Os Rejeitados colocaria um sorriso no rosto do Grinch

Vitor Evangelista
5 min readNov 30, 2023

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Paul Giamatti lidera trio deixado para trás em nova comédia do diretor Alexander Payne (Foto: Focus Features)

Vitor Evangelista

É Natal na Barton Academy, e tudo que os alunos, professores e funcionários querem é reencontrar a família, aproveitar o recesso e fugir do frio que congela os arredores do campus. O alvoroço das notas finais antes das férias toma conta da atmosfera, mas nem tudo são flores. Por motivos burocráticos, sentimentais e logísticos, o trio de Os Rejeitados, ou The Holdovers, está fadado a celebrar ali a chegada de Papai Noel.

São eles Paul Hunham (Paul Giamatti), o rabugento professor de civilizações antigas, o jovem encrenqueiro Angus Tully (Dominic Sessa) e a chefe da cafeteria Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph). O educador está ali pois, depois de reprovar o filho de um político influente, enfrenta a penitência de “ficar para trás/hold over” e supervisionar os alunos.

No papel de um homem em desagrado com a vida e acometido por problemas de saúde, Paul Giamatti repete a parceria com Alexander Payne, diretor vencedor de 2 Oscars (Foto: Focus Features)

O aluno em questão tem uma relação de atrito com a mãe e o novo padrasto, e a lua de mel dos recém-casados pula na frente na lista de prioridades, deixando Angus à mercê do professor que detesta e ao lado de quatro outros colegas, que logo saem de cena e viajam sem ele para uma estação de ski. A cozinheira, entretanto, materializa a imobilidade no luto que sente pelo filho, que aos 19 anos morreu lutando pelo exército, e escolhe passar o fim de ano no último local onde estiveram juntos.

A trama pode parecer simples, e ela é mesmo. O diretor Alexander Payne (de Nebraska e Eleição) decide recriar um clássico dos anos 70: o filme confortável que toma parte no recesso de dezembro e serve como atrativo à mesma época do ano. Para isso, ele instrui o diretor de fotografia Eigil Bryld a filmar em digital, mas emular os trejeitos característicos da época. Desde a abertura, estilizada com avisos e blocos textuais antigos, até o aspecto visual, finalizando em efeitos digitais as rusgas, granulação e a fita de cinema.

Vencedora do cobiçado prêmio da associação de críticos de Nova York, o NYFCC, Da’Vine Joy Randolph foi indicada ao Gotham Awards e se confirma como uma das favoritas a disputar o Oscar de Atriz Coadjuvante (Foto: Focus Features)

E o trabalho continua no design de produção, já que Os Rejeitados é inteiramente gravado em locação, sem uso de sets cenográficos ou estúdios sonoros na composição das cenas. No período de férias escolares, e agraciada com uma tempestade de neve, a equipe teve sorte e pressa na gravação, finalizando uma cópia a tempo do Festival de Toronto de 2022, onde o filme foi comprado e exibido um ano depois, na edição de 2023, onde também ficou com a medalha de prata do Prêmio da Audiência..

Em seu primeiro crédito no Cinema, o roteirista David Hemingson segue as batidas do clichê natalino, unindo três personagens que pouco se entendem, mas passam a apreciar a presença um do outro e, no fim, aprendem uma valiosa lição. O elemento de distinção está no sarcasmo do texto (“eu achei que todos os nazistas fugiram para a Argetina”, declara Angus a certo momento) e na tempestuosa relação entre professor e aluno, constantemente apaziguada pela cozinheira.

Mary carrega a dor em maior artifício, mas sua construção de humor e drama é agraciada pelo talento descomunal de Randolph, que nunca faz a audiência sentir pena de sua posição. A atriz de Dolemite Is My Name, que assim como Giamatti é formada em Yale, desfila por um ano-vitrine na carreira: de The Idol e Gato de Botas 2 até o trabalho em The Holdovers e em Rustin, a americana busca a verdade nos pequenos gestos e reações. Primeiro, conhecemo-la como enlutada e desacreditada, depois ela assume uma faceta mais jovial e branda, trazendo para perto o lado ranzinza de Paul e cuidando de Angus, e também sendo abraçada e elevada por eles.

Antes de Os Rejeitados, David Hemingson escreveu para How I Met Your Mother, Apartment 23 e Black-ish (Foto: Focus Features)

No fim, o filme rodeia sombras e vultos. Mary busca preencher a falta repentina do filho, dividindo seu dia entre a boca do fogão, várias garrafas de uísque e programas de TV. Angus tem o ressentimento e a distância da mãe, e também a ferida aberta do pai, internado em uma instituição psiquiátrica e inalcançável em todos os sentidos da palavra. Na terceira ponta do triângulo, Paul é amargo por natureza, e abafa um passado de violência e mentiras para sustentar a carcaça de casca-grossa. Nos vislumbres de uma paixão ao lado da Lydia Crane (Carrie Preston), Giamatti é escultor de feições teatrais sem fundamentar a interpretação em facilitações de maquiagem ou puxar um nível de caricatura para esse homem comum.

Cada um em seu quadrado, enfrentando batalhas internas e externas, potencializadas pelo tempo que dividem em solitude. Payne dirige Giamatti com a mesma garra que o fez 19 anos atrás, em Sideways; mas não fica atrás no trabalho com os novatos Randolph e Sessa. A atriz tem espaço para respirar a graça de uma piada trocada e a mágoa trazida à tona em uma festa ao som da vitrola. Sessa, por outro lado, estreia no Cinema após trabalhar no teatro universitário, e toma o filme para si na difusão adolescente de culpa, ira e muito potencial engarrafado.

Embora seja considerado na categoria de coadjuvante, o papel de Dominic Sessa é central para a trama, assumindo o co-protagonismo de Os Rejeitados (Foto: Focus Features)

Os Estados Unidos que dão luz ao mundo de Os Rejeitados enfrentavam o constante e dormente terror da Guerra Fria, assim como a prospecção de um futuro diferente na chegada do Homem à Lua. Assim, dois cérebros estavam em conflito: o mundo antigo, onde Paul ensina sobre civilizações que há muito desapareceram, e o mundo novo, em formato de token da monografia que o homem adia e adia, esperando que uma luz desça dos céus e ilumine a criatividade.

Traço que ele sublinha em Angus, protegendo o garoto não como um pai ou um mentor, mas sim como alguém que se importa com ele. A dupla encontra terreno comum na visão de mundo que compartilham e também na maneira como medicam a própria sanidade. Mary, na mesma concordância, prefere sentir todas as lágrimas e ensopar o avental para depois trocar de roupa e, no vislumbre de um amanhã familiar e puro, continuar sua caminhada.

Os Rejeitados assumem o peso de ficar para trás no título e nas jornadas que iniciam na história, mas duas horas e quinze minutos são o bastante para que as âncoras sejam abandonadas e a estrada, embora escorregadia pelo gelo e pelos anos de desconfiança e frustração, dê caminho a um novo lugar de expectativas, de sonhos e de liberdade. Paul passa o filme definindo a vida como uma escada de galinheiro, curta e cheia de merda, mas as semanas que passou junto de Mary e Angus, presos na nevasca, bebendo no subúrbio sob as luzes natalinas e dirigindo por Boston, talvez tenham aumentado a quantidade de degraus.

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Vitor Evangelista

assisto filmes, séries e drag race, e depois escrevo sobre isso