Resenha de MATERIAL GIRLS: why reality matters for feminism

A Letícia G.
10 min readFeb 3, 2023

--

Um tipo específico de ativismo social surgiu nos países ocidentais nas últimas décadas. Tem conquistado espaço em velocidade surpreendente através de influência política e representação midiática, além de contar com militantes e aliados em vigilha contra críticas, especialmente nas redes sociais. Estou me referindo ao chamado “transativismo” tal como disseminado por influentes organizações dos direitos da população LGBT+. Segundo tais grupos, existe um fenômeno sistêmico de ódio e discriminação contra pessoas trans — a “transfobia” — a ser combatido por todos aqueles que defendem a justiça e a diversidade.

Porém, “transfobia”, segundo nos ensinam, é tanto agir de forma discriminatória ou violenta contra pessoas trans quanto negar, por exemplo, que uma pessoa do sexo masculino possa ser literal e simultaneamente equivalente a uma pessoa do sexo feminino. É questionar os recentes tratamentos médicos invasivos, muitas vezes cirúrgicos, em menores (mesmo que o impacto na saúde seja grave e irreversível); é se incomodar com a presença do sexo masculino em prisões femininas (mesmo que casos de estupro já tenham sido relatados); é questionar a presença do sexo masculino no esporte feminino (mesmo diante das evidentes vantagens biológicas). É exatamente sobre este cenário que trata o livro Material Girls: why reality matter for feminism, lançado pela filósofa inglesa Kathleen Stock em 2021, resultando no fim de sua carreira de 20 anos como pesquisadora e professora na Universidade de Sussex.

Material Girls: um manifesto em prol da realidade

Enquanto filósofa analítica, conceitos são centrais à via de análise de Stock, mas são também ferramentas imprescindíveis para que nós, seres humanos, possamos organizar o mundo à nossa volta. Além disso, conceitos são coletivos; não podem meramente ser adotados ou descartados de acordo com critérios de um grupo específico. Com isso em mente, de forma didática e metódica, a autora retorna a momentos chave do pensamento feminista — desde Beauvoir (anos 40) até o momento da escrita — , na intenção de dispor temporalmente cada etapa do desenvolvimento intelectual que desembocou no conceito da “identidade de gênero”, demonstrando a tentativa paralela de descarte do sexo biológico como conceito útil e concreto. Material Girls é uma análise ampla e rigorosa das origens, implicações e consequências deste fenômeno.

Ao passo que o discurso transativista advoga pela identidade de gênero no lugar do sexo, grande parte dos grupos feministas também o fazem. Na prática, o feminismo de terceira onda, aliado ao transativismo, tem contribuído para que papeis e estereótipos de feminilidade sejam não apenas abraçados, mas agora entendidos como empoderadores. “Mulheridade” é aquele sentimento individual que pode ser encarnado e afirmado por “todes”. Dado este cenário, Stock não apenas demonstra que as mulheres (sexo feminino) precisam de um movimento que as centralize, mas também evidencia por quê não podemos prescindir dos conceitos mulher e homem como, respectivamente, “fêmea humana adulta” e “macho humano adulto” — e tampouco podemos classificá-los como indícios de ódio ou fobia, uma vez que se referem à existência concreta de seres na realidade empírica (isto é, no mundo tal como o percebemos com nossos sentidos).

Seja por poder de influência e patrocínio (como no caso das organizações transativistas), seja pela vontade de acolhimento genuíno (como entre a maioria de seus apoiadores), o modo de pensar que subsitui a realidade do sexo em prol das identidades precisa ser avaliado em suas consequências. Stock, portanto, nos oferece este guia bastante elucidativo sobre como tudo se estruturou, quem foram os responsáveis, com quais interesses e às custas de quem. Está interessada em trazer lucidez quanto à guerra “sexo versus gênero” não apenas a feministas, mas a todos dispostos a encarar a realidade de forma crítica e a procurar soluções racionais para problemas coletivos. E, no caminho, não está disposta a manter o silêncio diante dos atos irresponsáveis e autoritários do transativismo sobre as vidas de crianças e mulheres.

Alguns pontos chave do livro:

O sexo biológico e sua relevância ofensiva

Considerando que os propositores da identidade de gênero desejam anular todas as menções ao sexo biológico em prol do referencial identitário, a autora entende necessário examinar a noção cada vez menos aceita de que existem dois sexos identificáveis entre os seres humanos. Para isso, ela apresenta três distintos modelos de investigação, cada um com seu critério avaliativo. O primeiro deles leva em conta gametas, o segundo, cromossomos e o terceiro, características primárias e secundárias. Mas, se existem argumentos observáveis e científicos para validar a existência dos sexos, resta validar a necessidade de mantê-los relevantes no universo social. Seriam ainda pertinentes em algum âmbito? Não poderíamos apenas levar em conta identidades? Aqueles que já estão imersos no debate evocado aqui sabem que existem ao menos três esferas em que o sexo importa de modo grave: na medicina, no esporte e na orientação sexual. São estes os examinados pela autora em Material Girls.

Entrando brevemente na discussão, vale lembrar que a divisão sexual é um critério útil quando se trata de compreender como seres humanos funcionam, condição para que possamos agir sobre suas necessidades. Na esfera da saúde, por exemplo, os sexos possuem diferenças inegáveis — na susceptibilidade a doenças, na forma como estas agem sobre os corpos e até mesmo na forma como tratamentos precisam ser conduzidos. Contudo, referências à biologia têm sido, mesmo em contextos médicos, vistas como “desumanizantes” e “genitalistas”. A palavra “mulher” tem sido evitada e substituída por “mestruadora”, “portadora de útero”, “portadora de buraco frontal” e similares. Evidenciando um dos aspectos problemáticos dessas substituições, Stock cita a ex-diretora da maior clínica de abortos no Reino Unido, que reporta a pressão dos ativistas para tornal o local includente para “todes”: “Muitos pacientes lutam com o inglês e, portanto, nossa prioridade é tornar a comunicação o mais clara e simples possível — a linguagem neutra em termos de gênero nem sempre ajuda nisso” (apud STOCK, 2021, p. 57, tradução minha).

Inscritas interna e externamente, as diferenças sexuais suscitam características observáveis — ainda que nem todo homem ou toda mulher possa ser tipicamente associado(a) a seu sexo com base nestas características. O argumento comum de que “pessoas trans sempre usaram banheiros de acordo com suas identidades de gênero” conta com a passabilidade dos indivíduos como membros do outro sexo, por exemplo. No entanto, sem interferências cosméticas e/ou médicas, a maioria das pessoas sugere fisicamente de que sexo faz parte. O binarismo sexual é um fato natural nos seres humanos, assim como em todos os demais mamíferos. Stock deixa bastante evidente os riscos da negação deste fato sobre a realidade, atingindo não apenas os atores da negação, mas aqueles que são conduzidos a ela, convencidos de que o reconhecimento da biologia seja equivalente à propagação de ódio.

A institucionalização do sentimento interior

Neste ponto, já está claro que, caso a proposta transativista seja acatada em massa e o sexo substituído pela identidade de gênero em todas as instâncias, muito do que compreendemos sobre o funcionamento do universo social será comprometido. Em outras palavras, a partir do momento definitivo em que o conceito socialmente aceito de MULHER deixar de ser “fêmea da espécie humana” e passar a ser “pessoa com identidade de gênero feminina”, a divisão dos espaços, além de toda e qualquer norma baseada no sexo, estará imediatamente reconfigurada. Ainda assim, uma pessoa que repete no Twitter, por exemplo, o slogan transativista mais popular do momento — “mulheres trans são mulheres” — não parece completamente consciente das implicações dessa afirmação.

Ao traçar a história da “identidade de gênero”, Stock mostra como ela é usualmente entendida hoje: uma verdade interior inexorável sobre o indivíduo do qual somente ele pode ter consciência. Contrariando até mesmo a teoria queer, para o modelo da identidade, o gênero deixa de ser performance e passa a ser fato. Pessoas trans, nessa lógica, são aquelas que possuem identidades de gênero “desalinhadas”, isto é, o gênero a que sabem corresponder não é equivalente ao sexo em que nasceram. Inúmeras questões brotam dessa definição, por exemplo: o que significa de fato “sentir-se mulher/homem/outra coisa”? pessoas “cis” seriam então as conformadas com o gênero imposto ao nascimento? se se trata de uma verdade interior sem conexão com o corpo, porque se modifica o corpo em prol de um ideal físico? como pode “gênero” ser, ao mesmo tempo, uma construção social impositiva e um traço subjetivo?

Apesar das controvérsias, as organizações ativistas mais proeminentes — Stonewall, Mermaids, the Scottish Trans Alliance, Gendered Intelligence, Press for Change e All About Trans — alavancam suas demandas através “de recompensas (divulgação da marca, prêmios, aprovação pública) ou punição (acusações de transfobia, desaprovação pública)” (p. 133) Por meio de lobby, portanto, alcançam mais e mais espaço em todas as esferas, públicas e privadas, barrando o debate e desviando as críticas. De fato, desde 2017, seguindo as orientações transativistas, países como EUA, Chile, Dinamarca, Irlanda, Canadá e Argentina estabeleceram a autoidentificação como único critério para que indivíduos sejam legalmente reconhecidos como o sexo desejado, retirando a necessidade de laudos médicos ou quaisquer evidências de transição. Isso significa que, no caso de se declarar mulher, um portador de pênis passa a ter acesso a espaços e direitos femininos.

Para que servem espaços separados por sexo?

Como salienta Kathleen Stock, não é possível entrar na discussão sobre separação de espaços sem lembrar que medidas de segurança não existem porque todos os membros de determinado grupo representam risco, mas porque a proteção preventiva precisa generalizar e considerar os piores cenários. A criação de banheiros femininos, por exemplo, não é pautada na ideia de que todo e qualquer homem seja um perigo a mulheres em espaços íntimos, e sim na ideia de que espaços sem separação representam mais riscos. Era bastante compreensível a todos até que o debate tocou no problema da autoidentificação.

A simples menção a espaços para o sexo feminino têm sido hoje motivo de acusações de transfobia. A extinção destes espaços — abrigos para mulheres em situação de rua, prisões femininas, centros de reabilitação para mulheres, banheiros e vestiários exclusivamente femininos, etc. — representa a diminuição da segurança das mulheres contra violência e assédio, e Stock vai a fundo em estatísticas para demonstrar o fato. Fica evidente também que, enquanto a grande maioria dos responsáveis por assédio e violência contra pessoas do sexo feminino forem pessoas do sexo masculino, as medidas que consideram o sexo não são fúteis. Existe todo um cenário social demonstrando a utilidade estratégica destes espaços para a segurança feminina.

Como então proteger o sexo masculino de si mesmo? Ou seja, evitar que homens tenham como vítimas outros homens quando estes não estão em conformidade com as normas de comportamento do sexo masculino? É preciso deixar de pedir esta resposta às mulheres como condição para que elas “mereçam” proteções contra essa mesma violência…

Manipulação de dados e informações falsas

Segundo a diretora de psicologia do Serviço de Desenvolvimento da Identidade de Gênero (GIDS), do Reino Unido, diversos transtornos mentais estão comumente associados a jovens autoidentificados como trans ou não binários, como a depressão, a ansiedade e a automutilação. Os índices de crianças autistas que se dizem do sexo oposto também acusam a necessidade de investigação. Ainda assim, sem nenhuma evidência a fundamentar a ação, grupos transativistas apresentam cartilhas que incentivam pais a interpretarem os comportamentos fora da norma em seus filhos e filhas como sinais de que ele/a está “expressando quem realmente é”. É dito que o ambiente familiar deve tratar a “transgeneridade” como fato inquestionável, pois o contrário é incentivar o suicídio. Enquanto isso, fazem campanha pela alteração permanente de corpos infantis e lutam para favorecer o acesso de crianças a bloqueadores de puberdade, terapia hormonal e cirurgias. Impedindo a discussão, os ativistas acusam de transfobia psicólogos, psiquiatras e pais atentos no caso de qualquer tentativa de avaliação da coincidência, nos jovens, entre a “identidade” trans, transtornos mentais ou contágio social.

O discurso sobre a violência contra a população trans também chama a atenção de Stock por sua falta de honestidade. O transativismo insiste na noção genérica de “transfobia” como a causa da morte de pessoas transidentificadas todos os dias. No Reino Unido, onde estão localizadas as mais fortes organizações pelos direitos trans, a média de assassinatos deste grupo em uma década foi de um ao ano, o que não impede a narrativa de que são o grupo mais vulnerável.

Ainda, costumam defender a prostituição como uma profissão a ser reconhecida — inclusive a ANTRA, no Brasil. Curiosamente, segundo seu próprio dossiê de 2021, 109 das 140 pessoas trans mortas no Brasil no mesmo ano estavam em situação de prostituição. É sabido que toda e qualquer pessoa conectada a essa atividade, trans ou não, está diante de altos riscos de violência por parte de clientes, colegas de trabalho, policiais e outros, especialmente na América Latina. Ainda, um relatório sobre a violência contra pessoas no comércio sexual detalha como, para muitas, “a escolha pelo trabalho sexual é reflexo de opções de subsistência limitadas e de recursos econômicos limitados”, especialmente quando a pessoa trans é um migrante econômico. Como observa a estudiosa trans Talia Mae Bettcher: “Nem todos os atos de violência contra pessoas trans são necessariamente de natureza transfóbica. Uma mulher trans pode ser alvo não devido a sua condição trans, mas simplesmente por ser vista como uma profissional do sexo” (apud STOCK, tradução minha). A presença desproporcional de mulheres trans negras e latinas no comércio sexual dos EUA, por exemplo, também deixa de ser considerada em prol do rótulo mais abrangente da “transfobia”.

Não há dúvida de que pessoas em incorformidade com estereótipos de gênero estão suscetíveis aintolerância e violência específicas, contra as quais precisam de proteção. Ao mesmo tempo, pessoas trans não são vítimas exclusivas aqui, já que também são alvos homens estereotipicamente femininos e mulheres estereotipicamente masculinas. O rótulo de transfobia é insuficiente para explicar a violência contra a população inconformista de gênero. O fato de que nem toda pessoa trans morre por algo relacionado à intolerância por sua condição trans tambén não impede que o transativismo de manipular a causa das mortes para atingir seus objetivos políticos.

Debate mais que necessário

De um ponto de vista feminista, confrontar a teoria da identidade de gênero ressalta a necessidade de um sujeito coeso para o feminismo, seja qual for a vertente. A terceira onda, fortemente influenciada pelo pensamento pós-modernista, tende a ver o sexo como construção social e a repensar o significado de mulher. Por esse motivo, muitas feministas aceitaram de braços abertos a teoria da identidade de gênero e têm falhado em questionar seus efeitos. A autocrítica do feminismo é urgente e deve recuperar o protagonismo das mulheres — fêmeas humanas adultas, uma categoria gigantesca e extremamente diversa, mas unida pelo agrupamento do sexo e por uma série de vivências e circunstâncias sociais em comum, as quais justificam um movimento interessado em centralizá-las.

Ler Material Girls como um ataque a indivíduos ou expressões identitárias é perder o ponto. Na verdade, Stock evidencia aquilo que a maior parte da esquerda nega: o transativismo moderno tem sido nocivo inclusive para as pessoas a quem pretende proteger, uma vez que as usa como massa de manobra para fins políticos. Existem interesses específicos impulsionando os posicionamento dos grupos de lobby trans, dispostos a manipular gravemente a realidade e a punir quem questiona suas narrativas. Ao expor objetivamente o problema, Material Girls empreende um trabalho feminista útil a qualquer uma que deseja genuinamente entendê-lo e se posicionar sobre ele.

--

--

A Letícia G.

Publicação de textos e traduções feministas sob o ponto de vista crítico de gênero