Rustin mata o impulso antes dele nascer
Vitor Evangelista
Bayard Rustin foi mais do que apenas um ativista político, central na luta dos direitos civis americanos e conselheiro de Martin Luther King, Jr. Ele foi um ótimo orador, um brilhante estrategista, um singelo cantor e dono de mais uma porção de funções e qualidades. O contraste aparece na cinebiografia que recorta os anos que precedem a grande marcha de 63, com o protagonista preso entre um texto desinteressado na fuga do comum e em uma direção que oscila no estilo.
Ileso nesse processo, tão inerte em biografar longe da potência de sua origem, está um abnegado Colman Domingo, que encara Rustin como tarefa de vida ou morte. Pelo sorriso característico e a pequena afetação na fala, o homem enfrenta tanto o preconceito por ser negro, quanto por ser gay, em uma época onde a homossexualidade era passível de pena, humilhação e escrutínio público, além de considerada crime.
Fica, inclusive, difícil de acreditar que uma figura histórica tão articulada como Rustin tenha recebido o tratamento blasé na adaptação de sua jornada para o Cinema. O diretor George C. Wolfe (de A Voz Suprema do Blues) espreguiça um ou outro momento de inspiração, como nas sequências dentro da igreja, e na privacidade de Bayard com os homens que compartilha o coração e os ideais. Mas, de resto, o roteiro se arrasta por duas horas, passeando entre reuniões, encontros e burocracias legais, banhado em um discurso palatável e agradável ao algoritmo.
Quem escreve é a dupla Julian Breece (de Olhos que Condenam) e Dustin Lance Black (vencedor do Oscar por Milk — A Voz da Igualdade), roteiristas habituados tanto à temática racial quanto de gênero e orientação sexual. Entretanto, os rótulos e as metas a serem seguidas na cartilha de ascensão, queda e redenção tiram a voracidade do manejo autoral, transformando Rustin em outro derivado prodeuto (a mistura de produto e conteúdo que a Netflix é conhecida por realizar).
Uma estreia em Toronto, seguida de tributo em comemoração à carreira de Colman Domingo, ator muito talentoso e pouco utilizado por Hollywood, pode indicar um respiro do longa na disputa do Oscar de Melhor Ator, e talvez até mesmo uma vaga em Canção Original, pelo trabalho de Lenny Kravitz em Road to Freedom. Assim como aconteceu em anos anteriores, de Selma a Harriet, de Estados Unidos vs. Billie Holiday ao próprio Ma Rainey’s Black Bottom, fica a sensação de potencial jogado pela janela.
O elenco de apoio conduz boa parte da trama, com destaque para Glynn Turman, outra joia do Cinema americano que só aparece como coadjuvante e merece ser reconhecido com projetos de calibre. Jeffrey Wright (que deve concorrer ao Oscar por American Fiction) faz uma pontinha como o arrogante Adam Clayton Powell, e destila todo seu carisma para o lado contrário da balança.
Assim como o Roy Wilkins de Chris Rock, que começa no lado oposto de Bayard e ao passar dos anos torna-se aliado do ativista. O parceiro Tom (Gus Halper) segue o caminho contrário, quando nota o comportamento do amado, que se apaixona pelo aspirante a pastor Elias Taylor (Johnny Ramey) sem ao menos se preocupar com o relacionamento anterior.
As muitas faces de Bayard Rustin são vislumbradas, em contraste, principalmente, com Martin Luther King, Jr., papel do reservado Aml Ameen. Questões que envolvem a amizade da dupla se misturam com o predatismo da imprensa e do governo presidencial, interessados em deslegitimar o protagonista com base na homossexualidade. Para Rustin, ser gay era o mesmo que ser negro, de nascença e inerente a qualquer impulso ou condenação.
No bar onde se abre para as confidências de Elias e relaxa na segurança de outros de sua comunidade, Domingo dá a leveza que o personagem divide entre a seriedade política e a cabeça abarrotada de ideias, planos e tarefas. Sem Bayard, MLK não teria conseguido unir as 250 mil pessoas que marcharam pacificamente. É triste, entretanto, que o filme não consiga alcançar a superfície do legado e da importância do homem por trás de mudanças radicais e de exímia importância para a população negra e gay norte-americana.