre o que estamos pensando para essa ação!

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Tati Leite

Empreendedora social, cofundadora da Benfeitoria, coidealizadora de outros projetos da novas economia, ativista da ética do cuidado e… mãe de 2 :)