É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo — Mark Fisher

Kelvin
15 min readApr 30, 2020

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(Tradução do 1º capítulo)

Numa das cenas chave do Children of Men (2006) de Alfonso Cuarón, o personagem de Clive Owen, Theo, visita um amigo na estação de energia Battersea, que é agora uma combinação de prédio do governo e coleção privada. Tesouros culturais — o Davi de Michelangelo, o Guernica de Picasso, o porco inflável do Pink Floyd — são preservados num edifício que é ele próprio um artefato reformado. Esse é nosso único vislumbre das vidas da elite, encastelados contra os efeitos de uma catástrofe que causou esterilidade em massa: nenhuma criança nasceu em uma geração. Theo faz a pergunta, “como pode isso tudo importar se não haverá ninguém para ver?” O álibi não pode mais ser gerações futuras, já que não haverá nenhuma. E resposta é niilismo hedonista: “Tento não pensar sobre isso”.

O que é único sobre a distopia em Children of Men é que é específica ao capitalismo tardio. Esse não é o familiar cenário totalitário trotado rotineiramente em distopias cinemáticas (ver, por exemplo, o V de Vingança [2005] de James McTeigue). Na novela de P. D. James sobre a qual o filme se baseia, a democracia é suspensa e o país é governado por autoproclamado Guardião, mas, sabiamente, o filme minimiza tudo isso. Por tudo que sabemos, as medidas autoritárias que estão em todo lugar poderiam ser implementadas dentro de uma estrutura política que permanece, nominalmente, democrática. A Guerra ao terror nos preparou para tal desenvolvimento: a normalização da crise produz uma situação em que repelir as medidas trazidas para lidar com uma emergência se torna inimaginável (quando que a guerra acabará?).

Assistindo Children of Men, somos inevitavelmente lembrados da frase atribuída a Fredric Jameson e Slavoj Zizek, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. O slogan captura precisamente o que quero dizer por “realismo capitalista”: a difundida sensação de que não apenas o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, mas também de que agora é impossível até mesmo imaginar uma alternativa coerente a ele. Antigamente, filmes e novelas distópicos eram exercícios em tais atos de imaginação — os desastres que mostravam agindo como pretextos narrativos para a emergência de novos meios de vida. Não em Children of Men. O mundo que ele projeta parece mais como uma extrapolação ou exacerbação do nosso do que uma alternativa a ele. Nesse mundo, como no nosso, ultra-autoritarismo e o Capital não são de maneira alguma incompatíveis: campos de concentração e franquias de café coexistem. Em Children of Men, o espaço público é abandonado, entregue ao lixo não coletado e animais à deriva (uma cena especialmente ressonante ocorre dentro de uma escola abandonada, através da qual um veado corre). Neoliberais, os realistas capitalistas por excelência, celebravam a destruição do espaço público mas, contrário às suas esperanças oficiais, não há nenhum definhamento do estado em Children of Men, apenas um retorno do estado às suas funções militares e de polícia (eu digo esperanças “oficiais” já que o neoliberalismo sub-repticiamente confia no estado mesmo que o esfole ideologicamente. Isso foi tornado espetacularmente claro durante a crise bancária de 2008, quando, à convite de ideólogos neoliberais, o estado correu para salvar o sistema bancário).

A catástrofe em Children of Men não está nem esperando na estrada à frente, nem já aconteceu. Em vez disso, está sendo vivida. Não há nenhum momento pontual de desastre; o mundo não termina com um estampido, ele vacila, desenreda-se, gradualmente decai. O causou a catástrofe acontecer, vai saber; sua causa há muito repousa no passado, tão absolutamente desamarrada do presente como se fosse um capricho de um ser maligno: um milagre negativo, uma maledição que nenhuma penitência pode melhorar. Uma praga como essa pode apenas ser resolvida por uma intervenção que não pode ser melhor antecipada do que o próprio início da maldição. Ação não faz sentido; apenas esperança sem fundamento faz sentido. Superstição e religião, os primeiros refúgios dos desamparados, proliferam.

Mas e a catástrofe em si mesma? É evidente que o tema da esterilidade deve ser lido metaforicamente, como o deslocamento de outro tipo de ansiedade. Quero argumentar que essa ansiedade clama por ser lida em termos culturais, e a questão que o filme coloca é: até quando uma cultura pode persistir sem o novo? O que acontece se os jovens não são mais capazes de produzir surpresas?

Children of Men conecta-se com a suspeita de que o fim já chegou, o pensamento de que pode muito bem ser o caso de que o futuro reserva apenas repetição e re-permutação. Será que não há mais rupturas, nenhum “choque do novo” ainda para chegar? Tais ansiedades tendem a resultar numa oscilação bipolar: a esperança “messiânica fraca” de que deve ainda haver algo novo a caminho desliza na morosa convicção de que nada de novo pode sequer ocorrer. O foco munda da Próxima Grande Coisa para a última coisa — há quanto tempo atrás aconteceu e o quão grande foi?

T. S. Eliot paira no plano de fundo de Children of Men, que, afinal, herda o tema da esterilidade de The Waste Land. O epígrafo final do filme, “shantih shantih shantih” tem mais a ver com as partes fragmentárias de Eliot do que a paz dos Upanixades. Talvez seja possível ver as preocupações de outro Eliot — o Eliot de “Tradition and the Individual Talent” — cifrado em Children of Men. Foi nesse ensaio que Eliot, antecipando Harold Bloom, descreveu a relação recíproca entre o canônico e o novo. O novo se define em resposta ao que já está estabelecido; ao mesmo tempo, o estabelecido tem que se reconfigurar em resposta ao novo. O argumento de Eliot era que a exaustão do futuro nem sequer nos deixa com o passado. A tradição não serve para nada quando não é mais contestada e modificada. Uma cultura que meramente é preservada sequer é uma cultura. O destino de Guernica de Picasso no filme — uma vez um uivo de angústia e fúria contra atrocidades fascistas, agora um quadro de parede — é exemplar. Como o espaço de exposição de Battersea no filme, à pintura é concedida status icônico apenas quando privada de qualquer função ou contexto possíveis. Nenhum objeto cultural pode manter seu poder quando não há mais olhos para vê-lo.

Não precisamos esperar pelo futuro-próximo de Children of Men chegar para ver essa transformação da cultura em peças de museu. O poder do realismo capitalista deriva em parte do modo como o capitalismo subsume e consome toda história anterior: um efeito de seu “sistema de equivalência” que pode conferir a todos os objetos, sejam eles iconografia religiosa, pornografia, ou o Das Kapital, um valor monetário. Ande pelo Museu Britânico, onde você vê objetos arrancados de seus mundos de vida e montados como se no deck de uma nave do Predador, e você tem um a imagem poderosa desse processos em ação. Durante a conversão de práticas e rituais em meros objetos estéticos, as crenças de culturas anteriores são objetivamente ironizadas, transformadas em artefatos. O realismo capitalista portanto não é um tipo particular de realismo; é mais como o realismo em si mesmo. Como os próprios Marx e Engels observaram no Manifesto Comunista,

[O Capital] afogou os mais divinos êxtases do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo burguês, na água gélida da calculação egoísta. Ele transformou valor pessoal em valor de troca, e no lugar de inúmeras inviáveis liberdades seguras, ele ergueu aquela única, injusta liberdade — Livre Comércio. Em uma palavra, pela exploração, velada por ilusões políticas e religiosas, ele substituiu por exploração brutal direta, descarada e nua.

Capitalismo é o que sobra quando crenças colapsam ao nível de elaboração simbólica ou ritual, e tudo que resta é o consumidor-espectador, arrastando-se através das ruínas e relíquias.

Ainda assim essa virada da crença à estética, de participação à espectadorização, é considerada como uma das virtudes do realismo capitalista. Ao afirmar, como Badiou coloca, nos ter “livrado das ‘abstrações fatais’ inspiradas pelas ‘ideologias do passado’”, o capitalismo realista se apresenta como um escudo nos protegendo dos perigos criados pela própria crença. A atitude de distância irônica própria do capitalismo pós-moderno é para, supostamente, nos imunizar contra as seduções do fanatismo. Abaixar nossas expectativas, nos dizem, é um pego preço a pagar por sermos protegidos de terror e totalitarismo. “Vivemos em uma contradição”, Badiou observou:

. . .um estado brutal das coisas, profundamente desigual — onde todas existência é avaliada em termos de dinheiro apenas — é apresentada a nós como ideal. Para justificar seu conservadorismo, os partidários da ordem estabelecida não podem realmente chama-la de ideal ou maravilhosa. Em vez disso, eles decidiram dizer que todo o resto é horrível. Claro, eles dizem, podemos não viver numa condição de perfeito Bem. Mas temos sorte de não viver numa condição de Mal. Nossa democracia não é perfeita. Mas é melhor que as sanguinárias ditaduras. O capitalismo é injusto. Mas não é como o criminoso stalinismo. Deixamos milhões de africanos morrerem de AIDS, mas não fazemos declarações racistas nacionalistas como Milosevic. Matamos iraquianos com nossos aviões, mas não cortamos suas gargantas com machetes como fazem em Ruanda, etc.

O “realismo” aqui é análogo à perspectiva deflacionária de um depressivo que acredita que qualquer estado positivo, qualquer esperança, é uma ilusão perigosa.

Em sua descrição do capitalismo, certamente a mais impressionante desde Marx, Deleuze & Guattarri descrevem o capitalismo como um tipo de potencialidade sombria que assombrava todos os sistemas sociais prévios. O capital, eles argumentam, é a “Coisa inominável”, a abominação, contra a qual sociedades primitivas e feudais “se protegiam antecipadamente”. Quando finalmente chega, o capitalismo traz consigo uma massiva dessacralização da cultura. É um sistema que não é mais governado por nenhuma Lei transcendente; ao contrário, ele desmantela todos esses tipos de códigos, apenas para reinstalá-los numa base ad hoc[2]. Os limites do capitalismo não estão fixados por decreto, mas definidos (e redefinidos) pragmaticamente e improvisadamente. Isso faz o capitalismo muito parecido com a Coisa do filme de mesmo nome de John Carpenter: uma entidade monstruosa e infinitamente plástica, capaz de metabolizar e absorver qualquer coisa com que entre em contato. O capital, Deleuze e Guattarri dizem, é uma “pintura multicolorida de tudo que já foi”; um híbrido estranho do ultra-moderno com o arcaico. Nos anos seguintes após a Deleuze & Guattarri escreverem Capitalismo e Esquizofrenia, parecia como se os impulsos desterritorializantes do capitalismo estivessem confinados às finanças, deixando a cultura presidida por forças de reterritorialização.

Esse mal-estar, esse sentimento de que não há nada novo, em si mesmo não é nada novo é claro. Nos encontramos no notório “fim da história” trompeteado por Francis Fukuyama após a queda do muro de Berlim. A tese de Fukuyama de que a história atingira seu clímax com o capitalismo liberal foi amplamente criticada, mas é aceita, até mesmo pressuposta, ao nível do inconsciente cultural. Deve-se lembrar, entretanto, que mesmo quando Fukuyama a promovia, a ideia de que a história chegara a uma “praia terminal” não era meramente triunfalista. Fukuyama advertiu que essa cidade radiante seria assombrada, mas ele pensava que esses espectros seriam nietzscheanos em vez de marxistas. Algumas das páginas mais prescientes de Nietzsche são aquelas em que ele descreve a “supersaturação de uma época com a história”. “Ela leva uma era para um perigoso humor de ironia em relação a si mesma”, ele escreve em Meditações Prematuras, “e subsequentemente para o ainda mais mais perigoso humor do cinismo”, em que um “apontar de dedos cosmopolitano”, um espectatorialismo descompromissado, substitui engajamento e envolvimento. Isso é a condição do Último Homem de Nietzsche, que já viu tudo, mas é decadentemente enfraquecido precisamente por esse excesso de (auto) consciência.

A posição de Fukuyama é de alguns modos uma imagem espelho da de Fredric Jameson. Jameson famosamente declarou que o pós-modernismo é a “lógica cultural do capitalismo tardio”. Ele argumentava que o fracasso do futuro era constitutivo de uma cena cultural pós-moderna em que, como ele corretamente profetizou, se tornaria dominada por pastiche e revivalismo. Dado que Jameson fez um argumento convincente para a relação entre cultura pós-moderna e certas tendências no capitalismo de consumo (ou pós-fordista), pode parecer que não há nenhuma necessidade para o conceito de realismo capitalista. Em alguns sentidos, isso é verdade. O que estou chamando de realismo capitalista pode ser subsumido sob a rubrica de pós-modernismo conforme teorizado por Jameson. Ainda assim, apesar do trabalho de clarificação heróico de Jameson, o pós-modernismo permanece um termo amplamente contestado, seus significados, apropriadamente mas inutilmente, incertos e múltiplos. Mas mais importante, gostaria de argumentar que alguns dos processos que Jameson descreveu agora se tornaram tão agravados e crônicos que eles tiveram uma mudança de tipo.

Em última instância, há três razões pelas quais prefiro o termo realismo capitalista à pós-modernismo. Nos anos 80, quando Jameson pela primeira vez promovera sua tese sobre pós-modernismo, ainda haviam, em nome pelo menos, alternativas políticas ao capitalismo. O que estamos lidando agora, entretanto, é um sentido de exaustão muito mais profundo e pervasivo, de esterilidade cultural e política. Nos anos 80, “Socialismo Realmente Existente” ainda persistia, apesar de em sua fase final de colapso. Na Grã-Bretanha, as linhas de falha do antagonismo de classe foram plenamente expostas num evento como a Greve dos Mineradores de 1984–1985, e a derrota dos mineradores foi um momento importante no desenvolvimento do realismo capitalista, pelo menos tão significativo em sua dimensão simbólica como em seus efeitos práticos. O fechamento dos poços de minas foi defendido precisamente em razões de que mantê-los abertos não era “economicamente realista”, e os minerados foram escalados como os últimos atores de um romance proletário condenado. Os anos 80 foram um período quando o realismo capitalista foi lutado e estabelecido, quando a doutrina de Margaret Thatcher de que “não há alternativa” — um slogan tão sucinto do realismo capitalista como você poderia imaginar — se tornou uma brutal profecia auto-realizadora[3].

Em segundo lugar, o pós-modernismo envolvia uma certa relação com o modernismo. O trabalho de Jameson sobre pós-modernismo começou com uma interrogação da ideia, adorada por Adorno por exemplo, que o modernismo possuía potenciais revolucionários em virtude de suas inovações formais por si só. Em vez disso o que Jameson viu foi a incorporação de temas modernos na cultural popular (por exemplo, de repente, técnicas surrealistas iriam aparecer na propaganda). Ao mesmo tempo em que formas modernistas era absorvidas e transformadas em mercadoria, os credos do modernismo — sua suposta crença no elitismo e seu modelo de cultura monológico, de cima para baixo — eram desafiados e rejeitados em nome de “diferença”, “diversidade”, e “multiplicidade”. O realismo capitalista não mais encena esse tipo de confrontação com o modernismo. Pelo contrário, ele toma como certa a derrota do modernismo: o modernismo é algo que pode periodicamente retornar, mas apenas como um estilo estético congelado, nunca como um ideal para se viver.

Em terceiro lugar, toda uma geração se passou desde o colapso do muro de Berlim. Nos anos 60 e 70, o capitalismo tinha que encarar o problema de como conter e absorver energias de fora. Agora, ele tem o problema oposto; tendo com sucesso incorporado a externalidade, como pode funcionar sem um fora que possa colonizar e apropriar? Para a maioria das pessoas abaixo de vinte na Europa e na América do Norte, a falta de alternativas ao capitalismo nem sequer é mais uma questão. O capitalismo placidamente ocupa os horizontes do pensável. Jameson costumava descrever com horror sobre as maneiras pelas quais o capitalismo havia se infiltrado no próprio inconsciente; agora, o fato de que o capitalismo colonizou a vida onírica da população é já é tão tomado como certo que nem é mais digno de comentário. Seria perigoso e equivocado imaginar que o passado próximo era um estado pré-lapsariano[4] repleto de potenciais políticos, então é bom relembrar o papel que a comodificação [commodification — transformar em mercadoria] teve na produção de cultura através do século XX. Ainda assim o conflito entre detournement e recuperação, entre subversão e incorporação, parece ter se tornado um jogo obsoleto. O que estamos lidando agora não é a incorporação de materiais que anteriormente pareciam possuir potenciais subversivos, mas em vez disso, sua pré-corporação: a formatação e moldagem preventiva dos desejos, aspirações e esperanças pela cultura capitalista. Testemunhe, por exemplo, o estabelecimento de zonas culturais fixas “alternativas” ou “independentes”, que incessantemente repetem gestos antigos de rebelião e contestação como se pela primeira vez. “Alternativo” e “independente” não designam algo fora da cultura mainstream; em vez disso, eles são estilos, de fato os estilos dominantes, dentro do mainstream. Ninguém encarnou (e esteve em tanto conflito com) esse impasse mais do que Kurt Cobain e Nirvana. Em sua terrível exaustão e raiva sem objeto, Cobain parecia ter dado uma voz cansada ao desânimo da geração que viera após a história, cujos movimentos eram todos antecipados, monitorados, comprados e vendidos antes mesmo de terem acontecido. Cobain sabia que ele era apenas outra peça do espetáculo, que nada roda melhor na MTV que um protesto contra a MTV; sabia que cada um de seus movimentos era um clichê escrito antecipadamente, sabia que até mesmo perceber isso era um clichê. O impasse que paralisou Cobain é precisamente o que Jameson descreveu: como a cultura pós-moderna em geral, Cobain se encontrou “num mundo em que a inovação estilística não é mais possível, onde tudo que resta é imitar estilos mortos, e falar através das máscaras e com as vozes dos estilos no museu imaginário”. Aqui, mesmo o sucesso significava fracasso, já que ter sucesso apenas significaria que você seria a carne nova que o sistema poderia comer. Mas a extrema angústia existencial do Nirvana e Cobain pertencem a um momento já antigo; o que os sucedeu foi um rock-pastiche que reproduzia as formas do passado sem ansiedade.

A morte de Cobain confirmava a derrota e incorporação das ambições utópicas e prometéicas do rock. Quando ele morreu, o rock já estava sendo eclipsado pelo hip hop, cujo sucesso global pressupunha exatamente o tipo de pré-corporação pelo capital que aludi acima. Para muito do hip hop, qualquer esperança “ingênua” de que a cultura da juventude pudesse mudar qualquer coisa foi substituída pela pragmática adoção de uma brutalmente redutiva versão da “realidade”. “No hip hop”, Simon Reynolds apontou num ensaio em 1996 na revista The Wire,

. . .“real” tem dois sentidos. Primeiro, ele significa música autêntica, sem compromissos, que recusa vender-se para a indústria da música e amaciar sua mensagem para atingir maior público. “Real” também significa que a música reflete uma “realidade” constituída por instabilidade econômica do capitalismo tardio, racismo institucionalizado, e aumento da monitoração e violência policial da polícia para com a juventude. “Real” significa a morte do social: significa corporações que respondem a aumentos de lucros não aumentando salários ou melhorando benefícios mas fazendo redução de pessoal (despedindo força de trabalho permanente de modo a criar um campo de empregos flutuante de meio-período e freelancers sem benefícios ou seguridade social).

Em última instância, foi precisamente a performance do hip hop da primeira versão do real — “o que não se vende” — que permitiu sua fácil absorção dentro da segunda, a realidade de instabilidade econômica do capitalismo tardio, onde tal autenticidade se provou altamente vendável. O Gangster rap nem meramente reflete condições sociais pré-existentes, como muitos de seus defensores afirmam, nem simplesmente causa essas condições, como seus críticos alegam — em vez disso o circuito onde hip hop e o campo social do capitalismo tardio sem alimentam um do outro é um dos meios pelos quais o realismo capitalista se transforma num tipo de mito anti-mítico. A afinidade do hip hop e filmes de gângster como Scarface, os filmes d’O Poderoso Chefão, Reservoir Dogs, Goodfellas,e Pulp Fiction emerge de sua premissa comum de ter desmascarado o mundo de ilusões sentimentais e tê-lo visto “pelo que é realmente”: uma guerra hobbesiana de todos contra todos, um sistema de exploração perpétua e criminalidade generalizada. No hip hop, Reynold escreve, “To ‘get real’ é confrontar um estado-de-natureza onde cão devora cão, onde você é ou um vencedor ou um perdedor, e onde a maioria será de perdedores”.

A mesma visão de mundo neo-noir pode ser encontrada nas histórias em quadrinhos de Frank Miller e nas novelas de James Ellroy. Há um tipo de machismo e desmitologização nos trabalhos de Miller e Ellroy. Eles posam como inflexíveis observadores que se recusam a embelezar o mundo para que possa ser moldado dentro dos binários éticos supostamente simples do quadrinho de super-herói e da novela policial tradicional. O “realismo” aqui é de certo modo sublinhado, em vez de minado, por suas fixações no lugubremente mercenário — mesmo que a insistência hiperbólica em crueldade, traição e selvageria em ambos os autores rapidamente se torne pantomímica. “Em sua escuridão abissal”, Mike Davis escreveu de Ellroy em 1992, “não há luz que sobre para lançar sombras e o mal se torna uma banalidade forense. O resultado é sentido muito como a textura moral atual da era Reagan-Bush: uma supersaturação de corrupção que já fracassa em ultrajar ou mesmo interessar”. Ainda assim essa dessensibilização serve a uma função para o realismo capitalista: Davis hipotetizou que “o papel do noir de Los Angeles” pode ter sido “para endossar a emergência do homo reaganus”.

[Continua no capítulo 2: “E se você convocasse um protesto e todo mundo viesse?”]

Referências:

[1] Upanishad: parte do cânone das escrituras hindus.

[2] Ad hoc: “para isto”/”para esta finalidade” em latim. Uma hipótese ad hoc é uma hipótese exterior à uma teoria adicionada a esta para evitar seu falseamento por evidência contrária

[3] Uma hyperstição no sentido de Land; ver: https://medium.com/@v1nk3l/hyperstition-150dcb2d5276

[4] Pré-lapsariano e pós-lapsariano se referem à discussão teológica da natureza de Cristo: se Cristo tinha uma tendência a pecar de Adão antes da queda (pré-lapsarianismo) ou de Adão após a queda (pós-lapsarianismo).

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