O sucesso de um filme não não muda em nada a situação da animação brasileira

Tiago Alcantara
10 min readJan 12, 2017

A frase acima define a segunda parte da entrevista com Alberto Lucena Barbosa Jr.*. Nela, o pesquisador aborda o papel da animação como propulsora de mudanças no cinema do século XXI e também comentou aspectos relevantes sobre o estudo e a produção de animação no Brasil, como o "relativo"sucesso de O Menino e o Mundo, indicado ao Oscar de melhor animação.

Chegou agora? Confira a primeira parte da entrevista com o professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba, artista visual e autor do livro A Arte da Animação: Técnica e Estética Através da História (Editora Senac, 2002).

Fica claro que esse filme, nem qualquer outro, muda em nada a situação da animação brasileira. O problema não está no curta, no longa ou na falta de patrocínio. A questão é de mentalidade.

Seu livro aborda a relação entre a arte da animação, industrialização e influência tecnológica. Como se dá essa relação e o que faz com que ela traga inovações para o cinema?

Alberto Barbosa Lucena Jr. — O cinema é arte e indústria e ambas características são consequência de tecnologia sofisticada. Por isso o cinema ter surgido há apenas pouco mais de um século.

O cinema é uma arte porque, como tal, é capaz de interpretar expressivamente a existência.

É uma indústria por tratar-se de produção para consumo de massa. Mas a própria particularidade do fazer cinematográfico é uma arte, e é nessa técnica que se fundamenta a sintaxe cinematográfica, as regras que dão forma e sentido à imagem fílmica. Não custa lembrar que a palavra arte, na sua origem grega, significa técnica. Sendo assim temos uma situação inusitada nas artes visuais, pois se não existe arte, no sentido expressivo, sem técnica, é a vontade expressiva que governa a técnica, resultando em uma estética original. E esse processo evolui com o próprio desenvolvimento da técnica e seu domínio pelo homem, o controle de todas as suas possibilidades.

O caso do cinema é particularmente interessante justamente por se tratar de uma arte nova. E nessa sua curta trajetória presenciamos transformações marcantes em sua forma ao ponto de quase não reconhecê-lo. É como a mudança de uma criança recém-nascida para sua aparência aos dois anos de idade, depois aos sete, aos doze, aos quinze e assim por diante.

O cinema ainda encontra-se na sua adolescência. Já apresenta uma personalidade artística, possui uma linguagem própria, mas está em pleno desenvolvimento técnico e estético. Nós estamos testemunhando isso ao vivo.

A tecnologia digital representa para o cinema a passagem para a vida adulta.

A era do cinema mudo foi a época na qual o cinema se descobriu como tal, uma arte industrial original. Certamente a mais importante em termos de afirmação técnica, artística e mercadológica. Mas o impacto da introdução do som, da cor, das novas câmaras leves e silenciosas, lentes aprimoradas, filmes mais sensíveis, microfones precisos, telas anamórficas e sistemas de exibição eficientes, transformaram o cinema em um fenômeno de influência global e profunda.

Em seguida veio a televisão, levando o cinema para dentro das residências. As consequências foram dramáticas, seja na forma do filme quanto no modelo de negócio. Agora a tecnologia digital amplifica tudo isso introduzindo um fator revolucionário: a manipulação sem igual na estrutura da imagem.

Foto: Jeremy Yap

Ora, a imagem é a base das artes visuais. A partir do momento que se tem acesso aos seus ingredientes básicos, tudo é possível — inclusive sua destruição. É essa situação que estamos vivenciando. Certamente o cinema não vai atravessá-la sem passar por transformações definidoras. E é nesse processo que o cinema de animação tem um papel crucial a desempenhar na formulação de uma nova forma cinematográfica, afinal a manipulação sintática dos elementos estruturais da imagem é uma característica inerente à animação em virtude de sua natureza de imagem produzida artificialmente. A tecnologia digital simplesmente veio ao encontro e catapultou o poder de criação do cinema de animação. É nisso que reside toda sua força expressiva e capacidade artística que todos agora estão percebendo.

Antes da tecnologia digital o cinema de animação seguia meio que a reboque da evolução técnica do cinema — uma espécie de corpo estranho artesanal na periferia da grande indústria do cinema. Embora a câmara fotográfica tenha sido uma invenção resultante da parceria do mundo da arte com o mundo da ciência/tecnologia, a câmara com seu registro automático da imagem colocou para escanteio o processo de produção artificial da imagem tal como praticado na animação.

O advento da tecnologia digital recolocou o poder da criação visual novamente nas mãos do processo artificial da tradição da arte, só que agora oferecendo o recurso de automatização de tarefas repetitivas. Isso não somente liberou a animação para assumir inéditas responsabilidades criativas, como permitiu, com a automatização de tarefas, inaugurar vertentes expressivas inimagináveis, tais como técnicas iterativas e procedurais. É como se a animação tivesse tido acesso ao código genético da imagem em movimento.

Essa nova potencialidade expressiva outorgada à animação vem corresponder ao que espera da arte a sociedade do conhecimento que inaugura o século XXI.

Qual a sua visão a respeito do estudo acadêmico sobre o cinema de animação no Brasil?

Alberto Barbosa Lucena Jr. — O estudo acadêmico sobre qualquer assunto, no Brasil, é uma novidade. A primeira universidade brasileira foi criada há menos de um século — e para fins políticos. A USP surgiu na década de 1930. A pesquisa sistemática de pós-graduação só apareceu na década de 1960, quando o regime militar que governava o Brasil criou o sistema de universidades federais espalhadas pelos Estados. No campo da arte, e mais especificamente na área da animação, só agora começa a ter uma produção perceptível.

Nessa situação é natural que os estudos apresentem certa deficiência de iniciantes, especialmente de metodologia. Tenho notado que esses estudos fazem uma confusão (infelizmente frequente no campo da arte) entre discurso poético e discurso crítico, colocando em xeque o valor científico das investigações. Caso os orientadores não tomem cuidado e sejam rigorosos no tocante ao emprego da metodologia científica, vai se perder tempo e esforço com trabalhos sem efetivo valor para estabelecer uma base acadêmica segura para o desenvolvimento sustentável de uma indústria de animação brasileira.

Foto: Lloyd Dirks

Mas tenho visto alguns estudos de qualidade na pós-graduação, abordando questões variadas, desde fatores técnicos de produção quanto questões de natureza pedagógica, social, semiológica. Entretanto, chamo atenção para que se dê um destaque especial aos assuntos próprios da arte/animação, caso dos problemas técnicos e estéticos que envolvem sintaxe visual, indo desde a exploração de elementos formais básicos como a luz ou o movimento, passando pela estrutura narrativa em seu aspecto formal até chegar na caracterização de personagem.

Estamos apenas no começo da história acadêmica brasileira no que concerne ao cinema de animação. Tenho a expectativa de que veremos coisa boa por aí, mas para isso há de pavimentar bem esse início de trajetória.

Ainda sobre o Brasil, por vezes a animação nacional fica restrita aos curtas, por falta de patrocínio. Acha que é possível que o sucesso de O Menino e o Mundo, do Alê Abreu, possa mudar esse cenário?

Alberto Barbosa Lucena Jr. — O público brasileiro deseja, como qualquer outro, ter acesso a produtos de qualidade. Como qualquer outro, também gostaria de se ver nos filmes. Mas prefere um bom filme estrangeiro a uma produção inferior nacional. Nada de estranho nisso. Se o filme é bom e o tema e os personagens são universais, ótimo, até aumentaria a chance de emplacar filmes brasileiros no exterior. Mas para isso tem que possuir qualidade, tem que ter estilo para sobressair na selva da competição artística.

Muitos fatores colaboram para o sucesso de um filme, mas sem méritos cinematográficos não se vai muito longe. Também um sucesso merecido, mas isolado, não ajuda muito. Precisamos de produção sustentável, de uma cadeia industrial que interligue academia, estúdios e mercado. Sem isso o nosso cinema (e o cinema de animação) apenas vão praticar vôo de galinha, vôo de curta duração — como, aliás, sempre aconteceu. Sucesso isolado não funciona — só demonstra a disfuncionalidade do nosso sistema produtivo. Ou se investe no estabelecimento geral de uma organização acadêmica/produtiva/mercadológica, capaz de criar raiz, ou vamos continuar admirando somente o que vem de fora (ainda bem!).

Considero errada a política governamental de apoio à produção de filmes (Lei Rouanet). Do modo que é, só fomenta a mediocridade, a acomodação, a esperteza (falo em termos gerais). O sistema precisa estimular o mercado, não criar uma reserva de mercado, na qual os artistas não correm riscos. Isso não é natural, não é ecológico. É como manter o animal em cativeiro. Caso seja solto na natureza vai morrer de fome porque não consegue garantir a sobrevivência pelos seus próprios meios — e então vira comida de predador mais eficiente.

É justamente o caso do filme O menino e o mundo, cujo sucesso precisa ser devidamente relativizado. O filme não teve uma grande carreira nos cinemas — aqui ou lá fora (e não se pode dizer que faltou promoção interna). O grande público consumidor (a selva onde se tem que buscar a sobrevivência) não se entusiasmou. Não se verifica uma falação espontânea disseminada comentando positivamente. Em geral se diz que é um filme “legal”, e por essa expressão fica claro que não se tem o suficiente para uma existência artística orgânica, autônoma. Sem ter que me estender muito em análise, temos aí um filme bem feito dentro de sua proposta estilística, que soube tirar partido das novas tecnologias digitais, mas tentou surfar numa onda temática politicamente correta com um discurso convencional, proselitista, sem enfrentar os desafios que apresenta em seu enredo (ecologia, consumo, desumanidade), sem propor alternativas satisfatórias capazes de levar a audiência a reconfigurar suas expectativas sobre o assunto, fragilizando o processo de participação ativa do espectador que o faria vivenciar o drama dos personagens.

O próprio design abstrato conspira contra essa nossa necessidade de identificação com uma forma pregnante, atraente, icônica, típica da imagem cinematográfica. O design abstrato, muito estilizado, não permite a devida aproximação do público seja com a estória, seja com os personagens. Precisamos ser mais ambiciosos e encarar filmes com verdadeiros atores sintéticos em tramas atraentes, instigantes — ou não sobreviveremos soltos na natureza.

Fica claro que esse filme, nem qualquer outro, muda em nada a situação da animação brasileira. O problema não está no curta, no longa ou na falta de patrocínio. A questão é de mentalidade.

Acredita que as animações podem ser usadas como veículos de divulgação científica?

Sem dúvida! A natureza sintética da animação é própria para a explicação de qualquer coisa. Sejam objetos ou fenômenos abstratos, a animação conta com os mesmos recursos intelectuais da ciência para demonstração lógica e/ou empírica.

"A animação conta com os mesmos recursos intelectuais da ciência para demonstração lógica e/ou empírica"

Pense em como explicar a natureza da matéria, para o que seria preciso falar de estruturas atômicas como elétrons, estruturas que não são visíveis, e então se tem a noção precisa do poder único da animação em penetrar nas profundezas da mente inquiridora do ser humano. Pense em trazer à existência eventos históricos, espécies de animais, plantas e paisagens já extintas. Somente a animação pode trazê-los à vida e permitir mesmo que possamos compreender tais acontecimentos com mais clareza.

Os animadores perceberam isso já nos primórdios dessa arte. Winsor MCay realizou o filme Gertie, o dinossauro (1914), um grande sucesso que logo demonstrou esse potencial. MCay também fez o documentário animado sobre o bombardeio alemão que afundou o transatlântico Lusitânia durante a Primeira Guerra Mundial. Só a animação podia reconstituir tal evento dramático.

Os irmãos Fleischer, os animadores que inventaram a rotoscopia, também utilizaram essa técnica para fazer desenhos animados explicando o funcionamento das armas para os soldados que iam lutar na Primeira Guerra Mundial (mostrando mecanismos internos só possíveis de ver por meio de desenho).

Na verdade, tem sido através da animação que a arte tem retomado sua parceria frutuosa com a ciência, rompida pela arte modernista. A própria tecnologia de computação gráfica deve sua origem e desenvolvimento ao reatamento dessa relação entre arte e ciência.

Leia terceira parte da entrevista com o pesquisador.

*O professor Alberto Lucena Barbosa Jr. foi entrevistado como parte de uma matéria sobre animação, para o dossiê 183 da revista ComCiência. A publicação digital faz parte do Labjor (Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo) da Unicamp.

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