Somos topeiras escavando Minas

Thiago Máximo
7 min readNov 16, 2015

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Esse texto foi escrito em 2011 para o jornal ahcidade.com.br, hoje extinto. O texto questiona o conhecimento cartográfico do Belorizontino e questiona: cadê o mapa de BH que não nos norteia por nossos usos da cidade ?

Proponho, a você caro leitor, um simples exercício — com um objetivo meramente didático — a ser feito durante a leitura deste texto: pegue lápis e papel e desenhe, da maneira mais espontânea e natural possível (sem colar!) o mapa do Brasil. Faça num traço só, de supetão, encurtando ao máximo a distância entre a imagem mental do perímetro brasileiro e a capacidade de projetá-la sob o papel.

Aquilo que foi desenhado é resultado de dois processos combinados: um destes, é a habilidade para desenhar, é saber se expressar graficamente dominando a ferramenta e a superfície. Outra, necessária antes da realização, é conhecer bem e idealizar o que será projetado.

Desenhar é portanto, e antes de tudo, saber olhar.

A designer francesa Clio Chaffardon recolheu desenhos de seus compatriotas em tarefa parecida: desenhar “de cabeça” o contorno de seu país. Ela publicou o resultado em um livro entitulado “France”.

Os grandes viajantes (mercantes ou turistas), os estatísticos, geógrafos ou qualquer um que olhe para o mapa do Brasil com um pouco mais de sensibilidade que o habitual; e ainda, por menor que seja a destreza com o próprio punho; têm grandes chances de fazer um desenho bastante eficaz do ponto de vista comunicativo. Estes tem o olhar treinado.

Isso, porque eles não experimentam a visão com aquela simples piscadela rápida, apenas reconhecer as formas. A experiência visual de um mapa por um sujeito desinteressado podaria ser narrada assim :

“– Eis que reconheço, sob meus olhos, o mapa do Brasil. Ponto. Agora que identifiquei esta forma vou experimentar outra coisa com a minha visão.”

O olhar atencioso dos curiosos transforma a experiência de simplesmente “ver” a imagem em “olhá-la”. Percorrendo com os olhos a superfície de uma carta, o viajante se projeta nos lugares em que já foi (ou para onde gostaria de ir) calculam distâncias com outros pontos afins: e sob a superficie do mapa vão se criando relações.

O geografo e o estatístico, por exemplo, realiza outras conexões visuais com este artefacto. Ele sobrepõe mentalmente dados e valores ao plano do gráfico, compreende variações sociais e econômicas com este fabuloso instrumento de visão que é o mapa.

Entretanto, não é preciso ser cartógrafo para reconhecer e reproduzir o mapa do Brasil. Moleza. Graças ao ufanismo carnavalesco que excercemos desde sempre somos dotados de um “kit básico” embutido em nossa identidade nacional: todo mundo reconhece e conhece razoavelmente bem as cores e formas da bandeira nacional; o tracejado da fronteira territorial e a… escalação da seleção. (o Hino Nacional, deveria estar incluído neste Kit, mas o problema é que ele pressupõe, que se domine habilmente a língua Portuguesa. Mas esses elementos verbosonoros não estão em jogo neste artigo. Restrinjamos à análise de relações gráfico-visuais).

Apesar deste dito nacionalismo, nos contentamos a aceitar a imagem derivada da projeção de Mecartor, e não a de Peters, que nos distorce e nos diminui. É a imagem achatada de Mecartor com a qual nos identificamos, e a proliferamos nas nossas relações sociais.

Nos conformamos com a imagem dada por Mercator (esq.), que nos faz baixinhos e gordinhos, “gentilmente” reduzidos. Com Peters (dir.) temos a “petulância” de lembrar que somos maiores que a Groelândia.

Enfim, isto menos importa agora. Nos basta que ao menos qualquer uma destas representações espaciais de nosso país circule com relativa facilidade em nosso quotidiano: ela está associada à marcas de produtos e serviços, podemos vê-la várias vezes por dia na TV, nas previsões do tempo, em infográficos nos jornais e revistas impressos, nas seções “onde estamos?” de nossos sites preferidos, ou até num simples desenho como este que você fez. Terminou?

Ok, mas o exercício apenas começou. Vamos tornar o exercício mais complexo. Testemos a capacidade do seu desenho de suportar outras camadas de informação.

Marque neste gráfico:

  1. a região do Pantanal.
  2. Faça uma linha que corresponda ao rio São Francisco.
  3. Posicione e trace o Estado de Minas Gerais, considerando aquilo, que segundo seu julgamento, seja a escala e a posição adequada.
  4. e por fim, aponte a capital mineira.

Dê a si mesmo uma nota de 0 a 10. Eu te dou, de ante-mão, uma nota entre 6,5 e 10. Imagino que de um modo geral, ao fazer parte integrante do seleto público deste texto, não haverá aberrações como : Pantanal posicionado no extremo sul do país; o Velho Chico se desembocando na costa oeste do país (com ou sem transposição); o Estado mineiro enigmaticamente representado como uma esfinge, sem nariz; e Belo Horizonte enverrugando a dita região nasal. Bravo (e obrigado) à todos.

Talvez a falsa modéstia, tipicamente mineira, puxará a nota para um não tão honroso 5. O tradicional e saboroso cu doce. Por mais tosco que seja o resultado, tenho certeza que ele é eficaz, do ponto da comunicação. Sem uma só palavra, podemos mostrá-lo a qualquer outra pessoa que partilhe a mesma cultura (até para um analfabeto) ele saberá que se trata do Brasil, de Minas e pode imaginar que o ponto no seu interior seja BH.

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Passemos ao exercício #2, que é, ou deveria ser, a mesma coisa. Vamos apenas modificar a escala, passando de país para cidade. Deveria inclusive ser mais fácil, visto que estaremos mais próximo da escala humana.

Vamos lá. Desenhe o mapa da cidade de Belo Horizonte. Se achar complicado, tente ao menos imaginar. Vai constatar que a tarefa é bem mais difícil que desenhar o mapa do Brasil (mais duro ainda, é representar a forma do seu bairro). Enfim, digamos que você conseguiu desenhar o mapa de Belo Horizonte. É possível. Aponte agora a Avenida do Contorno, a lagoa da Pampulha, marque com X o seu antro de consumo preferido, circule o seu bairro, faça a sua rua, aponte onde você está agora.

É certamente uma tarefa bem mais complicada, e pra muitos (inclusive para mim) impossível. Não sei situar a relação geográfica entre Taquaril e o Alto Barroca, Renascença ou Barreiro. Quando era jovem, costumava confundir no meu uso da cidade: o que era o seu alto com o seu norte. Fazia coincidir os bairros do alto Afonso Pena com o norte do meu mapa mental. Bastava rever um (raro) mapa da cidade impresso para perceber como meu mapa estava equivocado, de ponta-cabeça. A linha da Serra do Curral, sempre acima de nossas cabeças no horizonte, custava a retomar seu devido lugar no pé da página.

O alto Afonso Pena, acima de nossas cabeças na linha do belo Horizonte, aponta para baixo, para o sul do mapa.

Determinar as relações de vizinhança em Belo Horizonte só é possível através de uma projeção mentalizada da própria presença em um destes lugares, fazendo um “filminho acelerado” na cabeça de como se deslocar de um ponto a outro. Para muitos, esta memória visual é sempre emoldurada por um parabrisa. O problema deste tipo de representação mental, é que ela é sempre sob a perspectiva do olhador, inserida e aprisionada no plano, sem de fato realisar o que ele é. Fica debilitado visualizar o todo, focalizando partes de acordo com necessidades específicas. Com muitas chances podemos cometer erros, negligenciando caminhos pouco habituais, ofuscando links que seriam explícitos numa hipotética imagem planificada da cidade.

O problema da visualização do transporte urbano na capital será abordado com mais atenção em um próximo artigo. Algo foi feito nos últimos anos, BH conquistou algumas melhorias, mas ainda sofre do complexo de Aarão Reis, limitando a visualização da cidade ao seu contorno inicial.

Enfim, nossa carência cartográfica não se reflete apenas no transporte público. O mapa de BH não é considerado produto usual — adquirível em bancas ou papelarias –, seja nos formatos de bolso ou painel; não é capaz de agregar o mínimo de valor a marcas que portem o nome da cidade; nem é usada com a devida frequência pelos telejornais e mídia impressa. E vamos vivendo uma cidade sem se dar conta de como ela é. O mapa de Belo Horizonte não faz parte do imaginário cartográfico coletivo de seus habitantes. Isso não deveria ser um absurdo?

O catálogo telefônico da cidade foi, durante muito tempo, um refúgio dessa preciosa imagem. Durante algum tempo, chegou a ilustrar a sua capa, espaço cedido hoje para paisagens amenas da capital e ilustrações de artistas locais, na derradeira tentativa de sobrevivência desse documento no espaço doméstico. Mas aqueles que ainda fazem uso desse livro ancião, impresso em papel jornal, hoje obsoletado pelo Google Maps, podem contar com suas sábias páginas iniciais para auxiliá-lo em seus deslocamentos. O problema é que tal artefato não é apropriado para se levar no bolso ou mochila.

E assim vivemos a cidade, tateando-a. Como toupeiras, vamos cavando trilhas, aprendendo-as de cor, esquina por esquina, cegamente, para fazer de nossa memória de deslocamento o melhor dos GPS, para quando for preciso.

Se o transporte público fosse usado por todos, seria incontornavelmente dotado de mapas mais inteligentes para uma mobilidade urbana autônoma. Aquela frase à beira da cabine dos ônibus, “Fale ao motorista somente o indispensável” poderia finalmente ser respeitada.

Exercício 3. Para-casa, para terminar. Obtenha o seu mapa da cidade. Compre, imprima, leve no bolso, na bolsa. Cole atrás da porta, a cada vez que você for sair, olhe para ele. Deixe-o dobrado no porta-luvas do seu carro. Um dia você vai precisar consultá-lo. No site da BHTrans, a versão “oficial” está disponível num PDF quase ilegível, mas já é alguma coisa. Apesar da péssima resolução, tem para todos os perfis, pedestres, motoristas e até ciclistas. Faça bom uso!

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Thiago Máximo

Enseignant dans la #création graphique et interactive. #EnseignementSupérieur. #designgraphique #pédagogie #designinteractif