Oh dear, I’m queer and I’m proud of it!
ALERTA: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILER
Ladies and gentlemen, whether you like it or not… HEDWIG!
“Hedwig: Rock, amor e traição” é o título brasileiro para o sucesso de 2001 “Hedwig and the angry inch”, originado pela peça off-broadway homônima de 1998 que é a escolha perfeita para os frequentadores das sessões da meia-noite de Rocky Horror Picture Show, para os amantes de Glam Rock e até mesmo para os fanáticos por RuPaul’s Drag Race — aclamado reality show de temática drag queen que têm crescido exponencialmente nos últimos anos.
Adaptado do musical escrito e dirigido por John Cameron Mitchell, o longa de 95 minutos conta a história de Hedwig (também, John Cameron Mitchell), cantora que vive às sombras de Tommy Gnossis (Michael Pitt), rock star que construiu sua carreira ao roubar praticamente todas as composições de Hedwig, num passado relacionamento conturbado e cheio de problemas.
O storytelling do musical se dá de maneira não linear. Por meio de digressões e flashbacks, o público pode reconstruir a história da cantora, que nasceu em Berlim oriental em plena guerra fria sob o sexo masculino. Abusado pelo pai, Hansell — seu nome de batismo — não teve o privilégio de contar com um núcleo familiar bem estruturado. Restando, portanto, ser criado somente por sua mãe, que, por mais que se importasse com seu filho, não lhe servia de apoio, nem de companhia. Além disso, o menino era fascinado pelo outro lado do muro que o separava de todo o glamour e os tons vermelhos, azuis e brancos de liberdade em que o capitalismo era publicizado.
Eis que, Hansell, se casa com Luke, um oficial americano que promete realizar seu sonho de fugir dos tons cinzentos do comunismo decadente e levá-lo para os E.U.A. sob a condição de que ele se submeta a uma cirurgia de mudança de sexo e mude também de identidade para que os passaportes sejam facilmente arranjados. “To be free one must give up a little part of oneself” é a frase que o convence a fazer todo o procedimento, que não é 100% eficaz e o deixa com uma falha cirúrgica e, posteriormente, é justamente essa abnormidade que nomeia sua banda e também dá o título ao filme: “the angry inch”, traduzido livremente como “a polegada irada”.
Chegando nos E.U.A., “land of make believe”, Hedwig se encontra abandonada vivendo num trailer estacionado no meio do Kansas. A procura de emprego, a alemã começa a tomar conta dos filhos de um militar milionário que vive na redondeza. E é ao som de “Wicked Little Town” que conquista o coração do filho mais velho, Tommy, com quem, posteriormente, passa a se apresentar artisticamente e, após diversas atribulações, é por ele que ela é mais uma vez abandonada e roubada, configurando o momento exato em que os espectadores conhecem Hedwig e sua banda pela primeira vez no início do longa (e é amor à primeira vista para todos os fãs de cultura queer)
Cega em sua vingança, Hedwig é consumida pelo desejo canibal de provar para a mídia sua autoria e seu talento roubados, desmascarando Tommy. Tomada pelas adversidades da vida, a cantora que antes cantava sobre a origem do amor e respirava arte, encontra-se rodeada de hábitos autodestrutivos e sugando energia vital de todos que estão a sua volta. Eis que, depois de muitas cenas de ira e fúria combinadas com a performance “punk- rock is not dead” de John Cameron Mitchell, a personagem tem seu momento de “breakdown” e sob uma névoa ligeiramente fora da linearidade do enredo, Hedwig consegue se libertar de todo o féu que a devorava por décadas e, ao som de “Midnight Radio”, surge uma estrofe que se torna tão visceral na obra que é difícil não pensar o filme sob o viés identitário:
“know in your soul/ like your blood knows the way/ from your heart to your brain/ knows that you’re whole”.
A partir desse resumo, pode-se pensar a obra de maneira crítica. Um filme que dialoga com temáticas de identidade, temáticas econômicas e denúncias de mazelas sociais, é, sobretudo, um filme que trata sobre uma coisa maior: o poder.
A personagem sempre fragilizada desde criança, nunca teve condições de se bastar, nem mesmo de se perceber como dona de si. Para ela, sempre havia de ter algo que a completasse de maneira transcendental, o que foi constantemente desafiador, visto que todos a violavam de diversas formas: o pai pelo abuso sexual, a mãe pelo descaso na criação, o sargento por ter exigido que ela abandonasse quem era para poder receber “afeto” em troca e o cantor pelo roubo de seu talento. Para Hansell, nunca deve ter sido fácil se olhar no espelho e pensar que não falta nada.
Assim sendo, não é de se surpreender que a personagem trate todos seus parceiros de trabalho como, praticamente, servos. Hedwig é, perfeitamente, uma esponja emocional que suga todo o afeto recebido e cospe desprezo em abundância. Com enfoque em Yitzhak — um dos parceiros românticos da cantora — a priori, era uma drag queen e dividia o palco com Hedwig, que, ao perceber que recebia mais aplausos e poderia representar uma ameaça, o colocou como backing vocal da banda e o proibiu de se montar de drag. (essa parte do enredo não está presente, na íntegra, no longa, mas sim, no musical da Broadway).
De forma muito surpreendente, a personagem, que é esférica e cheia de complexificações, apresenta uma trajetória de evolução ao longo do enredo, libertando-se de seus medos, de seus erros, de seu caráter carrasco com os demais e desatando todos os nós que a aprisionava àquela condição de sofrimento. Dessa maneira, o filme é, também, uma invitação a reflexões intrínsecas de questões existenciais e identitárias para todos aqueles que se identificam, minimamente, com a trajetória da personagem principal. É um intimato ao amor próprio e, simultaneamente, um balde de água fria sobre a cabeça de quem olha somente ao seu redor e não consegue ser responsável emocionalmente por suas ações, não é capaz de estabelecer relações saudáveis, procurando sempre ser orbitado por pessoas servis.
Diante do exposto, esse filme não somente flerta com cultura pop e trash, com questões de gênero — sobretudo, em seus momentos de crise — , mas também flerta com militância e (re)existência dos LGBTQ na sociedade e significa muito para o dado momento, em que é preciso confrontar, de todas as maneiras possíveis, o avanço do conservadorismo que vêm acontecendo em todas as partes do mundo — um mundo que não está mais dividido por muros, mas sim por vozes influentes que dizem o que fazer e a quem obedecer — . Finalmente, esse é um filme para se assistir e pensar no bordão do ícone americano RuPaul Charles: “if you can’t love yourself, how in the hell you’re gonna love somebody else?”