O Cavaleiro, a Morte e o Diabo: a solidão moral

Três faces da solidão nas Meisterstiche de Albrecht Dürer — Parte I

Yuri Pires
8 min readMay 12, 2020
Autorretrato (1493), de Albrecht Dürer

Albrecht Dürer nasceu em Nuremberg em 21 de maio de 1471 e faleceu na mesma cidade em 6 de abril 1528, aos 56 anos. Dedicou-se a diversas artes e ramos do conhecimento humano, da arquitetura à matemática, da geometria à teoria de arte. A sua influência é sentida para além das regiões de língua germânica, como Nuremberg e os Países Baixos, estendendo-se, inclusive, à Itália de Petrarca, Da Vinci e Botticelli.

Neste texto pretendo me debruçar sobre três de suas calcogravuras, consideradas obras-mestras (O Cavaleiro, a Morte e o Diabo | São Jerônimo em seu estúdio | Melancolia I).

Na verdade, anotarei algumas impressões sobre elas, separadas e em conjunto, e sobre o porquê de evocarem para mim três faces da solidão.

Considerado um dos mestres da gravura (gravuristas que popularizaram a arte no Ocidente entre os séculos quinze e dezoito), não é exagero tratá-lo como um divisor de águas no grupo que conta com artistas do tamanho de Sebald Beham, Mestre E. S., Baldini e Marcantonio Raimondi. Seja pela influência gótica inexistente nos gravuristas anteriores ou pela sua meticulosidade no que diz respeito às proporções do corpo humano e à perspectiva (elementos caros ao Renascimento e sobre os quais elaborou tratados), há um gravurismo antes de Dürer e outro depois dele.

As três gravuras mencionadas acima são calcogravuras, ou seja, foram realizadas sobre matriz de metal na qual a tinta de impressão foi aplicada nos veios abertos na superfície pelo gravurista e não na superfície ela mesma (como é o caso da xilogravura, popular no Brasil). Dürer as realizou num período de sua vida em que se dedicou quase exclusivamente a essa técnica, abandonando as demais (nas quais também se notabilizou).

O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (1513)

“Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não recearei mal algum, porque tu és comigo: o teu cajado e o teu bordão, eles me confortam.” (Salmos 23:4).

Ainda que não haja referências explícitas ao salmo 23 na gravura, há proximidade. O historiador da arte Erwin Panofsky, em seu The life and art of Albretch Dürer (1955), anotou que as primeiras frases desse salmo bem poderiam legendar a imagem. Estabelecendo relação entre O Cavaleiro, a Morte e o Diabo e o Manual do soldado cristão (1501), publicado por Erasmo de Roterdã doze anos antes, Panofsky enxerga em ambas as obras o cavaleiro/indivíduo ideal da cristandade ocidental do século dezesseis.

Se aproximarmos a gravura de Dürer e o livro de Erasmo de A imitação de Cristo (1441), obra anterior escrita por Tomás de Kempis, é possível traçar ainda mais concordâncias.

O livro de Erasmo, dividido em quatro partes, duas delas dedicadas às qualidades individuais desse cristão ideal (Exortação à vida interior e Da consolação interior), é expressão importante do que ficou conhecido como Devotio moderna, uma nova espiritualidade cristã individualizada cuja expressão máxima foi A imitação de Cristo, de Thomás de Kempis. Nas duas obras o que se lê é o elogio à introspecção e à reclusão como método para buscar o divino e para manter a retidão e a moralidade cristã. Kempis, por exemplo, em seu capítulo Do amor à solidão e ao silêncio, resgata Sêneca (“Sempre que estive entre os homens menos homem voltei”) para concluir que

“Isso experimentamos muitas vezes, quando falamos muito. Mais fácil é calar de todo do que não tropeçar em alguma palavra. Mais fácil é ficar oculto em casa que fora dela ter a necessária cautela. Quem, pois, pretende chegar à vida interior e espiritual, importa-lhe que se afaste da turba, com Jesus. Ninguém, sem perigo, se mostra em público, senão quem gosta de esconder-se. Ninguém seguramente fala, senão quem gosta de calar. Ninguém seguramente manda, senão o que perfeitamente aprendeu a obedecer.” (Kempis: 2014 pp. 46)

A impassibilidade resignada do cavaleiro diante do assédio da Morte (descarnada, com serpentes adornando a sua cabeça coroada) seria, então, resultado desse ideal de retirar-se em si? O cavaleiro tem a viseira articulada levantada, ou seja, não está em combate, e assim podemos ver seu semblante resoluto e seu olhar para frente.

O que diz a morte? Não podemos saber, mas dois outros elementos da gravura nos apontam alguma direção. O primeiro e mais significativo é a ampulheta que traz em sua mão direita. A brevidade da vida terrena, a morte como destino humano inexorável, a areia escorrendo e abreviando a existência.

A arte barroca, posterior à gravura, estaria impregnada desse ideário. Memento mori (lembre-se da morte) seria o lema dos paulianos, eremitas de São Paulo da França, décadas depois.

O outro elemento, à frente das patas dianteiras de seu cavalo, acima do monograma do autor, é um crânio. A caveira como símbolo da morte que iguala a todos, indistintamente (é para ela que olha o cavalo fatigado da Morte? Estar à frente aponta um estar no futuro?).

Estaremos todos, igualmente, sozinhos diante da morte, é o que nos lembram Tomás, Erasmo e Dürer.

Detalhe de O Cavaleiro, a Morte e o Diabo

O Diabo segue o Cavaleiro e a Morte (cavaleira ela também) a pé. Híbrido, tem aspecto de bode, focinho e maxilar de javali, porém caminha bípede e sua cauda é longa e de pelagem baixa. Veste também uma espécie de armadura ou capa, além de portar uma lança longa. Tem os olhos no Cavaleiro, mas é ignorado e, por isso, impotente. “Desprezar as sugestões do demônio”, é o que orienta Tomás de Kempis em sua obra.

O Diabo não diz nada. Sorri ou rosna? O certo é que acompanha o Cavaleiro de perto, talvez esperando dele uma vacilação, um olhar para trás, uma palavra imprudente.

O Diabo é uma constante ameaça em um mundo cristão como é o de Albrecht Dürer. Afinal, apenas resistindo às suas tentações, como o fez Cristo em seu retiro (solitário) ao deserto por quarenta dias e quarenta noites, é o cristão merecedor do reino dos céus.

Nesse recorte do quadro vale a pena anotar a meticulosidade com que Dürer assinala as veias e os músculos na pata do cavalo bem como a precisão do traço do lagarto no chão. Tais traços anatômicos são fruto de trabalho e estudo exaustivos do gravurista. Não é demais lembrar a importância dada pelos artistas do Renascimento à anatomia humana e animal e à ciência. Leonardo da Vinci (1452–1519), por exemplo, ao longo de quinze anos estudou ativamente anatomia (participando, inclusive, de dissecações de humanos e de outros animais). Neste período, produziu mais de 1200 desenhos de órgãos internos e do sistema anatomofuncional do corpo humano. As imagens impressionam pela precisão e minúcia, e estão disponíveis nos Cadernos anatômicos de Leonardo da Vinci publicados em 2012 pela editora Ateliê em parceria com a Unicamp.

Há ainda, acima de todas as figuras e à distância (aqui o trabalho de perspectiva de Dürer se sobressai aos seus contemporâneos), construções muradas. A vegetação selvagem ao seu redor contrasta com as terras cultivadas, domesticadas, ao redor da cidade fortificada.

O Cavaleiro vem de lá ou volta para lá depois de uma jornada? O que se pode ver é a distância: o cavaleiro está sozinho, longe dos outros humanos, nos ermos do mundo, acompanhado apenas de monstros: a Morte, o Diabo.

Detalhe de O Cavaleiro, a Morte e o Diabo

Lendo a gravura, em seu O nascimento da tragédia, Friedrich Nietzsche (1844–1900) compara o cavaleiro a Arthur Schopenhauer (1788–1860), ressaltando a coragem de buscar a verdade ainda que sozinho e desesperançado.

“Que outra coisa saberíamos nomear que, na desolação e exaustão da cultura atual, pudesse despertar alguma expectativa consoladora para o futuro? Debalde espreitamos por uma raiz vigorosamente ramificada, por um pedaço de terra sadia e fértil: por toda parte pó, areia, rigidez, consunção. Aqui, um solitário desconsolado não poderia escolher melhor símbolo do que o Cavaleiro com a Morte e o Diabo, como Dürer o desenhou, o cavaleiro arnesado, com o olhar uro, brônzeo, que sabe tomar o seu caminho assustador, imperturbado por seus hediondos companheiros, e, não obstante, desesperançado, sozinho com o seu corcel e o seu cão. Um tal cavaleiro düreriano foi o nosso Schopenhauer: faltava-lhe qualquer esperança, mas queria a verdade. Não há quem se lhe iguale.” (Nietzsche: 1992, pp. 122).

Ambos, Nietzsche e Schopenhauer, são filósofos que elogiam a solidão como signo de singularidade, de individualidade, de não diluição na vulgaridade do mundo. Entre vulgaridade e solidão, Schopenhauer chega a estabelecer uma contradição fundamental: “Pois, no mundo, não se tem muito além da escolha entre a solidão e a vulgaridade.” (Schopenhauer: 2002, pp. 27). Não é à toa, portanto, que Nietzsche o compara ao cavaleiro da gravura de Dürer.

Estar sozinho defendendo o que é justo e verdadeiro (sob determinado ponto de vista, evidentemente) é indício de pureza moral. Disso está farta a Literatura, como relata George Minois em seu História da solidão e dos solitários. Dos muitos exemplos que dá, tomemos Francisco Petrarca (1304–1374) emprestado, em sua obra de 1346, Da vida solitária.

“Quem dirá meu desgosto e meu tédio cotidiano na mais triste e mais barulhenta das cidades, cloaca estreita e recuada para onde converge toda a sujeira do mundo inteiro? Quem encontrará palavras para descrever esse espetáculo que causa enjoo? As ruas infectas em que os porcos imundos se misturam aos cães raivosos, o barulho das rodas que fazem tremer as paredes, os veículos que vêm das ruas transversais, os mendigos repugnantes, os ricos arrogantes, os que se entregam ao desespero ou a uma alegria escandalosa, os trabalhos diversos, o rumor confuso das vozes e a multidão dos passantes?” (citação de Petrarca em Minois: 2019, pp. 139).

É possível sentir nas palavras de Petrarca o seu desprezo pela multidão, pela cidade barulhenta. Se o mundo é cheio de vício, vaidade, prostituição só há um caminho ao virtuoso: a solidão. Trata-se de uma exortação, é preciso ser justo e correto ainda que lhe falte a esperança, é preciso buscar a verdade.

Tais elementos da solidão moral são perceptíveis na filosofia e na arte de todas as épocas. Se não é possível cravar a O Cavaleiro, a Morte e o Diabo como expressão desses elementos, é possível dizer que a gravura é atravessada por eles e os evoca.

(Esta é a primeira parte de um texto único sobre as obras-mestras de gravura de Albrecht Dürer. Nas próximas semanas, publicarei São Jerônimo em seu estúdio: a solidão existencial e Melancolia I: a solidão intelectual. Se o tema lhe interessa, siga o perfil aqui no Medium e no Instagram).

Bibliografia:

KEMPIS, Tomás de. A imitação de Cristo. Petrópolis (RJ): Vozes, 2014.

MINOIS, Georges. História da solidão e dos solitários. 1ª edição. São Paulo (SP): Editora UNESP, 2019.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo. 2ª edição. São Paulo (SP): Companhia das Letras, 1992.

PANOFSKY, Erwin. The life and art of Albrecht Dürer. 1ª edição. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1955.

SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria da vida. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2002.

VASARI, Giorgio. Vidas dos artistas. 1ª edição. São Paulo (SP): WMF Martins Fontes, 2011.

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