O ‘Complexo de Aarão Reis’

Thiago Máximo
5 min readNov 16, 2015

--

Freud explica o conflito entre um ordeiro projeto original e o caos que se fez dele

Aarão Reis é um de nossos heróis municipais. Porém, quem sente o atual frescor caótico da cidade prefira lhe atribuir um colorido anti-heróico. Que maldade! Não podemos esquecer que seus desafios para a época não eram pequenos: foi incumbido de conceber a capital de um dos Estados mais importantes da recém federada República, tarefa inédita no país. Enfim, fez um bom trabalho. Um lindo projeto. Mas a sabedoria popular está aí para confirmar: “tudo que é bom dura muito pouco”.

*

Nomeado em 17 de dezembro de 1893 pelo então governador Augusto de Lima para chefiar a comissão técnica da nova capital, Aarão Reis se viu diante de um desafio ainda maior: convencer a família a largar as mordomias do Rio e se mudar para Minas Gerais. A novidade caiu como uma bomba em casa:

– Como assim?! Vamos viver num brejo, no meio do mato?! — teria resmungado a esposa, já com voz trêmula e pálpebras aguadas.

Dona Mariana foi pega de surpresa. Buscou amparo em seu objeto de estimação, um longo frasco d’eau de cologne. Enquanto pensava em contra-argumentos, passou a fazer movimentos compulsivos no gomo borrifador da fragrância esfregando seus delicados dedos. Aarão reparou o sutil gesto no objeto fálico, pensou estar prestes a cair numa daquelas chantagens emocionais da esposa. Para sorte de nosso herói, não foi o caso. Apenas uma inconsciente demonstração de apego às facilidades da capital. Desde que se mudaram de Belém — cidade natal da família Reis — para a baía da Guanabara butiques, livrarias, perfumarias faziam a rotina da esposa.

– Pensastes em nossos filhos? Que educação os aguarda nesse lugar perdido no meio do nada? Um arraial?!

– Querida, nossos filhos passam tardes lendo Jules Verne e agora vamos privá-los de viver tal aventura? Ouro Preto não está longe, há bons colégios por lá. Vamos dar um jeito… Tenho já um esboço na cabeça, imagine uma Washington, uma Paris só pra você, meu docinho?

Dentre os nove filhos, só um não delirou quando o pai mencionou o ídolo francês. Justamente Aarãozinho. Sem praia, nada feito. Semanas de chiliques, crises, greve de fome, um drama. Até a esposa já tinha se conformando, mas o desgosto do filho partia o coração do pai, angustiava a mãe.

Um convite para um castelinho na praia foi a última cartada. Aarãozinho foi desconfiado, mas em poucos minutos se soltou. Craque na brincadeira, foi fazendo tudo sozinho: um genial xadrez geométrico de ruas e avenidas, um grande parque no meio, e impressionantes torres verticais, formadas por respingos de areia molhada que escorria entre os dedos.

– Tás vendo só? — provocou o pai. — É isso que vamos fazer lá, um enorme castelo! Não vais querer vir me ajudar?

Aarãozinho era bobo, caiu na conversa do pai.

Mas o castelo estava vistoso. A molecada da praia parou para admirar, doidos pra entrar na brincadeira.

D. Mariana observava de longe. Estava preocupada com o filho, exposto ao sol por mais de duas horas. “Não pode”. Teria convocado os dois para passar Sundown ou Caladryl, mas não existiam ainda esses corta-barato de mãe naquela época. Soltou um berro e fez o que tinha ao alcance: “venham pôr um boné que o sol está forte, meus Aarões!” O pai obedece e deixa Aarãozinho no comando das obras.

Uma garotinha de ar inocente aproveita e se oferece para ajudar. Um irrecusável “sim” esclarece a dúvida dos outros admiradores-mirins. A área ao redor vai sendo loteanda, novas técnicas, novas lógicas se justapõem ao conjunto.

Sr. e sra. Reis comemoram aliviados o sucesso da operação. Brindam e trocam bitocas publicamente. A mãe é convidada a praticar o seu escandaloso orgulho de mãe e os dois descem em direção a beira do mar equipados de chapéus e uma máquina para fotografar a vitória.

Quinze minutos haviam se passado. Já eram duas dúzias de crianças que descontroladamente reviravam areia no pedaço. Aarão ficou aliviado ao encontrar o “projeto piloto” relativamente intacto. Só não notou a alegria do filho: interagia com os novos amiguinhos e juntos planejavam as ampliações do castelo.

O pai arma o tripé rapidamente em frente às obras, os sorrisos do filho e esposa se posicionam adestradamente ao lado do castelo. As outras crianças, também orgulhosas de terem participado, captam o momento fotográfico e vão se amontoando do fundo da obra coletiva. Estão pulando, felizes, fazendo chifrinhos uns nos outros, sorrindo e olhando fixamente pro bigodudo, pensando que serão também registradas. Mas a câmera resolve o problema do enquadramento de outro modo, elimina os adendos mal-esculpidos, e claro, a pivetada.

No escritório de Nosso Herói, em Belo Horizonte, a foto teria ficado expondo o orgulho do pai e inspirado a criação da cidade.

Deu no que deu.

Belo Horizonte, este castelinho de areia, considerava em sua inauguração a ingênua projeção populacional de 100 mil habitantes para os seus 100 primeiros anos de capital. Ultrapassamos hoje os 2 milhões. Os problemas não têm origem em algum erro de cálculo do desenho original, muito menos deve ser atribuída aos forasteiros que ajudaram a construir a cidade. O caos veio com a obsessão de uma imagem perfeita e estática, ignorando o presente e o futuro explícito nas novas relações sociais que ali já iam se tecendo.

Hoje, porém, o complexo de Aarão Reis é um mal que aflige considerável parte de nossa população. É muitas vezes a imagem acima, do intra-Contorno, que simboliza a cidade, nos raros momentos em que encontramos um mapa da capital. Comum também é ouvir daqueles que moram fora da avenida que esta imagem seria o suficientemente representativa de BH — “é a mais adequada” — sem se dar conta de que da cidade estão se excluindo.

--

--

Thiago Máximo

Enseignant dans la #création graphique et interactive. #EnseignementSupérieur. #designgraphique #pédagogie #designinteractif