BH, Bauhaus ▴■●

Thiago Máximo
5 min readNov 16, 2015

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Nos anos 80, uma sofisticada tecnologia tomou as ruas da cidade: cores primárias

Kandisnky, quando deu aulas na Bauhaus, se inquietava em formular teorias sobre as cores e relacioná-las à misteriosa psicologia das formas. Era preciso descobrir qual era a química que conectava estímulo visual e significado, já que esse tipo de pesquisa era escassa na época. O pintor, porém, sabia: existia uma estrutura escondida a ser desvendada nestes elementos que eram suas ferramentas de trabalho.

Certo dia, chegou em sala de aula com um questionário e distribuiu aos presentes. Dá para imaginar a cena. Um calhamaço recém-mimeografado — quentinho ainda, exalando cheiro forte de álcool — vai se consumindo de mão e mão. A embriagante distribuição dos papéis rouba a atenção de algumas poucas e precisas instruções do mestre. Nada grave, está tudo sinteticamente explicado no impresso:

No alto da folha havia o tracejado de três formas geométricas básicas, um triângulo equilátero, um quadrado e um círculo. Bem abaixo, um espaço para preencher dados pessoais semi-anônimos: “profissão, sexo e nacionalidade”. Por fim, eram dadas as instruções: “Colora as três formas acima com as cores amarelo, vermelho e azul. Por obséquio, providencie uma explicação para a sua escolha da cor.”

O surpreendente e quase unânime resultado legitimou as ingênuas hipóteses do artista resultando na poética equação (num dos finos e raros encontros entre ciência e arte):

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O amarelo finca, tem a cor penetrante do triângulo;
o vermelho se impõe, tem a cor robusta e rígida do quadrado;
e o azul emana a cor espiritual do círculo.

Mais tarde, a metodologia da pesquisa acabou sendo questionada, já que os formulários exibiam os nomes das cores e a posição das formas na mesma ordem para todos. Outro porém: os entrevistados compartilhavam, em grande parte, das teorias de Kandinsky (ao menos os bons alunos). Pouco a pouco, as coisas foram se mostrando bem mais complexas e outras teorias e pensamentos se sobrepuseram a esta primeira tentativa de se formar uma “gramática visual”. O experimento, no entanto, marcou a história do design.

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Enquanto isso, abaixo da linha do Equador, vivíamos cá pacatamente com nossos símbolos regionais, mas daltônicos a essa fórmula: nosso bandeiroso triângulo era — ainda que tardia — avermelhado, a redondeza do pão-de-queijo sempre se amarelava e, por fim, nossos azulejos não se enquadravam de forma alguma à lógica bauhausiana.

Mesmo assim, essa corrente de design, arquitetura e urbanismo, que influenciou o mundo com um racionalismo meticuloso e funcional, teria também chegado ao Brasil.

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No início dos anos 1980, a então Metrobel (“mais ou menos” o que hoje é a BHTrans) lançou o sistema ProBus, padronizando a pintura dos ônibus nas cores amarelo, azul e vermelho. Cores que se associavam a um tipo de percurso diferente. Podemos dizer que tivemos ali nosso “momento Bauhaus”, numa ousada e inédita associação de forma e função urbana. A mudança fez vista. Quem se debruçava de uma janela no Centro e via passando retângulos em cores primárias no ortogonal traçado de asfalto podia enxergar telas de Mondrian. O trânsito naquela época se permitia mais poético.

Dá pra ir além e dizer que a Metrobel inaugurou uma espécie de Bauhaus Tropical. Só que quase ninguém percebeu.

O amarelo tem a penetrabilidade na região central própria aos circulares; o vermelho enrijece distâncias semi-expressas; o azul dá as voltas espirituosamente intermináveis dos diametrais. Belo Horizonte ousava ao se tingir de cores tão expressivas. Era notável a vanguardista “tecnologia das cores” codificando o uso da cidade. Mas desconfio que muitos comentários se limitaram ao gostei/não-gostei desses que rolam poraí entre tradicionais cafezinhos servidos sob toalhas xadrez :

– Gostô?
– Gostei.
– Prefiro os azuzim.
– Nem…
– A gente gostô. Né, bem?
– Ah, eu num gostei não mas o pessoal lá em casa gostô.
– Eu acho que eu gostei.
– Quem qué mais um cafezim?

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O componente “tropical” deste nosso suposto momento Bauhaus não seria apenas uma questão termo-pluviométrica. Ele se manifesta na adaptação dessas teorias aos nossos problemas locais. Um dos grandes desafios da época era conceber um sistema de infomação que levasse em consideração, por exemplo, a considerável taxa de analfabetismo.

O transporte “público” na época era praticamente auto-gerido pelas empresas privadas: não havia qualquer padronização, cada viação pintava seus carros como bem entendia, não havia sequer tarifa única. Era preciso transformar esse amontoado de linhas e viações num só sistema. Um sistema de transporte público compreensível universalmente. Se funcionasse municipalmente, já estava de bom tamanho. Junto com a regra das cores primárias, foi proposta uma numeração lógica das linhas que designavam as principais vias de passagem. As barras inclinadas coloridas, abaixo do pará-brisa e na lateral, tinham essas mesmas funções:

0, cinza: Av. Afonso Pena, Av. Cristóvão Colombo, Av. N. Sra. do Carmo
1, amarelo: Av. Amazonas e Via Expressa Leste-Oeste
2, lilás: Av. Pres. Antônio Carlos e Av. D. Pedro I
3, rosa: Av. D. Pedro II e Av. Pres. Carlos Luz
4, marrom: Rua Pe. Eustáquio e Av. Abílio Machado
5, bege: Av. Cristiano Machado e Rua Jacuí
6, ocre: Rua Platina
7, verde: Rua Niquelina
8, laranja: Av. Silviano Brandão e Av. dos Andradas
9, azul-claro: Av. Prudente de Morais, e Av. Raja Gabáglia

Créditos das imagens: aqui

Talvez, num longínquo 1984, poucos se servissem do sistema. Críticos diziam que povão nunca ia entender essa aritmética toda. Mas a aposta de quem a arquitetou só poderia ter sido a inversa. Pensar uma sinalização urbana deveria pressupor usuários iletrados também. Era preciso integrar à cidade aqueles que sofriam de uma condição que já os marginalizava.

Hoje nos distanciamos dos princípios desta Bauhaus tropical. O sistema se complexificou, se abriu ao verde e ao laranja no seu espectro, aos tons sobre tons. A lógica dos números caducou, já não há uma lógica aparente e defensável, e as barrinhas inclinadas foram suprimidas. Mas o problema fundamental foi a queda de um modelo que pensava a mobilidade para a Região Metropolitana como um todo, horizontes no futuro e na integração. Dá-se lugar ao velho e bom complexo de Aarão Reis pensando a cidade pelo seu umbigo.

Mas uma coisa é certa. Se Kandinsky e a tchurminha da Bauhaus tivessem sido magicamente teletransportados daquela sala de aula para um cruzamento barulhento da capital mineira, 60 anos mais tarde, tudo estaria resolvido. Saberiam intuitivamente escolher entre um circular, um diametral ou um semi-expresso.

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Thiago Máximo

Enseignant dans la #création graphique et interactive. #EnseignementSupérieur. #designgraphique #pédagogie #designinteractif